CLARISSE:
Eu só dirigia.
Sem rumo, sem pressa.
O carro corria pela avenida quase vazio, e o vento entrava pela janela, batendo no meu rosto como um consolo barato.
O silêncio era o único lugar em que eu ainda me sentia inteira, se é que podia me sentir inteira depois de tudo.
Me sentia exausta. Essa era a palavra.
Exausta, porque a vida parecia ter sido c***l comigo de graça. Sem motivo, sem pausa, sem dó.
O sinal fechou e meu celular vibrou. Suspirei, peguei o aparelho.
Uma mensagem. Gusmão.
“— Já pensou no destino, Clarisse?”
Destino. Ele falava de viagem, mas parecia uma ironia.
Eu ainda nem tinha pensado se queria ir realmente, se queria estar com ele.
Desde que Edgar reapareceu, tudo dentro de mim mudou. Uma esperança estúpida começou a latejar lá no fundo, como se fosse possível… como se algo pudesse ser diferente.
Mesmo eu lutando muito contra isso, uma parte de mim, ainda implorava.
Mas não era.
Ele ia casar. Estava noivo.
Despedidas de solteiro nunca eram feitas muito longe da data marcada da cerimónia.
Ele teria o quê? dias, dias apenas, para ele colocar uma aliança em outra mulher.
E eu… eu nunca seria a mulher que destruiria o que ele construiu longe de mim. Nunca.
O único homem que eu amei, o único… não podia ser também a ferida aberta que eu machucaria ainda mais fazendo isso.
Deixando podre a única coisa que podia chamar de "bom". Que já vivi.
Então eu decidi: ia pra longe.
Bem longe. Ao menos por uns dias.
Porque não suportaria estar ali, respirar o mesmo ar, enquanto a poucos quilômetros de distância ele estaria sorrindo em outro altar, em outro abraço, com a mulher que o esperava desde sempre.
E no fundo… talvez eu tivesse sido só isso.
O empecilho entre eles do seu destino real.
Não sabia o que pensar... Mas a decisão foi tomada tão impulsivamente que pareceu ser a mais certa de toda minha vida.
Respondi Gusmão:
—Maldivas, é pra lá que quero ir.
Um paraíso intocado, luxuoso, onde talvez eu pudesse enterrar minha dor no mar azul.
O celular vibrou de novo, mas agora era ligação.
Era ele, atendi.
— Você escolheu bem, vai ser meu presente pra você, Clarisse.
A voz dele vinha firme, animada, mas mudou quando me olhou por mais tempo do que deveria.
— você está abatida…
— Estou bem, Gusmão. Só… foi um dia corrido.
Ele não acreditou. Nunca acreditava.
— Deixa eu te ver. Agora. A hora que você quiser.
Eu mordi o lábio, respirei fundo.
— Precisamos conversar mesmo.
disse baixo.
— Então no mesmo lugar de sempre. Te espero.
Mas eu desviei.
— No restaurante da cobertura. Quero que seja lá.
— Como quiser.
A rota mudou.
E quando cheguei, ele já estava de pé, todo cavalheiro, me esperando. Beijou meu rosto, sorriu como quem ainda acreditava em algo.
— Está linda.
disse.
Agradeci e sentei.
Ele começou a falar da viagem, animado como um garoto. Passagens, hospedagem, tudo nos mínimos detalhes.
Eu esperei, deixei ele sonhar um pouco. Depois, baixei os olhos e falei:
— Gusmão… esse vai ser nosso último momento juntos.
Ele congelou.
— O quê? Como assim?
— Eu não consigo mais. Não sinto o que você espera de mim… o que você dedica a mim. E você tem uma família.
Ele negou com a cabeça, quase rindo de nervoso.
— Minha filha já cresceu. Você sabe. E meu casamento não funciona há anos.
— Mesmo assim. Isso me incomoda. Eu nunca quis ser amante de ninguém. Você não é um cliente qualquer, não é uma noite perdida. São anos, Gusmão…
Ele pegou minha mão, quente, firme.
— Justamente por isso. Confia em mim. A vida dela já tomou outro rumo, está formando a própria família.
Acariciou mais forte meus dedos, com carinho que apertava.
— Fica comigo, Clarisse. Eu largo tudo. Te sustento, te faço minha.
Olhei pra ele, abismada.
— Você…
— Não vou cobrar que você sinta nada.
interrompeu, quase suplicando.
— Só quero você. Não há mais nada que me segure naquele casamento. Minha filha já é mulher… já vai ser mãe.
Meu coração travou.
— Ela está grávida?
Ele sorriu baixo.
— Sim. Mas é segredo. Ela quer surpreender o companheiro.
Nossa... Tantos anos se passaram, a filha dele tinha quase a minha idade, se é que não era a mesma. E já estava esperando o primeiro filho.
Ele voltou a acariciar minha mão, como se pudesse me prender ali.
— Não há razão pra encerrar isso, Clarisse. Você pode abandonar tudo. Ser só minha. Como sempre foi, nesses anos todos.
O jantar chegou impedindo o resto da nossa conversa.
Nunca questionei a ele sobre sua família, quanto mais eu sabia mais suja me sentia. Mas vez ou outra ele me falava sobre o que acontecia fora das quatro paredes que viviamos.
Enquanto confiamos, m*l senti o gosto.
Ele dizia que eu podia pensar, que não havia pressa. Que organizaria nossa viagem.
E eu fiquei ali, encarando o prato, me perguntando se aquilo era mesmo uma proposta.
Se era a saída que eu tanto buscava.
No fim, ele pagou a conta. E com um sorriso convidou:
— Sobe comigo.
Eu sabia a intenção. Sempre soube.
E tudo que eu queria era seguir em frente também.
A proposta dele era tentadora. Segura. Um futuro.
O amor… esse eu sabia que não voltaria a sentir. Mas talvez… talvez com ele eu conseguisse algo parecido com paz.
Talvez até felicidade.
Eu não sabia quando tinha perdido a força para resistir a ele.
Talvez nunca tivesse de verdade.
Subi com ele, ele foi a única coisa segura que tive nesses anos todos.
E ele estava ali... Disposto a me assumir, a fazer o que nenhum outro ousou ou ousaria.
Era como uma oportunidade em um milhão, então porque... Eu não sentia satisfação? Porque... Minha mente desgraçada só queria ser honrosa e não aceitar isso.
Porque ela insistia em pensar em um homem que estava prestes a fazer outra sua!
....
Gusmão estava diante de mim, os olhos tão próximos que parecia enxergar além da minha pele, além daquilo que eu mesma permitia mostrar.
— Me dá uma chance, Clarisse…
ele sussurrou, a voz grave, carregada de uma ternura que me desmontava.
— Eu posso te fazer sentir. Só precisa se abrir pra mim.
Antes que eu pudesse formular qualquer resposta racional, seus lábios tomaram os meus.
Não com a urgência selvagem que eu lembrava do passado, mas com uma delicadeza inesperada, quase reverente.
E eu só queria sentir que nada havia mudado, mas parecia impossível agora.
...