Violante
Durante a noite não consegui fechar os olhos. Fico pensando como o ser humano pode ser tão carrasco com sua própria espécie.
Levantei diversas vezes para olhar a menina que se debatia durante o sono, parecia querer se livrar de algo que dava a entender estava sem cima dela.
Eu me peguei dividida entre acordá-la ou não; acontece que eu não sei onde tudo aquilo era produto de um sonho ou de trauma.
Esperança é uma menina de semblante sofrido e amedrontado. Pessoa simples de olhos desconfiados e tregeitos de quem viveu muitos percalços.
No entanto tem em suas íris a inocência da pessoa que vive na roça. E isso me encantou, porque transparece nos espelhos da sua alma.
A doce caipira sem nenhum traquejo social tem algo de bom que foi confinado num posso de amargura. Quando menciono amargura, digo porque vejo que transborda isso, não só quando fala de si mesma, mas quando olha para alguém do sexo masculino.
Preocupado, sem sono e com mil ideias rondando a minha cabeça, peguei meu cesto com linhas e agulhas, sentei na sala e comecei a crochetar uma blusinha para a menina.
_ Qual cor el deve gostar? - indaguei sozinha, indecisa diante de várias opções- Rosa, toda menina gosta dessa cor.- eu também gostava muito quando era novinha.
Comecei tecendo um cordão de correntinhas, deixando de um tamanho que desse para dar a volta no corpo franzino da menina.
Entre um ponto e outro, me peguei pensando na judiação que a pobre foi submetida, deixar a escola cedo para ajudar no sustento da casa.
A pequena é chucra, fala errado e não entende o significado de algumas palavras.
Quero muito lhe perguntar sobre sua vida, saber mais para poder ajudá-la. No entanto me vejo impossibilitada, não quero afugentar Esperança.
A menina é como um bichinho arredio que se espanta com uma enorme facilidade. A minha aproximação tem que ser cautelosa. Devo conquistar sua confiança para depois receber por vontade própria dela as verdades do seu passado.
Recordo o momento que fui ter com o senhor Florian.
_ Com licença, patrão. Posso obter uns minutos de sua atenção?
Florian ergueu os olhos em minha direção.
_ O que deseja?
_ Avisar que arranjei alguém para me ajudar na casa.
_ Ótimo! Traga para que eu possa entrevistar.
Meu coração balançou, Esperança não passaria pela avaliação.
_ É sobre isso que quero, em nome dos muitos anos que trabalhei para a sua família, pedir para dar o emprego a menina. Ela acabou de ficar órfã, foi indicação de uma amiga minha que mora na cidade. - menti com a minha cara coçando de vergonha.
_ Sabe muito bem que eu gosto de saber todos os pormenores da vida de quem coloco dentro da minha casa. Vemos rosto mas não vemos mente e coração, além de a idoneidade da pessoa não vir escrito nas costas.
_ Eu sei, senhor, mas Esperança é uma matuta, trabalhadora e precisa se sustentar. Ela só tinha a mãe e agora não tem nem onde dormir. Devo confessar que de ontem para hoje, permitir que ela pernoitasse na antiga instalação de armazenamento de feno.
Senhor Florian olhou para mim com repreensão no olhar.
_ Violante, eu gosto muito de ti, no entanto não suporto que burlem as regras que regem o bom andamento da minha fazenda. Gosto de ter o controle de quem entra e saí daqui.
_ Me perdoe, patrão. Tive pena da pobre coitada sem ter onde ficar. A mãe era bem humilde, nem um teto deixou.
_ Esse seu coração mole vai lhe meter em confusão, senhora Violante. - ele suspirou e voltou a tomar um gole do copo que estava pesado sob o tampo de granito de uma mesa de apoio.
Fiquei esperando a sentença final com os nervos frouxos.
No entanto meu coração orava fervorosamente aos céus para quebrantar o senhor Florian e que ele não ergue-se nenhum obstáculo para agregar Esperança ao corpo de funcionários.
