Quando saímos do prédio, uma Mercedes preta, luxuosa nos aguardava. O carro estava tão polido, que parecia ter acabado de sair da concessionária.
- Entre - A mulher, que eu ainda não sabia o nome, ordenou. O chofer abriu a porta do carro e ver que ninguém aguardava dentro, foi um grande alivio. Não queria nem pensar, como seria ter que dividir espaço com o estrangeiro bonitão.
Entrei no carro e logo em seguida ela se sentou ao meu lado. A pose arrogante, não deixava de ser elegante. A porta m*l se fechou e o carro já estava em movimento. Definitivamente, eles tinham pressa. Tirei os sapatos dos pés e senti um grande alívio.
- Como devo chamá-la? - perguntei.
- Senhora Lee. - Ela respondeu secamente, colocando o telefone no ouvido.
Olhei aflita para a avenida paulista, as pessoas passeavam pelas calçadas de tênis, sapatilhas e rasteiras, com tanto conforto, enquanto eu me sentia presa em uma gaiola, com um sapato maldito na minha frente. Andamos alguns quarteirões e chegamos a outro prédio espelhado.
Entramos no edifício em passadas largas. A mulher andava como um vulto, tamanha a pressa. Subimos para o trigésimo andar. Meu coração começou a acelerar, de repente tive medo do meu inglês me deixar na mão e não conseguir mais traduzir nada.
- Por aqui senhoras - Um homem de terno, acredito que o segurança, abriu a porta. A senhora Lee corrigiu ainda mais a postura, como se isso fosse possível e entrou na sala executiva, de cabeça erguida e eu atrás dela, caminhei tentando não ser notada, "enquanto mancava". d***a!
O Sr. Lowell estava sentado à cabeceira da mesa. Ele era o próprio deus do olimpo em toda a sua glória. A senhora Lee se sentou à direita do Sr. Lowell e fez sinal para que eu me sentasse na cadeira vazia do lado esquerdo dele.
- Podemos começar - ele disse e um silencio se cravou na sala. Então entendi que deveria traduzir o que ele havia dito. Meu sangue gelou. Haviam pelo menos uns vinte homens de paletó e gravata me encarando, como se a vida deles dependesse disso.
Quando comecei a falar, minha voz estava tão fina como a de uma criança. Eu quase não a reconheci. Limpei a garganta e engrossei o máximo que pude, traduzindo tudo o que o Sr. Lowell falava, ao pé da letra, como orientara a sra. Lee. Ele explicou que estava no Brasil para assumir os negócios do pai, mas que aproveitou a oportunidade para se reunir com eles, para falar sobre um novo jogo, que teria sua estreia na Coreia ainda aquele ano e que em breve seria lançado no Brasil. Pelo que percebi, ele era dono de uma empresa que produzia jogos de RPG e os empresários na sala, eram investidores brasileiros que trabalhavam com ele.
Não foi difícil traduzir o que o Sr. Lowell dizia, pois foram liberados materiais de estudo para a prova de seleção, que tratava justamente sobre os assuntos que ele discutia. No dia da prova, muita gente que dominava o inglês, até mais do que eu, foram desclassificados por falta de profundidade na linguagem técnica, mas eu, como era fã de RPG, me diverti fazendo a prova.
Durante a reunião eles falaram muito sobre novos vírus e novos programas que blindavam os jogos, o que garantia a segurança dos jogadores e investidores. Discutiram também sobre as tendências, campeonatos mundiais e sobre margens de lucros.
Quando ouvi o sr. Lowell falar de bilhões, eu estalei a língua e pedi para que ele repetisse. Não conseguia acreditar que ele falava de bilhões, como se estivesse falando de algo corriqueiro. Olhei pra ele meio duvidosa, apesar de estar com um Rolex no pulso, que eu só vira nas vitrines de grife, quando passeava pelos shoppings, meu avô dizia que as pessoas sempre demonstravam ter mais do que elas possuíam. Mas desta vez, acho que aquele não era o caso.
Eu traduzia as palavras do Sr. Lowell e as pessoas me olhavam com muita atenção, como se tentassem não deixar passar nada, mas quando eu traduzia o que elas diziam, o senhor Lowell só olhava para a pessoa que havia feito a pergunta. Bom, o que quero dizer é que quando traduzia o que ele dizia, me sentir importante, como se eu fosse parte de tudo aquilo e isso me causou uma sensação que jamais havia provado em minha vida. Uma sensação de alguém introduzida naquele meio. Mas quando eu traduzia o que os outros falavam, a forma com que o sr. Lowell me ignorava, olhando apenas para a pessoa que se dirigira a ele, me derrubava de meu pequeno pedestal. Eu o odiei por isso.
A arrogância dele era notória na forma de sentar, na forma de falar, no tom de voz, na segurança que exibia ao se expressar. Não seria r**m se ele tropeçasse e descobrisse que existe um chão abaixo de seus pés.
Quando a reunião terminou, já eram 13h, eu estava esfomeada e com os pés duros e dormentes. Pensei em tirar os sapatos, mas a sra. Lee avisou que almoçaria com eles.
- Você sabe usar talheres? -Ela me fitou intrigada, como se avaliasse meu nível de etiqueta.
- É claro que eu sei usar talheres! - Respondi incrédula.
O que ela pensava de mim? Talvez no país deles, onde usavam palitos, nem todo mundo soubesse usar talheres, mas no meu país, as pessoas já cresciam com garfos e facas nas mãos.
