Quinze anos atrás.....( continuação)

2624 Words
O fim de semana passou vagarosamente; me perdi diversas vezes na minha dor. Houve momentos em que fiquei totalmente descompensado. Me culpei e culpei o mundo por não ter me rebelado e enfrentado Genaro para não ir para aquele colégio . Mas como faria isso sendo menor de idade e sem meios para tal ato? Soquei o colchão enquanto rolava na cama. Já era segunda-feira e eu não consegui dormir, pensando em minha mãe e na possível vida de merda que ela levou ao lado do meu pai. No sábado, o qual ocorreu seu sepultamento , tentei conversar com algumas funcionárias da casa, mas ninguém se atreveu a me dizer nada. Apenas lastimaram a perda da patroa e sumiram da minha frente como se estivessem vendo o próprio d***o. Aquilo me deixou com mais certezas sobre o tratamento que Analice recebia do seu marido: o pior possível. Levanto e vou para o banheiro, tomo um banho quente e me troco, colocando um terno escuro. Chego na sala de jantar e dispenso o café da manhã. Quero apenas resolver tudo por aqui e sumir desse lugar. Quero esquecer que um dia vivi nesta casa. _Estou pronto. Vou esperar pelo senhor lá fora.- aviso ao passar por Genaro. _Bom dia para você também! Deveria comer alguma coisa. Não quero ninguém desmaiando de fraqueza perto de mim.-diz ele enquanto beberica sua bebida fumegante. Não o respondo, apenas sigo para o exterior da casa. Corro meus olhos pela propriedade, coisa que antes não fiz. Tudo tão próspero. Trabalhadores se movimentando por todos os lados. De longe, avisto maquinários pesados usados nas plantações de milho. A fazenda Grão Doce se divide em duas grandes produções: a plantação de milho e a criação de gado leiteiro. Sempre foi assim desde que eu era pequeno. Olho para o relógio no meu pulso e já são nove horas. Estamos atrasados. Era para estarmos no tabelião às oito e meia. Isso foi o que Genaro mandou uma das funcionárias me avisar ontem à noite. Passo a mão pelos meus cabelos curtos. O sol brilhando forte sobre minha cabeça, deixando o verde do jardim ainda mais viçoso. Me perco no tempo, olhando as rosas amarelas que desabrocharam tão cheias de vida, tudo em vão uma vez que minha mãe não está aqui para contemplar. " As flores favoritas dela", falo mentalmente. Recordo de Analice fazendo arranjos com essas rosas e distribuindo em vasos pela casa. Meu peito aperta, abro o primeiro botão da camisa social, buscando melhorar minha respiração que ficou embargada. _ Terminei, vamos logo que tenho muito o que fazer por aqui hoje - meu pai diz enquanto segue para sua caminhonete 4x4. Sigo atrás dele sem falar uma palavra, entramos no carro e logo estamos percorrendo o trajeto até a cidade. Dentro do veículo por muito tempo só ouvíamos o som de nossas respirações e o barulho do motor. Até que Genaro resolve quebrar o silêncio. _ Você deveria ter vestido algo mais despojado e com alguma cor, está parecendo que estou perto de um urubu - diz sem desviar o olhar do caminho. Apenas ignoro o comentário e olho através do vidro da minha janela, vejo os pastos passarem rapidamente e a poeira subir conforme Genaro vai acelerando. Depois de algum tempo, chegamos ao nosso destino, entramos no tabelionato e somos recepcionados pelo advogado de Genaro. Os dois se cumprimentam e se afastam cochichando. O tempo não foi tão c***l com Marcelo, pouco mudou nesses longos anos em que estive fora, apenas ganhou alguns quilos a mais. Fico atento para ouvir alguma coisa e escuto. - Que p***a é essa de testamento, Marcelo? De onde surgiu isso? - pergunta meu pai, tentando mascarar o nervoso que está sentindo. - Fui informado pelo advogado dela após seu falecimento. Estou tão surpreso quanto você, Genaro. Mas fica calmo, deve