Eu gosto da menina, sabe quando você conhece alguém e logo desenvolve afeição sem ter alguma explicação para isso? Aconteceu comigo, olho para a menina e a enxergo como uma alma cheia de luz.
Os olhos do patrão "diziam" pensar. Seu suspiro me deixou em alarde com um medo terrível de receber um não imenso.
_ Tudo bem, dona Violante. Mas a senhora será responsável por tudo referente a garota.
Saltei de alegria, dando um pequeno pulo. Meu sorriso não consegui esconder, sai da presença do patrão feliz da vida.
E quando cheguei n cozinha a garota estava olhando para fora, com seus olhos " compridos" e muito curiosos.
Ela disse que estava vendo as frô, eu queria lhe dizer que se diz flores. Contudo, me calei íamos ter tempo para isso.
Escuto o g**o cantando longe, hora de preparar o café.
Levo um susto ao me virar e dar-me de cara com Esperança.
_ Caiu da cama, menina! - exclamou quase deixando a chaleira caindo no chão.
_ Sô acustumada a acordar cedo, dona Violante, drumo com as galinha e pulo da cama com o g**o.
Vejo a jovem bocejar, depois coça os olhos e passa a mão no pijama.
_ O trabaio hoje vai ser puxado? Num vô pude ajudar muito, ainda estou capenga da perna.- apesar do modo errado com o qual se expressa, faz com uma doçura e inocência que me aquece a alma.
_ Hoje é dia de trocar a roupa de cama, lavar a roupa e colocar os travesseiros no sol. Preciso abrir as janelas dos quartos para arejar, no início da semana o primo do patrão chega e ele implica com tudo. Pensa numa pessoa que repara nas coisas? É o senhor Aaron.
_ Já num gosto de homi e dele então, estou odiando sem vê cume é.
Olho para a menina que recebe um pedaço de bolo que coloco dentro de um prato.
_ Ih, Esperança, o que o senhor Aaron tem de enjoado tem de bonito; parece um galã desses de filmes. Alto, loiro, olho de um azul mais claro que o céu, forte e o rosto parece que foi esculpido a mão livre.
_ Diacho, para esculpi a mão tem que está presa?
Não consigo segurar o riso diante da expressão de espanto que faz; tudo em Esperança é natural, ela não força simpatia ou autenticidade; a garota simplesmente é um poço de expressividade.
Uma trovoada faz a menina se levantar quase correndo da mesa com a boca cheia de bolo, seus lindos olhos estão imensos.
_ Calma, Esperança é um trovão. - olho pela janela da cozinha e o céu carrega nuvens pesadas.
_ Nôsinhora! Quase desmalhei de susto!
_ Não gosta de trovoadas?
_ Não esse trem parece tidiguerra( tiro de guerra).
_ Ah, menina, é só a natureza fazendo o papel dela. Trazendo a chuva para molhar a terra e fazer as plantas florir. É maravilhoso.
_ A sinhôra quê que eu passe o café?
_ Aí meu Jesus! Esqueci do café! - corro para preparar o típico café mineiro feito no coador de pano.
O cheiro do líquido invade ä cozinha, perfumando cada cantinho.
_ Não vai da pra lavar roupa, né? - a menina pergunta olhando para o bolo com suas gemas brilhantes.
_ A lavanderia do senhor Florian tem secadora. A chuva não é um impedimento para não levarmos a roupa.- corto mais uma fatia de bolo e dou para Esperança que não esconde a vontade de devorar o doce.
_ Brigada, gostei desse doce no meio dele. É o quê?
_ Brigadeiro. Nunca comeu?
A jovem balança a cabeça em negação. Isso me traz uma indagação: que tipo de vida essa menina teve em sua infância.
_ Sua idade, Esperança?
_ Dezenove. Fiz anus dois mês atrás. - fala esticando o olhar em minha direção.
_ Bom, vamos ao café, depois trocamos nossas roupas e vamos ao trabalho. Dessa vez, o patrão vai comer pão dormido.