O início

2116 Words
MARINA NARRANDO ~ Hoje era mais um dia comum aqui em casa, mais um dia que eu tinha que cuidar dos meus irmãos enquanto a minha mãe sai no sol quente tentando encontrar uma oportunidade para trabalhar. Nem faxineira, nem manicure, nem babá... Não tem absolutamente vaga para nada na nossa cidade. E pra ser mais exata, nem podemos chamar isso aqui de cidade, é como se fosse um bairro no meio do nada.. Acauã de Minas, obviamente que fica em Minas Gerais. Mas antes de tudo, eu preciso me apresentar.. Meu nome é Marina Souza Silveira, eu tenho 20 anos e hoje moro com a minha mãe, Silvana e os meus quatro irmãos, Leonardo, Kaique, Cecília e Marta. Eu sou a mais velha, e o mais novo é o Léo, de 2 anos.. Meu pai? Ah, meu pai é daquele tipo que saiu pra comprar cigarro e nunca mais voltou. Sim, foi exatamente assim, ele disse que ia no bar e somente depois de 2 dias ligou dizendo que estava cansado, que tinha que cuidar um pouco mais dele, e que acima de tudo estava cansado de viver a vida que a gente vivia, que estava cansado de ter que dar conta de tudo sozinho, cansado dos filhos, da mulher, de tudo.. E era dele que vinha a nossa única fonte de renda, porque o auxílio que a minha mãe recebia, foi cortado. E foi a partir daí que começamos a vender o almoço pra comer a jantar. Na nossa cidade não tem oportunidade para nada, e é exatamente por conta disso que os jovens quando completam 18 anos, ou até mesmo antes, dão um jeito de ir embora daqui. E também é exatamente por conta disso que 80% dos habitantes daqui são idosos. O restante, ou é criança ou é alguém como eu, que simplesmente não podem ir embora. Eu já tentei de tudo, exatamente de tudo, mas a única coisa que eu tenho dom de fazer é cuidar dos meus irmãos. Mas eu acredito que seja a parte mais difícil, porque é diretamente a mim que eles reclamam de fome e eu simplesmente não tenho o que fazer. O que temos em casa na maioria das vezes é por doação. O que a gente mais come é fubá com água, porque pelo menos é barato, e enche um pouco. É difícil, dói a barriga, dói o corpo inteiro. Mas também dói uma parte de nós que não tem remédio que cure. É difícil ver uma criança pedindo algo pra comer e você ter que fazer qualquer outra coisa para distrair ela, para ver se ela ao menos se esquece. Temos que nos esforçar ao máximo para deixar a nossa única refeição (isso quando tem), para ser consumida na parte da noite, porque pelo menos assim as crianças conseguem dormir a noite toda, sem acordar disparadamente chorando durante a madrugada. Onde nós moramos não tem nem água encanada, o banho que tomamos, as vezes, é de balde e canequinha, com a água que pegamos na fossa que tem no bairro que chamamos de cidade. Ali é para o uso de todo mundo, é público, e é exatamente por conta disso que tem dias que nem ali tem água, e esses são os dias que a fome dói mais ainda, porque não conseguimos nem beber água para poder disfarçar. Eu sempre tive um sonho, o maior sonho do mundo, que me domina por completo, que é o sonho de ser modelo. Sempre gostei de fotos, sempre sonhei em me ver desfilando em cima de uma passarela, mas o meu pai nunca permitiu, ele sempre dizia que isso era coisa de mulher da vida, coisa de gente vagabund@, e nunca, jamais me deixou ao menos tentar. Hoje eu ja tenho 20 anos, sei que nunca é tarde para tentar alguma coisa, mas eu sinto que se ele tivesse deixado eu ir, talvez a gente não tivesse desse jeito. - SILVANA: Oi filha, cheguei! - Disse a minha mãe com o rosto suado, bochechas vermelhas e uma pele manchada de tanto tomar sol e chuva, dia e noite procurando por algo que renda ao menos 10,00 por dia. - MARINA: E aí mãe, conseguiu alguma coisa? - Perguntei a ela ao mesmo tempo que olhava em suas mãos, vi apenas uma sacola