4. Daniela

722 Words
Guardo o celular na gaveta da cômoda, abaixo da toalha bordada da minha vó. Deixo lá, desligado da tomada, como quem esconde uma carta sem remetente. Eu poderia continuar a conversa. Mas não quero. Ou talvez queira e tô fingindo que não. Levanto da cama com a coluna reclamando e o estômago já roncando. A casa tá acordando devagar. O cheiro de fumo que meu pai acende toda manhã já começa a se espalhar, e minha mãe tá arrastando cadeira na cozinha. Ouço ela resmungando com o rádio que não pega estação direito. — Bom dia, Dani — ela fala assim que me vê na porta. Tá com a vasilha de farinha na mão e uma camisola velha coberta por um avental. — O leite já subiu? — Ainda não, tô indo agora — respondo, pegando a garrafa térmica e minha caneca. Passo pela varanda com os pés descalços, sentindo o cimento frio sob a sola. O céu tá limpo, mas o sol ainda é manso. Acordar cedo aqui não é escolha, é parte do contrato invisível que a roça impõe pra quem vive dela. Pego o balde de alumínio e sigo pro curral. As galinhas me cercam no caminho, esvoaçando e cacarejando, como se me cobrassem atenção. Eu dou um assobio curto e elas correm, assustadas. Toda manhã a mesma dança. O gado tá quieto, mastigando preguiça. Me aproximo da Morena, a vaca mais velha, e começo o trabalho com calma. O barulho do leite batendo no balde é quase hipnótico, e por um momento me sinto inteira ali, naquela cena repetida de todo santo dia. Aos poucos, tudo entra no eixo. Recolho os ovos do galinheiro, jogo ração pros porcos, limpo o bebedouro dos carneiros. O cheiro da roça é forte, mistura de mato, barro e bicho. Quem não nasceu aqui, estranha. Mas pra mim, é como perfume. Dudu aparece depois das oito, coçando os olhos e resmungando que queria dormir mais. Entrego o balde pra ele, cheio de verduras colhidas na horta, e mando ajudar minha mãe. Ele bufa, mas vai. De volta à cozinha, lavo as mãos, amarro o cabelo de novo e começo a picar cebola pro arroz. Meus pensamentos já tão longe do celular. Volto a focar no que precisa ser feito. A lenha no fogão, o feijão da janta que já pode ficar de molho, o varal que preciso olhar antes que as nuvens venham. As horas passam e o dia corre como sempre. Sem pressa, mas também sem pausa. Depois do almoço, a rede me chama. Me deito por alguns minutos, com a barriga cheia e o corpo pesado. Os meninos tão lá fora, jogando bola perto do chiqueiro, e minha mãe cochila com o rádio baixo no ouvido. Fecho os olhos. Não penso no número desconhecido. Não penso no que ele disse. Tento não pensar em nada, mas uma parte de mim sabe que algo daquela conversa ficou. Uma palavra, um tom. Uma quebra de ritmo. Só que eu tenho mais o que fazer. Levanto, vou lavar roupa no tanque. A pilha tá grande. O sabão caseiro que minha mãe fez na semana passada já tá quase no fim. A água gelada morde meus dedos, mas eu gosto da sensação. Gosto de esfregar cada peça como se pudesse limpar mais do que só sujeira. Como se pudesse esvaziar a cabeça junto. As crianças passam correndo, chutando uma bola murcha, rindo alto. Dudu grita que a Milena roubou o gol, e ela se defende de língua de fora. Sorrio. Meus irmãos são minha bagunça preferida. No fim da tarde, o céu começa a mudar de cor. Do azul forte pro dourado pálido, e depois um laranja queimado que faz as nuvens parecerem brasas. As cigarras começam a cantar, e o vento traz cheiro de chuva distante. A vida aqui é assim: tudo muda, mas tudo continua. E às vezes a gente nem percebe quando alguma coisa nova entrou. Só nota depois, quando é tarde demais. Mas agora, eu ainda tenho roupa pra recolher, pão pra fazer, e criança pra acalmar antes da noite cair de vez. É isso que eu faço… Deixo o pão sovando, leite fervido e o feijão de molho. Aproveito o silencio para dobrar as roupas sem ninguém falando na minha cabeça e deixo encima da mesa pra não acordar ninguém.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD