Safira
Acordei bem cedo no dia seguinte, antes dos meninos novamente. Desta vez, eu me vesti adequadamente antes de descer para fazer o café da manhã para nós. Isso parecia que iria virar rotina. Não me importaria.
Quando morava com meus pais, nunca gostei do fato de minha mãe não saber cozinhar, tão pouco meu pai. Sempre comíamos fora ou encomendávamos comida. Isso parecia não incomodar ninguém, mas eu sentia falta de algo realmente caseiro. E, assim que alcancei o fogão, tratei de aprender a cozinhar. Minhas primeiras experiências foram terríveis, mas nunca desisti e, com perseverança, me tornei uma excelente cozinheira. Nada que pudesse me tornar uma grande chefe culinarista, porém, o bastante para fazer algo gostoso e não passar vergonha em reuniões familiares e de amigos.
_ Já de pé? – Matteo foi o primeiro dessa vez.
_ Fiz o café, se não se importa.
_ Essa costuma ser minha tarefa, mas acho que posso passá-la para você. – Ele se sentou em um dos bancos do lado oposto da ilha.
_ Se te incomodar, eu posso parar com isso e fazer apenas o meu.
_ Não me atrapalha e você parece ter mais destreza nisso do que eu.
_ Você cozinha? – Perguntei curiosa.
_ Um pouco. Venho de uma família italiana e todos nós gostamos de nos aventurar na cozinha. Para nós, esse é o lugar mais importante da casa.
_ Eu também penso assim, mas minha família não. Por isso, por conta própria, aprendi a cozinhar. Uma hora você cansa de comer comida pronta.
_ E se sente horrível quando sua cozinheira te abandona e te faz voltar para os instantâneos e congelados da vida. – Pietro brincou.
Ele me deu um beijo na bochecha antes de se sentar, ao lado de Matteo.
_ Não foi culpa minha. Você foi morar com um amigo e eu voltei para casa.
_ Mat, não me tire dela novamente. – Meu irmão brincou.
_ Foi escolha sua, camarada. – Matteo levantou os braços, sinal de rendição.
Era bom sentir o clima leve no meio daqueles dois.
_ Está pronto, meninos. Querem comer aqui ou quer que eu prepare a mesa na sala de jantar? – Perguntei a eles.
_ Aqui. Quase não usamos aquela mesa, pra falar a verdade. – Pietro deu de ombros, se servindo com um dos sanduíches que eu tinha feito. – Isso está bom, de que é?
_ Do que vocês tinham na geladeira, que não é muita coisa. Não sei como está a dispensa, mas se continuar assim, logo ficaremos sem comida. – Alertei-os.
_ Eu cuido disso mais tarde. Tem preferência por alguma coisa? – Matteo me perguntou.
_ Não, eu me viro bem na cozinha.
_ Bom. Essa parte continua comigo então.
_ Aproveitando o assunto, como vocês fazem durante os fins de semana ou quando estão em casa? Vocês comem muito fora?
_ Depende, às vezes Matteo cozinha, outras nós vamos comer em algum lugar. Dependendo de como foi a noite anterior, nem nos damos ao trabalho de almoçar, comemos qualquer coisa e depois jantamos fora. Por quê?
_ Acho que posso ficar responsável por isso também, se não for atrapalhar.
_ Pode ser, mas, mesmo você não gostando, às vezes te daremos folga e vamos comer fora.
_ Ou eu posso cozinhar também.
_ Tudo bem. E como é a limpeza do apartamento?
_ Terceirizada por empresa de confiança indicada por papai. Também não lavamos roupa aqui e não vai ser por sua causa que começaremos. Nem temos maquina de lavar aqui.
_ Ok! Sem trabalho doméstico. O que é um alívio, odiava quando tinha que limpar o apartamento junto com Berenice. Era um tormento!
_ Para nós também. Principalmente depois das festas.
_ Vocês dão muitas festas por aqui?
_ Costumamos fazer pequenas reuniões, principalmente em dia de jogo importante nos campeonatos.