ser alguma poupança que ela fez em nome do filho de vocês. Genaro me olha de soslaio. - Quem é o advogado que ela arranjou? Você conhece? Como podia ter um advogado e eu não saber? - Não, Genaro. Ele é de fora de Passa-Vinte. Sobre você não saber da existência do advogado de sua mulher, bem, isso evidencia que ela lhe escondia coisas. Vejo meu pai arregalar os olhos para Marcelo e, no momento em que ele ia abrir a boca, um homem muito bem vestido com um terno italiano para em minha frente. Ele analisa meu rosto e estende a mão. - Você deve ser Raffaello. Se parece muito com sua mãe. Prazer, sou o advogado de Analice, agora seu também , Rocco Gutemberg. - Sou eu mesmo. - confirmo. Aperto a mão do advogado, aceitando o seu cumprimento. O homem, que aparenta ter uns quarenta e cinco anos, me olha fixamente e em seguida vai ao encontro do meu pai e seu advogado. Depois de alguns minutos, o tabelião nos leva para uma sala mais reservada e começa a leitura. Rocco Gutemberg fica em pé ao meu lado, enquanto meu pai e seu advogado estão sentados na outra ponta da sala. Genaro chega a enxugar a testa com um lenço, sua linguagem corporal evidenciando sua tensão nervosa. Não entendo por qual razão. Meu rosto se volta para o tabelião, que dá início à leitura falando de uma quantia de dinheiro depositada em um banco nacional. Quando ele menciona uma fazenda cujo nome não me é desconhecido , meu pai nos olha com espanto. "Deixo para meu filho Raffaello D'angelis Mazzo a fazenda D'angelis de porteira fechada, com tudo que ela possui em seu interior: criações, plantações, maquinários, etc. Assim como as propriedades que possuo: a casa em Canela, no Rio Grande do Sul, a cobertura no Leblon, Rio de Janeiro, e a mansão localizada em São Paulo, no município de Campinas." Minhas mãos suam frias. Nunca imaginei que minha mãe pudesse ter posses. Sempre pensei que meu pai fosse o dono de tudo! _De onde Analice tirou tantas propriedades? Como eu não sabia da existência delas, Marcelos? - Genaro pergunta para seu advogado em voz quase inaudível, que por sua vez não sabe responder. O tabelião continua a leitura, falando sobre mais contas em bancos no exterior, investimentos, joias e ações em empresas de exportação de grãos. Tudo estava tão confuso. Olhei para meu pai e vi seu maxilar trincado. Ele estava com ódio dela, eu podia ver pela sua expressão. Mas o pior ainda estava por vir. Quando o tabelião leu a parte em que uma terça parte da fazenda Grão Doce me pertencia, eu levantei de súbito, chamando a atenção de todos. Eu não queria nada daquelas terras, nenhum grão de poeira. Eu tinha recordações péssimas do tempo que vivi na fazenda e não pretendia ficar com nenhum centímetro dela. Na verdade, eu não queria nada daquilo: o dinheiro, os imóveis, essa nova fazenda. Não quando quem lutou para tê-los tinha perdido a vida sem poder usufruir, desfrutar deles. Passei as mãos pelo meu rosto, ainda dolorido pela bofetada, olhei para Rocco e em seguida para o tabelião, que interrompeu a leitura. _Eu não quero um grão de terra da fazenda Grão Doce!-repliquei com voz firme. _Acalme-se, rapaz! A leitura ainda não terminou.- Rocco falou, colocando a mão em meu ombro. Apenas o olhei e ele fez um gesto com a cabeça para que eu mantivesse a calma. _Você não tem que querer nada, filho. Todo o patrimônio que sua mãe lhe deixou será gerido por mim, já que você ainda não completou a maioridade. Sou seu responsável legal.- Genaro disse, enquanto me olhava. Saber disso me causou uma tristeza tremenda, saber que o homem que maltratou tanto minha mãe iria colocar as mãos em seus bens depois dela falecida. Quando voltei o olhar para Rocco, que olhava sério para o tabelião, vi um vislumbre de um sorriso que logo se apagou. _Posso prosseguir?