com um saquinho amarelo, provavelmente era fubá. - SILVANA: Não consegui filha. Todos os lugares que eu fui me disseram que é pra parar de passar lá, e que quando tiver alguma coisa eles vão me chamar. - Ela disse abaixando a cabeça e depois rapidamente ergueu a cabeça, pra ver se conseguia evitar que a lágrima rolasse por seu rosto. A minha mãe é o maior símbolo de força que eu já vi em toda a minha vida, por mais que a gente passe fome e todas as necessidades posssíveis, ela nunca deixa de sorrir, nunca deixa de ser a melhor mãe que alguém poderia ter, e acima de tudo, nunca deixa de ter fé de que a gente ainda vá vencer. Eu, ela e a minha outra irmã, que é a segunda mais velha depois de mim, ela tem 15 anos, nós 3 somos as que mais ficam sem comer, porque a gente sempre dá prioridade aos pequenos, eles entendem muito menos que a gente, e é por isso que a Marta, a de 15 anos vive doente, porque ela tem a imunidade muito baixa. Olha, é realmente muito complicado viver a minha vida, e eu todos os dias antes de deitar para tentar dormir, porque a casa é de apenas dois cômodos, não tem forro, os ratos percorrem por todo o teto, e além disso é muito quente, eu fico pensando quando é que Deus vai permitir que sejamos felizes, porque eu já não tenho mais forças para aguentar isso. Minha mãe preparou o único fubá que conseguiu ganhar, e eu estava esperando as crianças acabarem de comer para ver se ia sobrar alguma coisa para mim. Porque essa seria a última refeição deles no dia, depois do lanche que eles comem na escola, só tem o jantar garantido aqui em casa. Todos acabaram, eu fui revezando com a Marta para finalizar o banho deles e colocar todos para dormirem. Todos na cama, ou melhoro, no que chamamos de colchão, porque é praticamente 5cm de espessura, é realmente muito fino, temos 4 deles, são feitos apenas de espuma, todos de solteiro e ficam no chão. Eu, Marta e minha mãe, dormimos apenas em alguns cobertores, ou melhor, alguns lençóis forrados no chão. Tem dias que as costas doem demais, mas eu já estou até acostumada, essa é uma das partes menos piores. As crianças já tinham dormido, sobrou um pouco de fubá para ser preparado, mas preferi comer os restinhos que as crianças tinham deixado nos pratos, porque pelo menos assim temos a nossa próxima refeição garantida. Fui até lá na frente do nosso barraco, minha mãe estava lá, sentada, com a cabeça baixa. Quando fui chegando mais perto percebi que ela estava chorando, até que depois de muito insistir ela me disse o que tinha: - SILVANA: Eu nunca consegui entender o motivo do seu pai ter abandonado a gente minha filha. Ele sonhou todos vocês junto comigo, não foi algo que só eu quis. E olha só como a gente vive hoje e ele nem se quer vem aqui para saber o que está acontecendo, se estamos precisando de alguma coisa. Olha... É realmente muito complicado. Dóis demais em mim, porque eu queria dar uma vida melhor pra vocês sabe.. - MARINA: Calma mãe, tudo vai se resolver. Nunca podemos perder a fé, porque Deus vai nos honrar ainda e vai nos dar infinitamente mais do que a gente pede e do que a gente merece. - SILVANA: Deus te ouça minha filha, Deus te ouça... - Ela disse abaixando a cabeça mais uma vez, e várias lágrimas percorriam pelo seu rosto. Fiquei ali abraçada com ela e ao mesmo tempo pensando sobre o que eu poderia fazer para conseguir livrar toda a minha famíilia disso. Eu tenho esperança de que isso vai partir de mim, porque eu sou a mais velha, só que ao mesmo tempo fico pensando mil vezes em deixar as crianças, que por sinal são muito apegadas a mim... A Marta poderia ajudar cuidando delas, só que na maioria das vezes a Marta quem precisa de cuidados, até mais do que o Léo de apenas 2 anos.. Ela sempre está doente por conta da fome. Enfim, enquanto