_ Futebol?
_ Sagrado! Principalmente por torcermos pelo mesmo time.
_ Você ainda tem as mesmas superstições, Pietro?
_ Não, elas evoluíram para algo mais aceitável, nada que nenhum dos dois também não faria.
_ Matteo também é supersticioso? – Eu estava divertidamente curiosa.
_ Nada que me denigra, mas também já foram piores. – Ele estava leve.
Até eu chegar ao prédio onde funcionava a empresa dos dois, continuamos a discutir sobre esportes e suas superstições. Claro que Pietro revelou meu time do coração, além, é claro, de contar todas as minhas gafes esportivas. Meu influenciador nesse assunto foi ele e o fato de o time que ele torce ser o principal rival do time de nossos pais. Escolhi por afrontá-los, mas continuei por aprender a gostar de me envolver na torcida. Não sou grande fã do esporte, porém, não ignoro os convites para ver um jogo. Berenice e eu já fomos a vários bares em finais de campeonatos, para caçar, claro, só que eu também aproveitava para torcer pelo meu time quando ele estava jogando.
O clima leve do café da manhã foi substituído pela hostilidade dos funcionários daquele prédio. Talvez pelo fato de eu chegar junto com meus chefes, talvez por eu andar a frente deles, talvez pelo clima amigável entre nós três. O motivo não me importava, eu iria ignorá-los mesmo.
O prédio em que eles trabalhavam, era todo ocupado por grandes figurões de suas áreas. Havia médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, artistas, empresários e empreendedores. O andar destinado à empresa de meu irmão era um dos últimos, mas o mais bem montado e decorado. Nada muito extravagante, pelo contrário, era tudo simples e delicado até, porém, foi tão bem distribuído e combinado, que davam um ar de sofisticação ao ambiente. A área de recepção era clara, com cadeiras azuis refletindo o uniforme que eu usava, uma área destinada à recepção ficava em um canto, separada por um balcão de madeira com tampo de pedra n***a. Passada essa área, várias salas foram dispostas ao longo do corredor formado por elas. Cada área da empresa, uma sala diferente. A área onde ficava os escritórios dos dois era separada por uma parede de vidro, dividida em duas partes: a ala esquerda era o escritório de meu irmão, onde sua secretária já estava a todo vapor; a outra, era onde eu, a partir daquele dia, iria ocupar.
_ Esse será seu ambiente de trabalho. – Matteo começou assim que me sentei. – Todo o material que necessita está aqui. A maioria em suas gavetas, mas alguns papeis você encontrará nos arquivos lá em baixo, ou comigo. Você ficará responsável por minha agenda. Como sei que é fluente em algumas línguas, pedirei também que fique responsável pela tradução de documentos e, quando necessitada, você também será a minha intérprete. Acha que pode fazer isso?
_ Depois de me adaptar, sim. Mas fique tranquilo, eu me adapto rápido às novas situações.
_ Ótimo. Mais uma coisa: ao atender ao telefone, não se preocupe em identificar a empresa, diga apenas de qual escritório está falando. Todas as nossas ligações costumam passar pela recepção antes, apenas as que são feitas direto para o meu telefone que não.
Eu iria respondê-lo. O telefone não deixou. Atendi depois do terceiro toque:
_ Escritório do doutor Salvatore, bom dia! – Disse em uma voz cortes.
Ele aprovou minha resposta e entrou em sua sala.
Francamente, esperava que fosse mais complicado trabalhar ali. A agenda dele estava bem organizada, assim como todo o material que iria usar. Precisei de apenas dois dias para me adaptar aquela nova rotina e nenhum para saber que não seria a mais popular naquele lugar. A única pessoa que falava comigo sem ar de superioridade era a namorada de meu irmão, a gerente financeira da instituição e uma amiga de longa data. Quanto à parte positiva daquele trabalho, poderia considerar a calmaria. Tirando o telefone que tocava sempre, quase não via uma alma viva passar ali, mesmo em dias de reuniões. Todo o movimento e barulho pareciam ficar atrás do vidro que separava a sala do resto. Quanto à parte difícil, era os intermináveis documentos que tinha que fazer tradução para o nosso idioma ou para o idioma do possível investidor ou colaborador. Havia muitos termos técnicos que não sabia como traduzir e, direto, tinha que pedir ajuda à internet ou a meu patrão. Quando isso acontecia, eu ia para a sala dele e acabava discutindo com ele o documento para, juntos, encontrarmos a melhor forma de transcrever o que deveria ser solicitado no documento.
