Capítulo 09

1932 Words
MEU CORPO ATRAVESSA a porta, mas minha alma não. A sensação de que ainda estou do lado de fora, observando a casa e uma família arruinada, enche meu peito de amargura. Meus olhos varrem o lugar e alcançam Pilar que está prestes a se sentar novamente no sofá, no mesmo lugar em que esteve sentada quando vim aqui e, que, coincidentemente, agora possui a marca de seu corpo.    — Nem pense nisso — alerto, erguendo a palma de minha mão para impedi-la.    Marjorie que se aproximava para ajudar sua mãe, para em seu lugar, não tão distante, olhando-me confusa. Pilar mantêm-se em pé, igualmente confusa. As janelas estão fechadas e não nenhuma circulação de ar no ambiente, mesmo sendo um dia tão bonito como hoje. Não há um objeto fora do lugar, uma música ou ruído sequer. Um lugar isento de vida, como se...    — Ela precisa descansar, Maitê, você quer matá-la? — exaspera Marjorie, indo até sua mãe e envolvendo-a em seus braços para ajudá-la a se sentar.    — Ninguém vai se sentar, Marjorie. Vocês estão vivendo como se estivessem esperando que a morte batesse em suas portas — explico, caminhando em direção as duas e envolvendo a lateral oposta de Pilar. — Vem, me ajude a leva-la até o quarto dela.    — Eu agradeço a preocupação, mas vocês sabem que eu consigo andar sozinha, não é? — é Pilar quem diz e eu abro um meio sorriso.    — Certo, é verdade, então vamos — indico, e Pilar começa a nos guiar para onde imagino ser seu quarto. Sigo-a sem pestanejar, assim como minha irmã.    — Vamos para onde? — Marjorie pergunta.    — Fazer caminhada. — Dou de ombros.    Marjorie começa a rir desesperadamente e eu franzo o cenho. Seus olhos diminuem e seu rosto ganha uma vivacidade que eu nunca havia visto antes, mas que combina muito com ela. Desvio o olhar e fito minha segunda mãe, que tem um sorriso ladino em seus lábios. Eu disse algo engraçado?    — Ela não faz caminhada nem por um decreto — explica, e dessa vez quem ri desacreditada sou eu, fazendo com que a ruiva, de rosto vermelho e lágrimas nos olhos, me olhe sem entender.    — Essa eu pago para ver.    [...]    A praça da cidade está movimentada. Nela há uma pista de skate, estradas para andar de bicicleta e correr, brinquedos para as crianças, equipamentos para se exercitar, bancos com mesas de concreto e barracas de lanches e bebidas. Ainda há enfeites de natal do ano passado nos galhos das árvores, e nas rampas, desenhos de grafite. Crianças correm e gritam atraindo minha atenção, e a maioria dos adultos as observam brincar, enquanto conversam sobre aleatoriedades do cotidiano.    — Sei que vocês, principalmente a Marjorie — comento com ironia em meu tom de voz, visualizando-a revirar os olhos —, estão muito animadas para se exercitarem, mas antes disso é muito importante se alongar, então me acompanhem.    — Que fique bem claro que só topei isso porque não podia deixar minha mãe vir sozinha com você.    — Coitada... — murmurei, balançando a cabeça. — O primeiro alongamento é para trabalhar os quadris, vocês vão se movimentar como se estivessem brincando de bambolê.    Deixei os pés separados na mesma distância de meus ombros e comecei a circular meus quadris, deixando minhas mãos sobre eles e contando sempre que batia trezentos e sessenta graus até alcançar o número dez. Marjorie e Pilar me acompanharam e fizeram no sentido anti-horário também juntamente a mim.    — Antes de eu descobrir que estava doente, eu amava dançar, e esses alongamentos já eram parte de mim. Meu dia não começava se eu não os fizesse — mamãe revela, e eu sorrio.    — Círculo com os pés agora — anuncio. — Você dançava o que?     Elevamos o calcanhar de um dos pés, ficando na ponta dos dedos e fazendo movimentos circulares com os calcanhares. Repetimos o processo com o outro pé.    — Balé — ela responde. — Walking lunge!    Walking lunge é um alongamento bem conhecido e basta que ela o mencione para que juntemos os pés. Damos um passo para trás com a perna esquerda e com a perna direita, dobramos o joelho até formar um ângulo de 90º.     — E por que parou? Parece te fazer tão bem — constato o óbvio. Apesar de Pilar ser sempre simpática comigo é diferente vê-la com brilho nos olhos e genuinamente feliz; com tamanha leveza na forma como está agindo e conversando.    — Estou sempre tão cansada. — Trocamos as pernas, e observo Marjorie que nem havia começado a exercitar-se, se afastar e se sentar em uma das mesas, puxando o celular de sua pochete. A chateação é notável a partir de suas feições. — É melhor eu ir falar com ela.    — Não — n**o imediatamente, e ela franze o cenho. — Pode deixar que eu vou. Continue se alongando, tá bom?    Não dou tempo que ela retruque, coloco-me de pé e sigo em direção à Marjorie. O ódio e a indignação fervendo em minhas veias. Paro à sua frente e cruzo os braços a altura do peito, esperando que ela erga o olhar, mas ao invés disso, a ruiva me ignora por dois longos minutos. Puxo o celular de sua mão, ganhando sua atenção.    — Ei!     Ela levanta e eu arqueio uma de minhas sobrancelhas. Nossos corpos não muito distantes um do outro, em uma briga silenciosa de ego, ódio e mágoa.    — Você quer ser tratada como criança? Pois bem, é assim que vou te tratar — explico, escondendo seu celular em meus s***s. — Eu só vou te devolver quando conversarmos, então se eu fosse você eu sentava e me escutava.    Ela demora para ceder, até que senta. Faço o mesmo, colocando-me de frente para ela.    — E então, sobre o que quer falar?    — Podemos começar pelo seu egoísmo — ela abre a boca para me interromper, mas ergo uma de minhas mãos para impedi-la de falar. — Eu não estou aqui por sua causa, estou aqui por Pilar, e assim como você, quero o melhor para ela. Eu não vou embora tão cedo, então vou te dizer exatamente o que você vai fazer: vai se acostumar a me ter por perto e na frente dela vai fingir que somos melhores amigas.    — Se não o que? — Há desafio em seu tom de voz, mas dessa vez, isso sequer me intimida, estou cansada de ser sempre a boazinha, aquela que precisa aceitar tudo calada e deixa os outros fazerem o que quiser comigo.    — Se não, você vai ter que se acostumar a não ter nenhuma de nós duas por perto. Vou leva-la para passear, para sair, para onde ela quiser, e você não estará conosco.     O desafio é substituído por incredulidade, tamanha. E um sorriso vitorioso se acende em meus lábios.    — Tudo bem, mas não pense que isso significa que um dia poderemos ser amigas. Isso nunca vai acontecer.    — Você guarda muito rancor para quem não vivenciou nada da vida — comento, retirando seu celular de meus s***s. Ela o pega de minhas mãos assim que o estendo.    — Você não sabe nem da metade — Marjorie dá meia-volta, guardando seu celular na pochete, e caminhando até sua mãe. Deixando-me para trás extremamente pensativa.     O que será que a deixou assim?    [...]    Quando terminamos de nos alongar, iniciamos uma caminhada pela praça. Pilar queria correr, estava tão elétrica que até Marjorie notou que isso a faz muito bem, mas concordamos que por ela estar bastante tempo sem se exercitar, é melhor que retorne aos poucos. Devagar e sempre.    Estamos caminhando apenas há dez minutos, e minha irmã está ofegante como se tivesse acabado de ganhar uma corrida olímpica. Entrego-lhe uma garrafa d’água.    — É melhor se hidratar antes que você desmaie — implico. — Parece que correu uma maratona.      Ela revira os olhos, mas aceita a garrafa, pegando-a de minha mão e abrindo-a. Marjorie bebe o líquido tão rápido quanto possível, eliminando mais da metade da água.     — Acho melhor encerrarmos por aqui, eu não sou a única ofegante — alerta, cutucando-me com o cotovelo. Fito Pilar que está começando a ficar pálida e assinto em concordância.     — Vem, melhor nos sentarmos um pouco — comento, aproximando-me de Pilar e envolvendo sua cintura com um de meus braços.    — Não, eu estou bem, sério — garante, olhando em meus olhos. Assinto. — Podemos continuar, mais cinco... — Ela para de falar e seu corpo fica mole em meus braços, antes de Pilar perder a consciência. Entro em desespero, sentindo um nó se formar em minha garganta, e faço uma das únicas coisas que aprendi com um seriado de medicina: checo seus sinais vitais.    — Marjorie! — grito por ela, que se aproxima rapidamente, enquanto deito o corpo de Pilar no chão e seguro a parte superior em meus braços. — Chama uma ambulância, ela desmaiou.    — Meu Deus, eu sabia que isso era uma péssima ideia — constata, pegando seu celular e discando o número da emergência. — Se tivéssemos ficado em casa nada disso estaria acontecendo.    — Agora não é hora para isso, porr4.    Agora não é hora de fazer eu me sentir culpada, definitivamente não é.    [...]    Marjorie está sentada em uma das cadeiras da recepção, roendo as unhas que sequer existem, enquanto eu ando no hospital de um lado para o outro aguardando notícias de Pilar. A aflição e o desespero por tamanha demora me corroendo aos poucos, sem conseguir evitar a culpa esmagadora em meu peito.    — Familiares de Pilar Duarte? — um médico se aproxima e eu caminho até ele, seguida por Marjorie que se levanta de seu assento e para ao meu lado.    — Somos nós — dissemos em uníssono.    — Vem, sentem-se — diz ao caminhar para uma das cadeiras e indicar outras duas à sua frente.    — O que houve, doutor? — pergunto.    — Ela está bem?    — Ela está estável — ele responde fitando Marjorie, e respiramos aliviadas. Em seguida, o olhar que lança em minha direção me faz perceber que ele tem uma péssima notícia, deixando-me aflita novamente. — Mas o câncer dela está avançando cada vez mais, eu diria que ela tem no máximo cinco meses de vida.    — Cinco meses? — Engulo em seco. — É tão pouco tempo, eu acabei de conhecê-la, precisamos de mais tempo... não há nada que possamos fazer?     — Ela precisa começar a fazer quimioterapia e tomar os medicamentos. Teríamos que interna-la, mas isso poderia lhe dar mais tempo.    — A quimio não é uma opção, doutor — Marjorie diz e eu me volto para ela, incrédula.    — Como assim “a quimio não é uma opção”? — questiono, exasperada. Isso não faz sentido algum. — Ela disse que estava se cuidando, mas sinceramente não é o que está parecendo.    — Ela descobriu o câncer tarde demais, Maitê, optou por ficar em casa com sua família do que ficar presa em uma cama de hospital, esperando a morte chegar — explica, com um suspiro. — Ela não queria que você soubesse, sabia que não entenderia.    — É claro que eu não entendo, ela está esperando a morte do mesmo jeito, Marjorie! Fazer o tratamento ou não, não deveria ser uma escolha.    — Mas é, e está fora de questão.    — Não é você quem decide isso — lembro-a, voltando minha atenção ao médico. — Eu quero fazer o teste de compatibilidade, doutor, mas primeiro eu gostaria de vê-la. Vou convencê-la a fazer o tratamento ou não me chamo Maitê González.
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