capítulo 4

1247 Words
Capítulo 4 — Narrado por Lobo O barulho da laje ainda ecoava quando eu subi de volta pra minha toca. Cada degrau rangendo lembrava que esse morro foi meu berço e virou meu trono. Minha casa não é mansão, não. É reforçada, segura, mas simples. Quem vê de fora pensa que é só mais um barraco bem cuidado. Quem entra entende que aqui não é lugar de visita, é fortaleza. A sala é pequena, sofá de couro gasto, televisão ligada quase sempre em mudo, câmera em cada canto. Tapete vermelho escuro cobrindo parte do chão frio, lembrança de uma das mulheres que quis “dar cor” pro meu lugar. Eu deixei porque era útil, mas nunca porque liguei. Na cozinha, o básico: geladeira cheia de cerveja, carne congelada, umas marmitas que as tia da quebrada deixam. Eu não fico perdendo tempo em fogão. Minha comida vem pronta, rápida. Eu vivo de urgência. Subo pro quarto. A porta é grossa, madeira pesada, trancada com chave e senha digital. Ali é meu refúgio. Cama grande, lençol escuro, guarda-roupa simples, mas cheio de camisa preta, calça cargo, tênis de guerra. Na cômoda, corrente de prata, relógio de aço, coldre desmontado. Tudo organizado, cada coisa no seu lugar. Entro, fecho a porta e tiro a corrente do pescoço. O barulho metálico batendo na madeira é quase ritual. Ligo a luz fraca do abajur. Não gosto de claridade. Eu vim da escuridão e me acostumei com ela. Tiro a camisa devagar. O espelho grande na parede me encara de volta. Vejo meu corpo, pesado de treino, marcado de guerra. A cicatriz na sobrancelha, outra cortando a costela, marcas no ombro. O peito todo ocupado pelo lobo tatuado, dente à mostra, me lembrando todo dia quem eu sou. Eu passo a mão na tatuagem como se fosse carne viva. Esse lobo aqui não é enfeite. É promessa. Quando eu tatuei, eu jurei que nunca mais ia ser fraco. Nunca mais ia ser carne pros outros mastigar. Encosto as mãos na pia e olho fundo pros meus olhos no espelho. Preto escuro, pesado, sem brilho de moleque. Ali não tem inocência. Ali tem lembrança. Minha família? Morta ou perdida. Meu pai, servente de obra, morreu sem nada no bolso, explorado até o último dia. Minha mãe se matou de faxina pra botar arroz na mesa, e quando não aguentou mais, foi embora sem olhar pra trás. Eu cresci com fome, com raiva, com a certeza de que ninguém ia me dar nada. Mulheres? Já tive várias. Loira de salão, morena da laje, mina de baile que jurava amor eterno e sumiu no dia seguinte. Algumas dormiram na minha cama, outras só passaram rápido. Nenhuma ficou. Não porque eu mandei embora, mas porque aqui dentro não tem espaço pra permanência. Eu não sei dar amor, só sei dar intensidade. Mulher comigo não encontra paz, encontra guerra. E guerra cansa. Já me chamaram de bruto, de monstro, de homem que só sabe usar. Talvez seja verdade. Talvez eu seja isso mesmo: um cara que não nasceu pra ter família, nem lar. O morro é minha esposa, o crime é meu filho. É isso que me acorda cedo, que me bota em pé, que me dá sentido. Olho de novo no espelho. Me vejo sozinho, mas nunca fraco. — Lobo não precisa de manada. falo baixo, só pra mim. Sento na beira da cama, puxo outra camisa preta do guarda-roupa e visto. Antes de deitar, pego a pistola que tava na mesa de cabeceira, confiro o pente cheio e coloco do lado. O sono não vem fácil, mas quando vem, é leve. Eu durmo sabendo que o morro respira por mim. E se amanhã o delegado tentar subir, ou se alguém da quebrada pensar em me trair, eu vou estar pronto. Porque quem carrega cicatriz no corpo não esquece de onde veio. Apago a luz. A escuridão me recebe como velha amiga. E mais uma vez, sou só eu, o silêncio e o peso de ser o dono do morro. ..... Acordei com o som de batida seca na porta. Não era tiro, não era sirene, mas irritava igual. Martelada chata, insistente. Abri os olhos, a claridade da manhã cortando pela fresta da cortina escura. Respirei fundo, pesado. — Quem é o filho da p**a que tá batendo desse jeito? — rosnei, voz ainda arrastada de sono. — Sou eu, Lobo! — era o Beto, meu primo, vapor de confiança, mas sempre afoito demais. Levantei devagar, joguei a água do copo que tinha na cômoda na cara, depois fui até o banheiro. Liguei a torneira, lavei o rosto inteiro, passei a mão pela barba por fazer e olhei pro espelho. Olho fundo, olheira pesada. O dono do morro também cansa. Mas ninguém precisa saber. Bati a mão na toalha, abri a porta com força. Beto quase tropeçou pra trás. — c*****o, Beto, não podia esperar eu descer pra boca? Tem que me acordar desse jeito porra.? Ele segurava uma pasta amassada na mão e respirava rápido. — Desculpa, primo, mas é informação quente. Relatório do delegado. Meu sangue já subiu no ato. Roberto Monteiro. A sombra que nunca larga meu pé. — Fala. — mandei, a voz seca. Beto abriu a pasta e puxou umas folhas rabiscadas. — A escuta pegou movimentação diferente. O delegado tá armando operação grande mesmo, mas não é só isso, não… Ele engoliu seco, olhou pra mim como quem tem medo de soltar. — Ele tem uma filha. Fiquei parado, encarando. — Que p***a de papo é esse? Todo mundo tem filha, Beto. Que que eu tenho a ver com isso? Ele puxou do fundo da pasta uma foto impressa. Era de câmera, meio borrada, mas dava pra ver. Uma garota. Nova. Cabelo escuro, olhar firme, boca marcada. Corpo de presença, mesmo numa foto sem pose. Beto esticou a mão, quase tremendo. — Essa aí. Lara Albuquerque. Dezenove anos. Mora com ele. Estuda, sai pouco de casa. A gente soube que é a fraqueza dele. Peguei a foto sem pressa. Olhei devagar. A imagem queimava como aviso. A filha do meu inimigo. O sangue do homem que jurou me derrubar. Levantei os olhos pro Beto. — E você achou que eu ia gostar de saber disso logo cedo? Ele engoliu de novo, gaguejando. — Primo, eu… eu só pensei que cê precisava ver. Isso pode virar jogo. Suspirei fundo, passei a mão pela cara, puto. — Não podia esperar eu chegar na p***a da boca? Tem que vir me acordar com foto de menina? — É a filha do delegado, Lobo. — ele insistiu, firme dessa vez. — Se ele é o teu ponto fraco, ela é o dele. O silêncio pesou. Eu ainda segurava a foto, olhando. O rosto dela parecia desafiar, mesmo sem querer. Olhos que não abaixam, boca que não pede desculpa. Fechei a pasta devagar, deixei em cima da mesa e soltei a frase baixa, firme: — Toda cobra tem um ponto mole. Até a Serpente do morro sabe disso. Se o delegado tem fraqueza… agora eu também sei onde apertar. Beto sorriu, mas eu cortei com olhar. — Não abre a boca sobre isso ainda. Nem pros moleques. Essa informação é minha. E eu decido a hora de usar. Ele acenou rápido, entendendo. Eu fiquei de pé, com a foto na mão, olhando de novo aquele rosto. Lara. Nome simples, olhar nada simples. E pela primeira vez em muito tempo, senti que o jogo ia virar.
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