Passei boa parte de duas semanas com ele, na maioria das vezes, antes do almoço, período em que sua agenda estava mais livre. Quando o dia estava mais tranquilo, Matteo e eu ficávamos discutindo o expediente todo a respeito do que deveria ser feito. Era gostoso passar as manhãs com ele assim. Mesmo sendo trabalho, era sempre descontraído entre nós dois, chegando ao ponto de até bebermos álcool durante o expediente. Quem entrasse ali e nos visse juntos, ia pensar que estávamos em um encontro casual e não em uma reunião de negócios. Talvez por isso eu tenha me ligado a ele tão rápido.
Pode parecer estranho, mas eu sempre fui uma pessoa muito intuitiva. Ainda pequena, podia sentir quando algo r**m ia acontecer comigo ou com minha família. Grande parte de meus surtos era por não entender esse sentimento e não encontrar forma melhor de deixá-lo sair do que brigando com os outros. Agora, mais madura e depois da terapia, aprendi a expressá-lo e usá-lo de forma mais positiva, chegando a transferi-lo para meus protegidos. Eles foram poucos, apenas quatro, contando com Matteo, mas nenhum deles me fez ter pressentimentos tão rápido quanto ele. Nem mesmo minha melhor amiga, Berenice. Demorei um mês para me ligar a ela.
Em uma segunda-feira, enquanto Matteo estava em uma importante reunião, eu senti um arrepio estranho na coluna, sinal de perigo próximo. Entrei na sala dele, para começar a verificar por ali, o local mais próximo. Ao entrar, um homem alto e magro, com o macacão da equipe de limpeza, estava dentro da sala dele. O confrontei, mas ele partiu para cima de mim. Eu desviei de seu soco por pouco.
Lutar de saia não é uma das coisas mais fáceis do mundo. Meus chutes não tinham o mesmo alcance, me prejudicando seriamente. Os sapatos também não ajudavam, mas, com eles, já estava acostumada a lidar. A falta de uma arma era outro ponto negativo de estar ali. Acabei usando o que tinha: meu corpo.
Aproveitando o momento em que ele deu as costas para mim, dei um chute na junção de sua perna, quebrando seu joelho e o fazendo cair. Ao vê-lo ajoelhado no chão, ainda em suas costas, agarrei sua cabeça e usei de toda a minha força para tentar quebrar seu pescoço. Relaxei ao ouvir o cantar de ossos quebrados ao torcer seu pescoço. Em êxtase, peguei meu telefone no bolso do meu casaco, agora no chão, e digitei:
“Uma coroa foi encontrada, preciso que alguém venha buscá-la para o seu inventário.”
Esperei uma resposta.
“O penhor está a caminho”
Esperei por eles, impaciente.
Meia hora depois, uma equipe de limpeza bateu na porta. O sinal foi dado com o olhar e deixei que eles entrassem. Observei atenta dois homens colocarem o morto dentro do carrinho de limpeza, fechá-lo e saírem pela mesma porta que entraram.
