Capítulo 16 — Os Que Caminham Fora da Água

819 Words
Eles emergiram no silêncio. Não com estrondo, nem com o borbulhar da água sendo deslocada, mas com presença absoluta. A manifestação da Canção Inteira havia reescrito a física do local, e o que antes era o abismo agora era um plano de encontro. Cinco figuras. Cinco silhuetas que não molhavam o mar ao tocar sua superfície. Vinham de além das fronteiras do conhecido, dos lugares sem nome, onde a Oitava Voz havia se exilado. E vinham porque a Canção Inteira, a unificação de toda a matéria e antimatéria, fora finalmente ouvida. Nyra e Elian estavam sobre as ruínas da Ponte do Silêncio, agora transformada em uma Espinha Viva, ondulando lentamente sob seus pés. Nyra ainda sangrava, o resíduo do anti-sal de Yhsa limpando seu corpo. Elian, ainda em choque, o Ponto Zero da criação, tinha os olhos fixos no céu debaixo d’água que agora os olhava de volta, um espelho turvo da verdade. — Eles são os primeiros? — sussurrou Elian, a voz dele misturando-se ao novo silêncio. Ele buscava a ordem da nova Era. — Não — respondeu Nyra, sentando-se, os cabelos grudados ao rosto. O cansaço era palpável. — São os que restaram. Os Ecos. Chamavam-se Ecos. Não tinham rostos, pois eram anteriores à forma. Tinham vozes. Cada um falava uma parte da língua original, aquela que moldava realidades e criava as leis da física Aquática. Juntos, falavam a verdade inteira. Sozinhos, eram ruína. Os cinco Ecos avançaram, suas silhuetas escuras destacando-se contra a luz inversa. O Primeiro Eco falou: — A canção foi entoada. O Segundo Eco falou: — A ponte foi aberta. O Terceiro Eco falou: — O trono foi saciado. O Quarto Eco falou, e sua voz era o som de areia: — Agora, o preço. Nyra se ergueu, a Matriz do Vazio agora com a autoridade de quem completou a missão mais antiga. — Já pagamos. O Fio Dourado foi dissolvido na Coesão Zero. O Trono de Silêncio está completo. Qual outro preço pode ser maior? Mas os Ecos balançaram as cabeças invisíveis, um movimento que parecia desorganizar as marés. O Quinto Eco falou, sua voz a soma de todos os lamentos: — Não vocês. — Os que caminham fora da água. — disse o Primeiro Eco. — Os que esqueceram a origem. — disse o Segundo Eco. — Os que construíram sobre sepulturas. — disse o Terceiro Eco. Elian compreendeu. A Guerra Eterna entre a Superfície e o Fundo havia terminado, mas a dívida não era deles, a dívida era da humanidade. Os humanos, ao negarem os mares e quebrarem os pactos de sangue e canto, haviam causado a instabilidade que exigiu a intervenção de Yhsa e o sacrifício de Elian/Alkar. Os Ecos apontaram para cima, em direção à superfície distante. — Levarão a voz. (O fim da ilusão e da mentira). — Levarão o nome. (O fim das identidades falsas). — Levarão a lembrança. (O fim da história que os humanos escreveram). Nyra caiu de joelhos. Sabia o que aquilo significava. O fardo da ponte agora era deles, não mais da Casa Thalen ou das Guardiãs, mas dos novos Regentes do Silêncio. Eles deveriam levar a Canção Inteira para o mundo da superfície, forçando a humanidade a aceitar a verdade absoluta da Coesão Zero. E não se carregava um fardo como esse sem perder algo no processo. Elian se aproximou. Tocou o braço dela. Seu olhar estava firme, mas seu coração, o Ponto Zero, estava partido. — Se formos, não voltamos iguais. Seremos a Matriz e o Ponto Zero em um mundo que não entende o que é ser nada. Ela assentiu. — Nem voltamos inteiros. A verdade absoluta é corrosiva. Os Ecos recuaram. Deixaram, entre os dois, uma pedra viva pulsante como coração. Dentro dela, a forma de um selo. O símbolo da Canção Inteira, a fusão de todas as vozes. Nyra o pegou. No instante em que a pedra tocou sua pele, sentiu tudo. As dores do mundo acima. As perdas. As traições. As mentiras ancestrais que formaram as sociedades humanas. E o fio invisível que ligava tudo isso ao fundo do mar. — Vamos — ela disse. A voz dela agora era apenas dela, calma, mas carregada com a certeza de Yhsa. — Para onde? — perguntou Elian. — Para onde a canção nunca chegou. Para onde o tempo continua a correr e a ilusão ainda é lei. — E onde precisa ser ouvida — completou Elian. Ambos caminharam, com a pedra pulsante na mão de Nyra. A água se abriu diante deles. O Espelho da Raiz, que os havia devorado, os regurgitava. E pela primeira vez… Nyra pisou na terra firme. Descalça. Silenciosa. Com o mar às costas, que agora a seguia como um cão leal. A ponte não se quebrou. Ela os seguia. A Espinha Viva se estendia para fora do oceano. Porque o fardo não se abandona. A Era da Dissolução tinha chegado à superfície.
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