O mar sussurrava segredos antigos naquela madrugada sem lua.
Velha Âncora dormia ou fingia dormir enquanto as águas puxavam e devolviam a areia como se estivessem respirando. Ninguém andava pelas ruas úmidas de pedra. Os lampiões estavam apagados, as velas gastas, os cães escondidos sob os alpendres, farejando o vento com medo.
Mas ela estava lá.
Sentada no fim do cais partido, onde a madeira estalava sob o peso da brisa salgada e dos anos, os pés pendendo sobre o vazio, balançando como se o mar ainda a embalasse. Vestia um manto que não era tecido era como se fosse feito de algas e névoa, colado ao corpo, molhado mesmo quando a chuva não vinha. Os cabelos eram longos, negros e pesados, arrastando-se como serpentes mortas. A pele pálida como os ossos das gaivotas esquecidas nas pedras.
Seus olhos, porém, não eram de uma moça perdida.
Eram de alguma coisa que lembrava… fome.
Ninguém ousava perguntar seu nome.
Ninguém ousava perguntar de onde veio.
Mas todos sabiam quem ela era.
A menina que o mar levou.
E que ele, por alguma razão terrível, trouxe de volta.
Chamavam-na de A Muda.
Porque não falava.
Porque não chorava.
Porque não respondia.
Quando apareceu pela primeira vez, nua e tremendo nas dunas, com escamas espalhadas nos ombros e nos quadris, muitos pensaram que era uma aberração, uma criatura saída das lendas que as velhas contavam quando o peixe escasseava. Outras disseram que era uma enviada dos deuses afogados, castigo por anos de pecado escondido nas casas à beira-mar.
Mas o velho pescador Azevedo, bêbado e cego de um olho, foi quem a viu primeiro.
E ele apenas sussurrou:
— Nyra.
Depois disso, o velho morreu afogado no próprio poço.
Com um sorriso nos lábios e sal nas unhas.
Durante os dias seguintes, Nyra foi observada como se fosse um espelho quebrado: todos viam nela algo que não queriam lembrar. Uma culpa antiga. Uma cicatriz coletiva. Velha Âncora era um vilarejo construído sobre mentiras, e a volta da menina desaparecida rasgava essas mentiras como vento em vela podre.
Ninguém sabia como cuidar dela.
Não comiam junto. Não falavam com ela.
Mas deixavam pão na soleira da velha capela onde ela dormia.
E água em conchas. Sempre em conchas.
Alguns diziam que ela chorava à noite.
Outros juravam ter ouvido uma melodia arranhando o ar, não uma canção, mas o ensaio de algo esquecido. Um som cru, rouco, como se a própria garganta da terra estivesse tentando lembrar uma música esquecida.
Mas ninguém, ninguém mesmo, sabia o que aconteceria se ela realmente cantasse.
Havia um menino que a observava.
Do alto das dunas, todos os fins de tarde.
O nome dele era Elian, e carregava uma cicatriz no peito, fina como um anzol, que queimava toda vez que Nyra o olhava, mesmo que por um segundo. Ele não era como os outros. Não tinha medo. Ou talvez tivesse, mas não sabia como nomeá-lo.
Elian havia chegado há apenas duas semanas. Diziam que viera de terras do norte, fugindo de algo, talvez de si mesmo. Trabalhava na taberna, dormia nos fundos da marcenaria, e perguntava demais para alguém que queria passar despercebido.
Na primeira vez que viu Nyra, algo dentro dele se partiu.
Como uma memória que ainda não havia acontecido.
Ele não sabia, mas já a amava.
E estava condenado por isso.
Na sétima noite de lua nova, as coisas começaram a morrer.
Primeiro foram os peixes, encontrados boiando de barriga para cima, olhos estourados, próximos à costa. Depois, os cães latiam para o mar e não paravam. Um recém-nascido deixou de respirar por minutos inteiros, sem razão médica. E o sino da capela caiu sozinho, rachado ao meio.
Velha Âncora começou a murmurar.
E os murmúrios viraram pânico.
— É ela. É a menina do mar.
— O que quer?
— Está amaldiçoada…
— Vai cantar…
Mas Nyra apenas observava.
Com seus olhos sem branco, com a boca selada, com algo sob sua pele que parecia se mover quando ninguém olhava.
No oitavo dia, Elian se aproximou dela.
Com as mãos trêmulas.
Com a cicatriz queimando como fogo.
— Eu sei quem você é — ele disse, sem saber por quê.
Nyra virou o rosto devagar, como se o nome dele tivesse sido soprado por ondas antigas. E então, pela primeira vez, seus lábios se moveram.
Mas não saiu som.
Somente um sopro.
E mesmo assim, três gaivotas despencaram do céu.
Nas profundezas do oceano, algo se agitou.
Algo que dormia desde o dia em que Nyra foi levada.
Correntes antigas se moveram. Corais mortos brilharam por instantes. Um sussurro atravessou os cardumes e acordou os que foram esquecidos nas cavernas. E no Trono do Mar Esquecido, uma figura esquelética, feita de sal petrificado, abriu os olhos.
Ela havia retornado.
A herdeira perdida.
A rainha prometida.
E com ela… a maldição.
Nyra voltou à capela naquela noite.
O teto estava coberto de limo, as janelas trincadas, o altar vazio.
Ela se ajoelhou.
E pela primeira vez, cantou.
Mas não como os homens cantam.
Seu canto era o lamento de baleias mortas, o sussurro dos afogados, a dor dos corais partidos e a saudade do sal.
E lá fora, o mar respondeu.
A vila inteira ouviu.
O som atravessou as paredes das casas, entrou pelos poros das pedras, penetrou as frestas dos ossos mais velhos. Não era alto era ancestral. Como se o próprio oceano lamentasse algo que estava por acontecer.
O canto de Nyra.
O pescador Silvério caiu da rede no alto do rochedo. Um bebê recém-nascido gritou como se tivesse se queimado, mesmo dormindo. Um padre perdeu os sentidos diante do altar. E uma mulher, a mais velha de todas, apenas murmurou:
— Ela voltou antes da hora. O mar não está pronto. E nós… também não.
Nyra permaneceu de joelhos na capela vazia por horas.
Seu corpo não se movia. Seus olhos, abertos.
Ela sangrava levemente pelas narinas.
Mas o sangue era azul.
Elian não conseguiu dormir naquela noite.
Sentia o chamado em sua pele. A cicatriz no peito ardia.
Ele sonhou com coisas que não conhecia ou não lembrava. Sonhou com palácios de coral que cantavam, com um jardim de águas escuras onde corvos nadavam, com uma menina de olhos negros que o puxava para o fundo enquanto sorria.
Ele acordou com a boca cheia de água salgada.
Mas estava em sua cama.
Sozinho. E molhado.
Levantou-se ainda de madrugada e saiu.
Descalço.
Guiado por um instinto que não era dele.
A capela agora estava vazia.
Nyra já havia partido, mas deixou marcas no chão, pegadas molhadas, não de pés humanos, mas de membranas largas e finas. Escamas pequenas como cristais se espalhavam pelos bancos de madeira. E havia um cheiro… de luto, de coral partido, de vento preso em garrafas.
Elian sentiu vertigem. Encostou-se ao altar.
Ali, no centro da pedra, alguém ou alguma coisa havia desenhado símbolos com água do mar. Símbolos que se apagavam aos poucos, como se não quisessem ser vistos por muito tempo.
Mas ele os viu.
E um deles…
Um deles ele conhecia.
Um círculo partido ao meio. Uma concha aberta com um ponto n***o no centro.
Ele já havia desenhado aquilo, anos antes.
Sem saber por quê.
Era o símbolo que carregava no peito, em forma de cicatriz.
Elian passou os dias seguintes em silêncio.
Trabalhava como se estivesse sob hipnose.
E toda tarde, mesmo sem querer, seus passos o levavam até Nyra.
Ela continuava no mesmo lugar, à beira do cais.
Sempre olhando o mar. Sempre em silêncio.
Mas agora havia algo diferente nela.
Os cabelos estavam mais escuros, a pele mais fria, as pupilas mais dilatadas. Às vezes ela piscava outras vezes, parecia não precisar. Quando respirava, era como se o ar não fosse suficiente. E, certa vez, Elian a viu mergulhar.
Ela ficou submersa por quarenta minutos.
Na vila, o medo começou a crescer como mofo sob as tábuas.
Rumores tomaram forma.
— O canto vai chamar os mortos.
— Ela não está só.
— O Trono do Mar vai emergir.
— É o fim dos homens de terra.
Os antigos começaram a consultar velhos diários, mapas rasgados, histórias que ninguém contava mais. Um homem jurou ter visto olhos brilhando nas ondas. Outro disse que ouviu o nome “Nyra” sendo sussurrado pelo poço da praça, à meia-noite.
E uma carta anônima foi deixada na porta da casa do prefeito:
“Se ela cantar mais uma vez, o sal vai engolir o mundo.”
Mas Nyra não se importava.
Não temia.
Não se explicava.
Ela era o eco de algo esquecido.
O corpo de uma promessa que o mar não quebrou, apenas adiou.
E o tempo de cumprir havia começado.
Na décima noite, Elian se aproximou dela outra vez.
— Por que eu sonho contigo?
Nyra não respondeu.
Mas o vento soprou ao redor, mais frio do que antes.
E o mar recuou um pouco, como se a ouvisse.
— Eu vejo um trono. Eu vejo água vermelha. E… o som… eu ouço o som antes de acordar. Um canto. Teu canto.
Ela apenas estendeu a mão e tocou o peito dele.
A cicatriz brilhou.
Não com luz mas com lembrança.
E então ele viu.
Visões. Fragmentos. Verdades que não são do agora:
Ele afundando, mãos presas em algas como correntes.
Nyra com um vestido branco, sorrindo, antes de se lançar no mar.
Um povo que vivia sob as águas, coroados por pérolas, guardiões de uma ponte entre os mundos.
E um nome antigo…
Maelyr.
Ele gritou.
Mas quando abriu os olhos, estava sozinho.
Nyra havia desaparecido.
Naquela noite, o mar subiu dois metros.
Sem lua. Sem vento. Sem explicação.
Uma sombra foi vista atravessando a baía.
Grande. Lenta. Viva.
E ao amanhecer, três pescadores haviam sumido.
No cais, apenas seus anzóis.
Molhados de sangue.
No fundo do mar, abaixo da linha onde a luz morre, os olhos se abrem.
Velhos deuses sem rosto, moldados em conchas e escuridão, despertam.
A herdeira está voltando.
Mas ela não está sozinha.
E não é mais humana.
Ela é Nyra.
E seu canto é feito de fim.