- Perguntou o tabelião. _Por favor!- Rocco manofestou-se. A leitura seguiu, pegando a todos de surpresa. Tudo o que herdei seria administrado por Rocco, que a partir daquele momento seria o guardião legal dos meus bens até eu completar dezoito anos e, após isso, ficaria responsável por me ajudar a administrar todo o patrimônio. Aquele foi o estopim para Genaro, que explodiu. _ Aquela filha da p**a, safada! Armando pelas minhas costas! Colocando o meu patrimônio nas mãos de um desconhecido e de um fedelho que não sabe nem quanto custa a saca de milho! E quanto a essa outra fazenda que aquela traidora comprou, foi com qual dinheiro? Porque se foi com o meu, eu vou entrar com uma ação judicial para tomar posse dessas terras. Meus nervos vibraram e voei feito um animal raivoso em cima de Genaro. _ Não ouse manchar a memória da minha mãe! Você nunca a mereceu! Só lhe causou dor e sofrimento! - bradei colérico , enquanto Marcelo nos separava. _ Está esquecendo da bofetada que lhe dei sábado? Me respeita, moleque, querendo ou não eu sou seu pai! - retrucou aos berros. _ Respondendo à sua pergunta, senhor Mazzo. A fazenda não foi comprada com seu dinheiro, mas sim com os lucros dos investimentos da senhora Analice. - Rocco correu os olhos pelos rostos presentes na saleta. - A mãe da senhora Analice teve o cuidado de pensar no futuro da filha, assim como sua mãe está fazendo agora, Raffaello. - o advogado olhou diretamente para mim e depois para meu pai. - Uma precaução, caso o casamento de vocês não fosse frutífero e encerrasse, deste modo, à senhora Analice não ficaria desprovida de nada. O patrimônio ficou aos cuidados de meu tio, padrinho da senhora citada. Mas cerca de três anos atrás, antes de falecer, ele me incumbiu de cuidar desses bens e bom, o restante o senhor já sabe. Rocco esclareceu, mostrando que as mães da família D'Angelis são extremamente protetoras quanto aos filhos. _ Acalmem-se ou irei suspender a leitura e daremos continuidade outro dia. Não posso admitir esse tipo de comportamento aqui.- bradou o tabelião demonstrando irritação. _ Desculpe-me, não vai mais se repetir. - falei. Quando todos retornaram para seus lugares, a leitura prosseguiu e minha mãe certamente tinha ciência que eu não iria querer nada da fazenda Grão Doce, tanto que tratou de não deixar pontas soltas ou brechas. Para eu ter acesso aos outros bens, não poderia me desfazer da minha parte naquelas terras e ainda teria de trabalhar por lá quando completasse meus vinte anos. Genaro me lançou um olhar de raiva e satisfação, o que me fez gelar a espinha. Eu sabia que dele no futuro não viria coisa boa. Quando tudo terminou, meu pai saiu apressado na frente, com Marcelo logo atrás. Assim que fiz menção de sair, Rocco me segurou pelo braço. _Garoto, tenho algo mais para lhe entregar. - disse, abrindo sua pasta de couro e tirando um envelope de dentro, e em seguida me entregou. - Sua mãe escreveu algo para você, leia quando estiver sozinho. - fechou a pasta e em seguida me olhou. - Tenho que levá-lo para conhecer sua fazenda ainda hoje. Estou com a agenda cheia e não terei tempo nas próximas semanas. Eu segurei aquele envelope, sentindo meus dedos queimarem. Tinha ânsia para ler logo o seu conteúdo , mas ao mesmo tempo temia saber do teor da mesma. _ Não estou com ânimo para isso, doutor. Ainda não consegui digerir tudo o que aconteceu e nem sei bem o que farei da minha vida. Me sinto perdido... sem rumo. - falei, me corroendo de angústia. _Calma, garoto. Tudo parece muito confuso agora, mas com o tempo você verá que as coisas vão melhorar. Você se sente assim por ser novo e por ter ficado muito tempo longe. Em breve, terá o controle da sua situação financeira e da sua vida. Dará tudo certo, apenas confie em mim. - Rocco deu dois tapinhas nos meus ombros - Mais tarde, passarei na fazenda de vocês para levá-lo à sua. Você deve conhecer seus funcionários e saber como tudo funciona por lá. Depois, quando você tiver completado a maioridade, iremos fazer um tour pelas suas propriedades. Também lhe explicarei sobre seus investimentos. Mas, por agora, ficaremos somente com a visita à D'angelis, tudo bem? Apenas afirmei com a cabeça e saímos juntos do local. Quando cheguei lá fora, Genaro já estava na caminhonete e, assim que me viu, enfiou a mão na buzina, chamando a atenção de quem passava e assustando algumas pessoas. Apressei o passo e atravessei a rua, entrei no veículo e meu pai deixou o local cantando pneu. Durante o trajeto de volta à fazenda, ele socava o volante repetidas vezes e soltava alguns palavrões. Não era preciso falar, eu via em seu semblante que estava inconformado com a existência do testamento .Ele foi surprendido pela mulher que tanto desprezou, por essa meu pai não esperava. Minha mãe sempre foi uma mulher inteligente, mas teve seus sonhos podados pelo marido, que não permitia sua esposa florescer em nada que lhe reservasse um futuro brilhante. Reprimindo-a e colocando-a numa espécie de gaiola invisível, onde somente ele tinha a chave de acesso. Ao chegarmos, tratei de sair logo da presença daquele homem e me tranquei no quarto que eu ocupo. Tirei o paletó e joguei-o sobre a cama, retirei com cuidado o envelope e corri o dedo pela caligrafia de minha mãe. Desabotoei os punhos da camisa e sentei no chão com as costas apoiadas na parede. Inspirei profundamente e abri o envelope, tirei de dentro as folhas preenchidas por palavras escritas com caneta azul. Comecei a ler as primeiras linhas, e conforme meus olhos percorriam atentos cada palavra, mais lágrimas desciam pelo meu rosto. Naquela carta minha mãe me pedia perdão por ter deixado meu pai me afastar dela. Relatava como sentia minha falta e em como esses anos que fiquei longe, foram duros e pesados para ela. Contou da solidão que enfrentava todos os dias, da falta de amor por parte de seu marido e de como se arrependia de não ter o enfrentado para me proteger. Enfim, expressou através de palvras escritas o quanto se arrependia dos erros que cometeu no passado. Pedia para eu ser forte, pois sua partida iminente se aproximava. Então, escreveu que estava doente e em estado terminal. Naquela parte, chorei como uma criança pequena e abracei aqueles papéis como se fossem ela. _ Oh, mãe! Perdão, perdão por não estar aqui, por não estar por perto quando você mais precisou! - falei aos soluços, torcendo para que ela me ouvisse de onde estivesse. Depois de alguns minutos com minhas mãos trêmulas, retornei à leitura. ❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧ "Tenha sempre consigo, meu filho, que você é o meu maior tesouro e a maior felicidade que a vida me proporcionou. Eu agradeço ao universo pela bênção de ter sido escolhida para poder ser sua mãe. É uma pena, eu não estar mais aqui para poder pegar em meus braços os netos que você me dará. Mas saiba que, de onde eu estiver, estarei zelando por você, porque o amor, meu filho, ele não morre. Ele é imortal e transcende a barreira do tempo. Desejo que você seja feliz, que se case e forme uma família coroada pelo melhor dos sentimentos. Te amo muito, meu lindo bebê ! Com amor, mamãe !" ❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧❧ Fiquei em cacos com suas últimas palavras, me encolhi no chão em posição fetal. Sentia-me partido por dentro, meu coração em milhões de fragmentos. Fiquei ali, perdido em meu pranto e acabei adormecendo
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