Apesar de eu ter ficado ofendida com a pergunta, a senhora Lee ficou aliviada com a resposta. Repousei minha cabeça no couro macio do carro e esvaziei minha cabeça. Eu com fome não era gente.
O carro parou em frente a um dos hotéis mais luxuosos de São Paulo. Os recepcionistas nos aguardavam com toda a pompa. O Sr. Lowell entrou com a Sra. Lee ao seu lado e eu logo atrás me apressei, antes que alguém me impedisse de entrar.
O restaurante era o lugar mais chique que eu já havia entrado, nem sabia que existia um lugar tão elegante na cidade. O garçom puxou uma cadeira para que eu pudesse sentar, fiquei automaticamente vermelha. Nunca alguém havia puxado uma cadeira pra mim antes. Como um ato tão bobo e simples, pôde me deixar tão desconcertada?
A mesa era redonda e havia um casal nos aguardando. A mulher era jovem, talvez tivesse a minha idade. Ela era alta, o corpo perfeitamente esculpido em um vestido de tecido macio, em um tom suave, com poucos detalhes; ao seu lado, uma bolsa que provavelmente valia mais que um carro. O homem por sua vez, aparentava uns 65 anos. Era visível que ela só estava com ele por causa do dinheiro. Como uma mulher tão jovem poderia ser esposa de um homem três vezes mais velho do que ela?
A senhora Lee os cumprimentou em inglês e apresentou o senhor Lowell e a mim, informando que eu estava ali na qualidade de tradutora. O velho por sua vez disse que falava inglês e não precisaria de tradutora. Fiquei feliz, pois assim conseguiria comer. Já estava sem paciência por causa da fome. Eles começaram a conversar e eu me desliguei deles por completo, afundando minha atenção no cardápio.
Pedi um bife, mas o garçom insistiu que eu deveria pedir uma entrada. Como não seria eu quem pagaria a conta, aproveitei e pedi camarões fritos. Senti a boca salivar. Tirei os sapatos dos pés e aguardei o almoço. Peguei a taça já servida com água e a sequei. Só agora me dava conta de que não havia bebido água todo aquele tempo. Fiquei olhando para as outras mesas, todas as pessoas ali estavam bem arrumadas e falavam baixinho. Os sorrisos eram discretos e pareciam não ter fome, pois mais falavam e riam do que comiam.
A música era agradável e suave. De repente senti o ar se mexer perto da minha orelha e me virei assustada, tocando a minha bochecha nos lábios do Sr. Lowell. Céus, a minha barriga contraiu em um reflexo rápido e meu coração apertou de forma sufocante. Se aproximando ainda mais, ele sussurrou no meu ouvido, fazendo meus pelinhos se arrepiarem.
- Você poderia manter os pés nos sapatos? - Ele perguntou secamente, então percebi que um dos meus sapatos estava embaixo do pé dele.
Puxei o sapato para longe dos pés dele, mas não os calcei. Precisava deixa-los à vontade o máximo possível. O garçom trouxe as entradas, uma verdadeira migalha de comida. Bebi o delicioso vinho e me senti lenta por causa da fome. Realmente as entradas eram só entradas, pois não havia aliviado em nada a minha fome.
Quando o prato principal chegou, outra grande decepção. Sério, aquilo nem de longe conseguiria me segurar de pé o dia todo. A minha cabeça estava doendo de fome. Tive esperança que a sobremesa fosse mais generosa. Pura ilusão. Eu poderia tranquilamente provar de todos os pratos daquele restaurante e ainda almoçar quando chegasse em casa. Por isso aquelas pessoas eram tão magras.
- Parece que você se divertiu bastante - O Sr. Lowell sussurrou ao meu lado, quando saíamos do restaurante. Seu semblante permanecia tão sério, que duvidei se ele realmente tinha falado comigo.
- Até que foi legal. Mas não voltaria aqui - Respondi com sinceridade.
- É mesmo? - Ele pareceu irônico. Dei de ombros.
- Na minha casa me alimento melhor - Também fui irônica.
- Disso eu não duvido! - Ele olhou para o meu quadril e deu um sorriso cheio de significado.
Ele me chamou de gorda? me perguntei sem acreditar na audácia dele. Cara, ele me chamou de gorda! Meu sangue subiu pra cabeça e um monte de palavrões imploraram para sair da minha boca. Filho da mãe, da língua afiada. O pior de tudo era que eu nem estava acima do peso.
O carro do Sr. Lowell seguiu um caminho e o nosso outro. A Sra. Lee não parava de falar enrolado no telefone, certamente com o povo do seu país. Paramos em uma butique, a senhora Lee desceu sem tirar o telefone do ouvido, me fazendo sinal para que eu saísse também.
As vendedoras atenciosas, logo se aproximaram com sorrisos e gentilezas, mas ela as ignorou, passando as mãos ágeis pelas araras. Separando alguns vestidos, ela mandou que eu os provasse. Aparentemente ela ficou satisfeita com suas escolhas. Eu não disse nada. Não pagaria por nada, afinal eu não havia escolhido nada e se por acaso ela quisesse, depois descontar aquelas roupas no meu salário, ela iria me conhecer, pois não estava me matando em cima de um salto alto pra jogar meu dinheiro suado em butiques de luxo na paulista.
A senhora Lee me deixou de molho na recepção do hotel por umas três horas, que aproveitei para ligar para Bia, precisava saber se as coisas estavam em ordem, se o vovô havia almoçado, se a tia Roberta havia ido à igreja.