ainda estava ali sentada na beira da calçada com a minha mãe, ouvia os passos de alguém correndo pelo vilarejo, e conforme ia passando parecia que ia se aproxiamando. Até que virou a rua e eu consegui ver quem era, era a Paloma. Minha melhor amiga, que me ajuda em muita coisa aqui em casa, mas não consegue ajudar muito porque ela vive quase a mesma realidade que eu, um pouco diferente. No caso da Paloma é apenas ela e a mãe dela, o pai fugiu com uma outra mulher que no caso era vizinha deles, e a mãe desde então ficou extremamente doente, ela teve um derrame e ficou com sequelas, fruto de todo o estresse e tristeza que ela passou quando o marido foi embora com uma das pessoas que ela mais confiava. Então, hoje Paloma com 18 anos precisa cuidar de sua mãe, também vende o almoço para comer a janta, mas a sorte dela é que a mãe ainda recebe o benefício do Governo, que dá pelo menos para comprar o que comer. Ela continuou correndo até nós, mas quando foi chegando mais perto ela já não conseguia mais, e começou arrastar os pés, com aquele chinelo velho que m*l tinha sola para ser gasta ainda. Veio até nós como quem tinha algo a dizer, e finalmente disse em meio a sua respiração completamente ofegante. - PALOMA: Marina, Marina.. Preciso falar com vocês! Tia Silvana, tia Silvana. - Ela disse bem alto, praticamente gritando. - MARINA: Pelo amor de Deus Paloma, o que aconteceu? - Questionei ela pra ver se ela finalmente falava. Ela estava com um olhar assustado, a pele brilhosa por ter corrido da casa dela até a minha, provavelmente é algo bem sério, porque ela nunca fez isso. Eu via ela respirando fundo, ao mesmo tempo que tentava recuperar o ar que perdeu no caminho, ela tentava usar isso pra conseguir pensar se deveria ou não contar o que supostamente tinha acontecido. - SILVANA: Paloma minha filha, conte logo em nome de Jesus. - A minha mãe disse a ela se levantando da onde estava sentada, colocando o seu chinelo que tinha escapado dos pés, o único chinelo que ela tinha. - PALOMA: Eu tô com medo de dizer, mas o tio Rubens.. Ele, ele... - Ela não conseguia falar, abaixou a cabeça e ficou tentando engolir o choro. - SILVANA: Se for pra falar desse lixo pode voltar por onde você veio, e na mesma velocidade, porque eu não quero saber. Por mim que ele morra! - Minha mãe disse e foi dando as costas, como quem ia entrar. - PALOMA: Foi exatamente isso que aconteceu.. Ele morreu. Ou melhor, mataram ele, agorinha mesmo, com várias facadas.. - Ela disse e já não conseguia mais segurar o choro. Minha mãe que já tinha dados as costas e alguns passos para dentro do quintal de terra, voltou no mesmo segundo, engolindo seco, como quem tinha acabado de se arrepender das palavras que saíram de sua boca. - MARINA: Como assim Paloma, o que é isso que está me falando, o que aconteceu?? - Eu perguntei e comecei a tremer, por mais que eu sempre desejei isso pro meu pai, ele é meu pai mesmo assim, não era de coração, era da boca pra fora, por conta do que a gente passa aqui e ele nem sequer fica sabendo, ou no mínimo não se importa. - PALOMA: Ele estava tendo caso com uma mulher casada, e o marido dessa mulher descobriu, ele mexe com drogas, é super conhecido em BH e assim que descobriu foi lá e matou o seu pai. Foi agora mesmo, eu descobri porque ouvi no rádio. Sinto muito. - Ela disse e me abraçou.. Comecei a chorar.. Chorei muito, sentei no chão de volta e a única coisa que eu conseguia pensar era em como Deus estava sendo injusto comigo, em como agora tudo ficaria mais difícil de tudo se ajeitar, porque eu ainda tinha esperanças de pelo menos conseguir voltar a comer arroz e feijão... As minhas esperanças acabaram de morrer, agora mesmo, junto com o meu pai!
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