Trabalhei rápido assim que estava sozinha. Junto com o e-mail que mandei para meu pai, anexei uma foto do morto e a foto da pequena janela do banheiro do escritório de Matteo por onde o homem havia entrado. O tipo físico dele foi proposital, alguém mais encorpado do que ele não passaria pelo caminho estreito. Como ele estava com o uniforme da equipe de limpeza, previ que tinha usado um dos andaimes utilizados nas limpezas dos vidros das fachadas dos andares para que ele pudesse chegar em segurança e descrição até ali. Uma rápida olhada pela parede de vidro da sala de Matteo confirmou minha teoria; grupos de pessoas se dividiam em andaimes para limpar os vidros em vários andares aquele dia. A resposta de meu pai me fez relaxar e, só então, senti os efeitos da descarga de adrenalina, mais forte aquele dia. Eu estava apoiada na grande mesa de madeira ao centro da sala quando ouvi:
_ Está bem? – Matteo estava preocupado.
_ Estou. Foi só a adrenalina indo embora. – Respondi-o cansada.
_ O que aconteceu? – Ele estava perto de mim.
_ Alguém tentou te matar. – Falei como se fosse a notícia mais comum de todas.
_ Me matar, aqui?
_ É, aqui. Um lugar como qualquer outro.
_ Mas temos uma segurança pesada aqui.
_ Nem tanto. O cara usou a janela do seu banheiro para entrar.
_ Oi? – Ele parecia não acreditar.
_ Ele era magro e estão limpando os vidros de fora hoje. Dia perfeito para um atentado.
_ Como fez para acabar com ele? – Ele estava confuso por não ver nenhum sinal do ocorrido ali.
_ Eu o matei, quebrei seu pescoço. Não sem antes lutar, claro.
_ Ah... – Ele olhou para mim, mais uma vez.
Sua mão foi para meu rosto, colocando uma mexa de meu cabelo cuidadosamente arrumado agora bagunçado atrás de minha orelha. Senti minha pele formigar onde ele tocou.
_ Seu cabelo. – Seus olhos eram tão convidativos.
Quebrei aquele encanto antes que fosse tarde demais. Acabei me sentando em uma de suas poltronas antes de soltar o meu cabelo e prendê-lo novamente em um coque baixo.
_ Quer ir para casa? – Ele se sentou na poltrona ao meu lado.
_ Só saio daqui quando sair também, não é seguro deixá-lo sozinho.
_ Quer continuar trabalhando no documento que estávamos trabalhando hoje de manhã, antes da reunião?
_ Seria ótimo. Preciso manter minha cabeça ocupada antes que eu caia no sono e prejudique meu trabalho.
_ Não quer descansar, parece cansada?
_ Prefiro o trabalho, mesmo que não renda.
_ Não seja por isso. – Ele se levantou, foi até o pequeno bar em sua estante e serviu uma taça de vinho para cada um de nós. – Podemos conversar sobre algo mais leve. – Ele entregou uma taça para mim.
_ Eu não posso ficar aqui. Sou sua secretária, tenho trabalho a fazer depois daquela porta.
_ Não seja ridícula, ninguém vai ficar sabendo que está procrastinando ao invés de trabalhar aqui. E eu sou seu chefe, estou te liberando do serviço momentaneamente. – Ele estava tranquilo.
_ Tudo bem. – Finalmente bebi do vinho e relaxei na poltrona.
Ele ficou me observando curioso. Me senti envergonhada por aqueles olhos inescrupulosos estarem me devorando. Minhas bochechas coraram antes de eu virar meu rosto como um animal acuado. Ele riu de mim, um riso leve, mas tão carregado de malícia que me vez perder o cabeça. Desesperada, bebi um grande gole de minha bebida, fazendo-o rir mais alto.
_ Ok, sobre o que vamos conversar? – Eu disse, tentando voltar ao meu normal.
_ Sobre como anda o seu passaporte. – Ele estava relaxado.
_ Meu passaporte?
_ Sim. Daqui a algumas semanas eu e meu sócio iremos a uma feira de tecnologia nos Estados Unidos e estamos planejando encontrar com investidores asiáticos lá. Precisaremos de sua ajuda.
_ Está em dia, apesar de eu nunca o ter utilizado.
_ Um problema a menos então. – Disse antes de me contar alguns de seus planos para a viagem e terminarmos o dia com ela como um tópico a ser discutido em nossas reuniões matinais.