Acordo antes do g**o. Ainda é preto lá fora e, mesmo assim, eu já sinto o dia pedindo pressa. Lavo o rosto, prendo o cabelo num r**o de cavalo apertado e puxo a camisa de algodão que não me dá pena de suar. A casa respira aquele cheiro de café coado no pano e lenha queimada, de algum jeito, esse cheiro sempre me endireita por dentro.
— Daniela, confere as caixas de alface e couve — minha mãe fala baixo, pra não acordar os pequenos. — E pega os ovos que tão na geladeira. Os maiores ficam pra Dona Lourdes.
Assinto. Pego as caixas, confiro folha por folha, tiro as amassadas, borrifo água numa garrafinha com furo na tampa pra deixar tudo brilhando, com cara de pronto. O raminho de cheiro-verde vai por cima, amarrado com barbante fino. Os queijos frescos estão embrulhados em pano branco, o doce de leite, em potes com tampa vermelha, o mel, em garrafas reaproveitadas, rótulo colado de qualquer jeito. Tem também banana prata, abóbora partida no meio com semente ainda grudada, tomate pequeno de pele firme, dos bons pra salada.
Na varanda, meu pai amarra as caixas na carroceria da camionete. O barulho da corda na madeira é áspero, mas me dá segurança. Ele sabe dar nó bom: firme, sem exagero.
A estrada até a cidade é um caminho de poeira que o vento levanta e leva. O frio morde a ponta do nariz, a camionete pula nos buracos como se estivesse viva. Passam por nós duas maritacas discutindo, um caminhão de leite que buzina curto, um ônibus de linha com gente sonolenta encostada no vidro. Eu abraço as caixas com o corpo cada vez que a traseira pula, e rio sozinha: vou chegar com cheiro de horta.
A feira já está acordada quando a gente entra na rua principal. Lonas coloridas armadas por cima das bancas, gambiarras penduradas com lâmpadas amarelas, serragem jogada no chão pra segurar o barro. A música que vem de um rádio pequeno alterna entre forró antigo e locutor falando rápido um anúncio de colchão. Cheiro de pastel fritando, caldo de cana sendo moído, laranja descascada em espiral, peixe fresco com gelo derretendo.
A gente estaciona no nosso ponto de sempre, logo depois do homem do queijo curado e antes de uma banca de utensílios de alumínio que faz barulho de orquestra desengonçada. Eu e meu pai desmontamos as caixas, organizamos as verduras em montinhos, três pés de alface por tanto, maço de couve por tanto, tomate em quilo. Coloco uma plaquinha de lousa: "Sítio Ramos - tudo da roça, sem veneno". A lousa foi a Milena quem desenhou, com letra torta e coração no ponto do "i".
— Bom dia, Dani — Dona Lourdes chega cedo, como sempre, com a sacola de tecido e a pressa tranquila de quem não corre, mas nunca se atrasa. — Eu quero o mesmo de sempre.
— Sim senhora — respondo, já separando, já embrulhando. — Leva esse aqui, mais firminho, boa cura. E esse doce tá no ponto.
— Tu capricha como ninguém — ela sorri, os olhos fundos e brilhantes.
Amanhece de vez. A feira engrossa. Vem gente da cidade, do sítio, do bairro do lado. Perto do meio da manhã, o sol já joga luz pelas brechas das lonas. O calor levanta, e eu borrifo água de novo nas folhas pra dar aquele brilho de chuva falsa.
— Dani, tem troco pra cinquenta? — meu pai me passa a nota por cima das couves.
— Tenho — digo, e abro o saquinho. Conto rápido, confiro, devolvo. Minha mão já tá no automático.
No canto da banca, deixo um potinho de palito de dente e uns pedacinhos de queijo pra provar. Quando ninguém tá olhando, eu mesma pego um e deixo derreter na boca. É o nosso. Tem gosto de casa. Gosto de vaca que eu conheço o nome.
O celular, no bolso do short, vibra uma vez. Sinal aqui é irregular. Tiro o aparelho, olho rápido, só por reflexo. Nada de novo dele. Eu guardo de novo, quase aliviada, quase desapontada. Não tenho tempo pra ficar pensando nisso agora. A feira exige todo o meu corpo: mãos, olhos, voz.
O barulho da prensa do caldo de cana me chama. O moço do carrinho gira a manivela com braço grosso, a cana geme e solta um cheiro doce que quase dá tontura. Eu compro dois copos (um pra mim, um pro meu pai) e volto pra banca com líquido verde-claro tremendo. O gole gelado lava a garganta e põe energia de novo no corpo.
Uma mulher jovem, com filho no colo, me pergunta se a gente aceita PIX. Eu faço que sim, aponto o papel plastificado com a chave. O celular vibra no bolso, eu tiro por reflexo pra conferir a notificação do banco. E junto vem outra vibração, mensagem.
"Bom dia."
O número é o mesmo. O corpo endurece um segundo. O mundo, porém, não para: uma cliente pede o último maço de couve, um homem quer saber se o tomate tá no quilo mesmo, Dona Lourdes volta pra pegar "só mais um queijo, minha filha, pra nora que apareceu do nada". Eu guardo o celular sem responder.
O sol sobe mais um pouco e a lona vira estufa. Eu molho as folhas de novo, amarro sacolas, confiro troco. Ouço alguém, do lado da banca do peixe, falar alto um nome de bairro que eu reconheço da cidade, longe daqui.
Quase perto do meio-dia, as coisas começam a rarear. Os tomates mais bonitos já foram, o cheiro-verde sobrou só uns dois maços, o doce de leite restou um pote. Eu separo pro Seu Norival, que sempre volta no fim pra "um agrado pra patroa". Ele vem, como previsto, faz que está caro, eu rio, ele paga, a vida segue.
Quando desmonto a banca, já penso no feijão que vai pro fogo, na roupa que precisa enxaguar, nas mãos que eu vou lavar e vão continuar com cheiro de folha. A camionete enche de novo, as cordas cantam contra a madeira, meu pai dá dois tapas na traseira e diz "bora".
Antes de subir, eu pego o celular. Abro a conversa. "Bom dia", ele escreveu. Uma mensagem só, sem insistência, como quem encosta a mão na porta e espera do lado de fora.
Olho em volta: o barulho da feira amansa, a poeira baixa, o sol cai um pouco. Eu penso se respondo.
Escrevo:
"Dia de feira. Tá corrido. Depois eu falo."
Envio. Guardo o telefone no bolso, subo na camionete. Meu pai liga o motor, a camionete reclama e obedece. A estrada de volta nos espera com poeira e uns buracos que eu já sei de cor.
A cidade fica pra trás, o mato abre, de novo, como cortina. Lá longe, o céu já começa a inventar nuvem de tarde. Eu encosto a cabeça no vidro e deixo a vibração do carro me embalar. O corpo pede banho e rede.
Amanhã tem mais horta. E, se o sinal deixar, talvez tenha mais palavra também. Por enquanto, eu só quero o silêncio da nossa estrada e o barulho da nossa cozinha. Isso, eu sei lidar.