O mar sabia.
Sabia de Elian antes mesmo de Nyra pronunciar seu nome. Antes de seu rosto surgir nos reflexos quebrados das ondas, antes de sua presença arranhar a superfície da consciência da sereia, o oceano já o carregava como presságio.
A Maldição de Maelyr, a entidade aprisionada no Trono, reconhecia seu oposto, o Selo vivo que a mantinha adormecida. A atração entre eles não era apenas destino; era o funcionamento de uma antiga e terrível fechadura.
Naquela noite, o céu estava encoberto. As estrelas haviam se escondido como se temessem ver o que estava por vir. Nyra nadava em círculos abaixo das águas frias, com o coração espremido por uma sensação que não conseguia nomear, uma inquietação que perfurava os ossos.
Então, a canção começou.
Ela não vinha de seus lábios. Nem dos corais. Era mais antiga que qualquer voz viva. Ecoava de um ponto profundo, esquecido, onde os olhos do mundo jamais pousavam, o local que os anciões chamavam de Trono Esquecido. A melodia era irregular, ferida, arrastada por correntes de dor e saudade.
Era o som de um nome que desejava ser lembrado, o nome do seu carcereiro:
Elian.
Na superfície, Elian acordava suando.
O mesmo sonho. As mesmas vozes. As mesmas mãos de água tentando puxá-lo para baixo. Mas naquela madrugada, algo havia mudado. Ele não estava apenas ouvindo; estava respondendo. Sua pele ardia. As marcas sob suas costelas, aquelas pequenas cicatrizes em forma de conchas, brilhavam com um tom esverdeado sob a luz da lua. Era como se as tatuagens do Selo de Thalen tivessem sido ativadas por dentro.
Ele saiu de sua pequena cabana construída à beira da falésia. O vento noturno cortava como navalha, mas ele não sentia frio.
Seguiu em direção à praia, guiado por um impulso que não era seu, mas a força magnética entre o Selo e a Maldição.
Havia crescido ouvindo histórias sobre as criaturas do mar. Velhas lendas deixadas por sua mãe, a Guardiã traidora. Ela dizia que o mar não esquecia. Que aqueles que nasciam com sangue misturado, carne de humano, alma de oceano, carregavam o fardo do Selo Thalen, um mecanismo vivo de contenção. Cedo ou tarde, o mar os chamaria de volta. Ele nunca acreditou, até aquela noite.
O chamado agora era um imperativo genético.
Nyra emergiu em silêncio, apenas os olhos à mostra, entre as pedras da enseada oculta.
E viu.
Elian caminhava pela areia como alguém em transe. Ele ouvia cada nota perdida da canção que ecoava das profundezas, cada batida que o Trono Esquecido pulsava. Ele absorvia o som porque, em um nível atômico, ele era a ressonância da prisão.
Ela sentiu. Ele era parte dela, e não era. Ele era o preço do seu retorno.
Muito abaixo, onde a luz não tocava, o Trono dormia.
Era um trono forjado de ossos de leviatãs e pérolas negras. Estava rachado. Abandonado. Ali, dormia uma verdade que Nyra m*l começava a entender.
A linhagem de Elian não era humana. Era fragmento da antiga casa de Thalen, os guardiões originais da ponte entre os dois mundos. Eles não eram sereias; eram Aquáticos de Bordo, capazes de viver nos dois reinos, designados a usar seu canto para selar e acalmar a fúria primal dos deuses do mar, especialmente Maelyr, o Regente do Sal.
A casa de Thalen havia sido destruída pelas Guardiãs do Véu, milênios atrás, não para impedir a profecia, mas para evitar que o Selo fosse quebrado. O sangue de Elian não era apenas raro; era proibido e, ao mesmo tempo, vital para a estabilidade do mundo.
Quando Elian chegou perto da água, ela recuou. Não por medo de tocar, mas por instinto de proteção, pois o Trono clamava o sangue dele para se reconstruir.
Nyra se ocultou, mas o som da canção ainda vibrava entre eles. E ele sentia.
— Tem alguém aí? — ele murmurou.
Mas o mar respondeu com um eco em uma língua que ele m*l compreendia, mas sentia: “Zel-Thalen. Volte. Complete o Selo.”
Na noite seguinte, Nyra desceu.
Ela não podia ignorar o Trono.
Ele estava despertando. Chamando. E com ele, velhas vozes começavam a sussurrar nas correntes. Vozes de sereias mortas, de traidores esquecidos, de promessas quebradas.
A caverna onde o Trono repousava era proibida. Mas Nyra era a Herdeira perdida e seu retorno havia sido a chave.
Ela atravessou o véu de algas negras. Sentiu as garras da memória rasparem sua pele. E então o viu.
O Trono estava rachado... mas não vazio.
O Regente do Sal estava sentado ali.
