Prólogo

1042 Words
Rodrigo titubeou; parecia um rato de laboratório perdido no labirinto de prateleiras, toners e materiais de impressão. Suas mãos tremiam enquanto fazia o vai-e-vem, encurralado pela hemorragia do corpo estirado no chão. Da boca do morto: muito sangue. Ele mordeu os nós dos dedos para controlar a tremedeira. Deu trégua ao sapateado repetitivo e respirou fundo. O relógio desautorizava hesitações longas. Precisava tomar decisões inteligentes e ajeitar aquilo o mais rápido possível. O teto era tão elevado que as prateleiras chegavam apenas à metade da altura do ambiente, contudo, a amplitude era insuficiente, sem muito espaço para andar. Rodrigo tinha abandonado a cena do crime nº 1 possuído pela urgência de encontrar Norberto  e matá-lo. Agora, como o homem já estava morto, o foco ali era arquitetar um plano. Era necessário relacionar o primeiro com o segundo crime, como se fosse um homicídio seguido de suicídio. Enganaria a polícia? Como criar a conexão entre os dois assassinatos e sair ileso? Desastrado, ele esbarrou com o ombro num chumaço de folhas e quase derrubou-o sobre o corpo. Seu pensamento estava longe, na dúvida se havia feito mesmo um bom contrato vitalício de cumplicidade. Graças ao pesado furador de papel sobre as folhas, elas permaneceram onde estavam. A tremedeira continuava e a palidez da pele anunciava um desmaio por conta do descontrole da situação. “Ajustar” a segunda cena do crime seria impossível sem sabotar. Alguns minutos antes disso tudo acontecer, ele recebera um desabafo de May; estava claro: ela desejava um castigo dos bons ao marido. E o que eu faço agora, p***a!? Estou encrencado até o gargalo... Tem sangue pra c*****o! A conhecida arma — uma glamorosa RT-889, calibre .38, fabricação da Taurus, com acabamento fino e desenho clássico — descansava na mão da vítima, próximo da boca escancarada. Um breve flashback tomou conta do pensamento de Rodrigo: aquela arma já fora apontada à sua fuça sob ameaças mortais. Com a cara toda enrugada ele se aproximou e observou Norberto jogado. O tiro fora um desastre; por algum motivo a bala ficara alojada no topo da cabeça. — Só vai servir se a bala chegou ao crânio — sussurrou com seus lábios secos. Depois de fazer uma careta, abandonou Norberto e subiu as escadas em busca de ar renovado. Deparou-se com a bagunça do escritório. Olhou tudo ao redor. Nada fazia sentido. Seus olhos perceberam a foto no chão. Como a situação exigia cautela ao extremo, surrupiou um bloquinho de Post-it numa das mesas, arrancou uma folhinha e valeu-se da parte grudenta dela para evitar de deixar suas digitais. Observou a imagem por alguns instantes com a testa franzida e, segurando a foto com cuidado, ele desceu pela segunda vez para o silêncio sufocante no almoxarifado da Editora Hora de Ler. Suava igual porco antes do abate. A gravata estava ausente de seu vestuário, até porque, senão, ela poderia vir a ser uma forca: Adeus mundo c***l, porém, ele estava ali para forjar um suicídio em vez de cometer um. Aproximou-se do corpo, ficou de cócoras e, jeitoso, arrastou a foto para a poça de sangue rastejante debaixo de Norberto. Descolou o post-it e descartou-o na lata de lixo. Com as mãos na cintura passou os olhos naquela cena. Olhou, olhou, coçou a cabeça. Esfregou os olhos. Sentou no chão encostando-se na parede fria. Depois levantou-se. Andou de um lado para o outro. O ratinho encontraria a saída do labirinto? Postou-se de frente ao corpo pela enésima vez. Passou pelo cadáver e rumou na direção da escada. Desabou no terceiro degrau. As mãos enfiadas cabelo adentro, despenteou-os. Encarou a parede, desviando o olhar do cadáver. As opções pareciam óbvias demais: a) abandonar aquele plano absurdo e cheio de buracos, e: b) chamar a polícia. Levantou-se, desceu os degraus. Olhou Norberto sem vida mais um pouco. Retomou o movimento de barata tonta e gastou dois minutos inteiros — era desperdício demais! E como se tivesse encontrado a solução do mundo dentro do bolso, ele sorriu. Poderia fazer mais, então, averiguou as possibilidades. Possuía dois objetos a favor dele: o celular e a chave. Isso poderia ajudar muito. Precisava deixar as impressões digitais da vítima no aparelho, no entanto, precisava limpar as suas, por isso valeu-se de uma flanelinha de limpeza numa das prateleiras. Então agiu. — c*****o! — gritou. Quase triscou no marido de May. Sua testa pingava suor. Jamais poderia ser encontrado pela polícia banhado pelo sangue da vítima brilhando como letreiro de motel barato. Impossível ser tão o****o igual aquele i*****l foi… Recuperado, atentou-se à tarefa: manipulou a mão livre de Norberto e pressionou os dedos mortos no celular surrupiado e largou-o ali. Repetiu os movimentos com o segundo objeto: a solitária chave metálica do apartamento pertencente à primeira vítima. Limpou-a, segurou com a flanela numa das extremidades, carimbou os mesmos dedos sem vida e a depositou no bolso da calça do pobre coitado — longe de ser pobre; muito menos coitado — e largou a mão no chão. Afastou-se com a cabeça inclinada, imitando um cachorrinho atento ao seu dono e avaliou o próprio trabalho: — Parece perfeito. Devolveu a flanela onde estava. Respirou fundo por cinco vezes; olhos fechados e a cabeça mirada para o teto. Abriu os braços e inspirou pelo nariz, devagar, e expirou com a boca emitindo um assobio. Sorriu de braços abertos. Seus olhos se encheram de lágrimas. Sua caixa toráxica expandia-se com o ar puxado pelas narinas. Deu um giro discreto no próprio eixo. Fim da perseguição. Início de sua era de paz? Os próximos dias iriam dizer. Caso tudo desse certo e a polícia desconhecesse sobre seu envolvimento com aquele pandemônio desgraçado ele poderia experimentar a paz… Tarefas terminadas. Subiu as escadas respirando melhor. Quase tropeçou. Foi até o escritório editorial. Deixou o almoxarifado sem olhar para trás. Os ombros estavam pesados demais. Sua mão pareceu pesar uns três quilos ao sacar seu celular do bolso. Inalou bastante ar pelas narinas e discou 190. A primeira vez tinha sido pior, contudo, agora, com mais traquejo e experimentando a liberdade chegar a conta gotas, contaria mais uma de suas maiores mentiras para a polícia. Depois, claro, falaria com May sobre aquilo. Ela deveria ser a primeira a saber depois dos policiais.
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