Eu acordo antes da tranca cantar. O teto aqui em cima tem três rachaduras que eu transformo em constelação toda madrugada. A maior vai de uma ponta à outra, como se alguém tivesse passado uma unha muito grande no concreto. É nela que eu miro quando quero lembrar quem eu sou. Quarenta anos nas costas. Seis anos e três meses fechado. Chefe da firma. Muita gente lá fora respira no meu ritmo, mesmo eu respirando pouco aqui dentro.
A galeria ainda tá meio silenciosa. Um ronco perdido, um resmungo, o arrastar de um chinelo. O cheiro é o mesmo de sempre: desinfetante barato, suor, ferro molhado. A luz fria acende com um estalo e me corta os olhos. Eu sento na cama, passo a mão na barba por fazer e penso na voz dela. Daniela. O jeito que ela descreve o céu parece coisa que eu não via desde moleque, antes do mundo ficar pequeno e eu ficar grande demais pra caber nele.
Eu vim do Complexo. Aprendi cedo a ler dois tipos de mapa: o da favela e o do rosto das pessoas. Com treze eu já carregava recado que se alguém me pegasse eu nem sabia explicar. Com quinze, o barulho da primeira rajada ficou morando no meu ouvido. Com dezenove, eu já era gerente de área; com vinte e três, dono do morro. O resto foi expansão, disciplina, regra. Não é só bala que manda. Quem manda é quem segura a fome da tropa e a cabeça da rua, quem dá saída, quem resolve problema antes de alguém chamar de problema.
Aqui dentro eu continuo sendo eu. Só que com menos espaço. Mudo os métodos, não as decisões. Eu sei quem entra, quem sai, quem tá jurado, quem tá jurando. O telefone aparece quando precisa, some quando precisa mais ainda. Não tem manual. Tem preço. Tem silêncio.
Tenho uma mulher lá fora. "Tenho", entre aspas. Era pra ser. Virou outra coisa. Aprendi a não me apegar em quem não sabe o que vale meu nome, mas às vezes a gente chama de amor o que na real é só costume. Ela foi ficando, eu fui deixando, e quando vi tava usando meu vulgo pra abrir porta. Hoje eu sei que tá se encostando em inimigo, rindo de graça em lugar que meu bonde não pisa. Eu guardo a conta em silêncio. Minha memória é melhor que cartório. Lá fora, quando eu pisar, eu resolvo do meu jeito. Sem alarde, sem barulho pra vizinho.
A cela fica estreita quando a cabeça lateja. Eu levanto, faço flexão devagar, um, dois, três... até o corpo lembrar que manda no pensamento. O companheiro de cela vira pro outro lado e finge que dorme. Ele sabe: quando eu tô acordado é melhor a cela não falar.
Penso no passado como quem abre gaveta: minha mãe com mão de salão improvisado, penteando moça no degrau, passando pente fino em hora de jogo. Meu irmão mais velho rindo alto, depois calado de vez. O primeiro tênis caro, comprado com dinheiro que não cheira a loja. O primeiro "tu resolve" dito pra mim. E eu resolvi. Sempre resolvo.
A cadeia tem relógio próprio. Tem a hora do barulho, a hora do soco no ferro, a hora do silêncio mandado. Tem a hora do banho de sol que dura menos do que devia. Tem a hora da visita que eu não faço questão. Quando a advogada vem, eu ouço, assino, mando recado. Quando recado volta torto, eu paro tudo até endireitar. Melhor perder dia do que perder respeito.
A voz da menina da roça veio torta por acaso. Era pra outra pessoa, eu digitei um número que não era. Mandei, no automático, só pra ver se do outro lado alguém entendia a urgência do meu tempo. Veio ela. O que me pegou não foi a curiosidade: foi a honestidade sem pose. Quem nasce com muito vento no ouvido fala diferente. Eu reconheço de longe.
Quarenta anos dão margem pra lembrar e selecionar o que presta. Eu não romantizo nada do que fiz. Não me arrependo também. Arrependimento não conserta morto. Eu olho pra frente porque quem manda não pode olhar pra trás por muito tempo. Perde o passo.
Tem cara que se perde aqui dentro porque acha que o mundo acabou. O mundo segue. Eu só tô vendo por outra janela. Eu escuto notícia por outras bocas, sinto cheiro de rua pelas frases dos outros, conto o andar dos meus através do silêncio que eles me dão. Se o silêncio vem certo, tá tudo certo. Se vem torto, eu ajeito.
— FL, café. — o plantão grita do corredor, voz grossa rebatendo no metal.
— Joga aí. — respondo, sem levantar o olho. O copo de plástico chega por baixo da grade, o cheiro vem queimado. Eu tomo devagar. Café r**m também acorda.
Meu corpo é um repertório de marcadores: cicatriz no ombro esquerdo de um fim de baile que virou começo de guerra, linha fina no lábio de uma conversa que não deu certo, riscado no joelho de quando eu caí correndo por uma viela molhada. Cada marca me lembra do preço que paguei e do preço que cobram por mim.
Eu não falo de amor. Amor é palavra que pedem pra justificar fraqueza. O que eu respeito é lealdade. Lealdade não muda com temperatura, não cede com vento. Se cedeu, não era. Minha mulher lá fora cedeu. Se deitou com inimigo, virou inimiga. Eu não discuto com traidor. Eu finalizo. Não é promessa, é política interna.
Tem noite que a galeria lateja. A gente sabe só pelo ar quando vai dar r**m. Tem tarde que chega recado quente, a gente corta na origem. Tem manhã que parece inocente e carrega veneno. E tem madrugada que estica quieta, trazendo de volta coisa que a rua roubou da gente: a vontade de ouvir qualquer coisa simples, como alguém descrevendo a lua minguando.
Quando lembro que fiz quarenta aqui dentro, eu rio pouco. Me deram bolo de aniversário com pão amanhecido, botaram vela imaginária, bateram na grade de leve. Eu agradeci. Depois, deitei e contei: quarenta. Seis fechado. O número não me define. O que me define é quem ainda fala meu nome sussurrado lá fora. E o que eu ainda decido, mesmo trancado.
Eu tenho tempo. Tempo é o único luxo real da cadeia. Quem conta errado se perde. Eu conto certo. Eu organizo a fome, a raiva, a vontade. Eu guardo munição que não faz barulho: palavra, informação, silêncio. O resto é execução quando a porta abrir.
A porta sempre abre.
— Bora, FL, banho de sol. — o mesmo plantão, mais alto.
— Já desço. — respondo, levantando, o joelho estala. Tranco o olhar nas rachaduras do teto como quem assina presença na própria cabeça. Pego o chinelo, ajeito a bermuda, encosto a mão na parede fria. A parede não responde. Eu respondo por mim.
Lá fora do pátio, o céu que eu não vejo hoje fica na voz que eu ouvi ontem. Tô inteiro. E se alguém perguntar, eu n**o. Chefe não explica o que não precisa de explicação.