Ele era feito de sombras, sal petrificado e desejo. O rosto coberto por escamas pálidas. Os olhos, dois abismos azuis. E quando ele falou, sua voz era a continuação da canção, uma melodia grave de poder bruto.
— O último Thalen retornou.
— Ele precisa lembrar — sussurrou Nyra, com os cabelos flutuando como serpentes ao redor de seu rosto.
— A memória é perigosa. A linhagem dele foi amaldiçoada para esquecer. O Selo de Thalen é ativado pela dor e pelo conhecimento forçado.
— O que devo fazer?
O Regente levantou uma mão esquelética.
— Você é o catalisador, Nyra. É a Canção da Ponte. Seu propósito é transferir a ele o conhecimento selado, nota por nota, através das Quatro Chaves.
A profecia era real, e Nyra era a ferramenta para quebrá-la ou cumpri-la.
O Regente então revelou as Chaves e o risco:
1. A Chave da Memória (Primeiro Canto): Ativa o sangue Thalen. Já foi quebrada no primeiro sussurro de Elian.
2. A Chave da Dor (Segundo Canto): Destranca as barreiras físicas. O sangue de Elian voltará a fluir para o mar, e o Trono começará a drenar sua vida.
3. A Chave do Abismo (Terceiro Canto): Liberta os Exilados de Maelyr (monstros ancestrais) para proteger Elian durante o transe final.
4. A Chave do Fim (Quarto Canto): Transfere todo o poder ancestral. Elian se tornará o novo Regente, ou morrerá na tentativa, e Maelyr será liberto ou aprisionado para sempre.
— Você deve ensiná-lo a Canção. Apenas o sangue dele pode domar a fúria que você despertou ao voltar.
Elian começou a ter sonhos mais vívidos.
Agora, via a mulher dos cabelos azuis. Sentia o sal em sua garganta mesmo acordado. E em seu peito, uma música antiga tentava sair, tentando desenterrar a verdade adormecida. Ele via o símbolo de sua cicatriz, o círculo partido, repetido nos mapas de corais que desvendava nos livros roubados da capela.
— Por que eu? — perguntou Nyra ao Regente, dias depois, sentindo o peso do destino.
— Porque você também é feita de ruptura. De algo que não deveria existir. Você é a filha da Guardiã Traidora e do Abismo.
— O que eu devo fazer?
— Prepare-o para a dor. O segundo canto deve ser feito antes da próxima lua nova. A cada dia que passa, o Selo falha, e o mar se levanta para destruir o que não pode conter.
Na noite seguinte, Nyra subiu.
Emergiu ao som das ondas calmas, e desta vez, Elian a esperava na praia, com a respiração suspensa, o corpo tremendo mais de antecipação do que de medo.
Seus olhos se encontraram.
Ele não fugiu. Ela não recuou.
A distância entre eles era tênue. Nyra nadou lentamente até tocar a areia e se arrastar até ele. As escamas em seus ombros brilhavam à luz fraca, e o manto de algas parecia pulsar com energia.
— Você veio — disse Elian, sua voz era apenas um sopro.
— O Regente me enviou — ela corrigiu, sem suavidade. — Não há mais tempo para hesitar. Você já cantou a primeira chave. A memória está vindo, mas não vai bastar.
— O que devo fazer?
Nyra pousou as mãos frias nos ombros dele, ignorando o ardor que sua pele provocava na dela.
— Eu vou te ensinar a Canção da Ponte. É o único jeito de você sobreviver ao despertar e evitar que o Trono consuma o mundo.
A primeira nota da Chave da Dor escapou dos lábios de Nyra, não como melodia, mas como um som gutural e antigo, que parecia arrancar o oxigênio do ar.
No momento em que o som atingiu Elian, as marcas de concha em seu peito se tornaram garras. Ele gritou, caindo de joelhos na areia, o corpo convulsionando. Não era apenas dor física; era a quebra da amnésia imposta por sua mãe.
O som da canção de Nyra invadiu-o. E ele, instintivamente, respondeu.
Não com melodia, mas com um grito dilacerante que quebrou as ondas.
E então, o sangue.
Um filete escarlate escorreu de seus lábios e se misturou à areia molhada. As marcas em suas costelas se abriram, liberando um fino véu de sangue que vaporizou no ar frio.
A Canção da Dor havia sido ativada.
Longe, na base do rochedo, o Regente do Sal sorriu. Um sorriso sem carne, feito de puro sal petrificado. A transferência havia começado.
E no mesmo instante, o chão de sua cabana se encheu de água, a maré subindo por conta própria.
Nas profundezas, o Leão-de-Trincheira, o monstro de dez olhos libertado pela Segunda Chave, abriu sua mandíbula de coral e começou a nadar em direção à superfície.
O Trono havia reclamado seu primeiro preço. E a guerra de Nyra estava apenas começando.