Depois do jantar, a casa foi desacelerando aos poucos, como sempre. A louça lavada, os pratos virados escorrendo na pia. Minha mãe sentada na cadeira de balanço, com as pernas cobertas por uma manta fina, tricotando com aquele olhar meio distante, meio cansado. Meu pai escorado na porta, olhando pro escuro lá fora, escutando o barulho dos grilos como se fosse música.
Os meninos mais novos começaram a ficar inquietos. Dudu já tava jogando travesseiro no Caio, e a Milena corria de um lado pro outro com uma boneca torta de pano na mão. Eu respirei fundo e me levantei da rede, esticando os braços e sentindo o corpo pedir descanso. Mas sabia que ainda não era hora de parar. Não enquanto os pequenos ainda estavam ligados no 220.
— Bora pra cama, minha tropa — falei, já indo em direção ao quarto que dividia com os três.
— Mas eu nem tô com sono — Caio reclamou, jogando o travesseiro em mim agora.
— Vai, Caio... — resmunguei, pegando o travesseiro e batendo de leve na cabeça dele. — Não começa.
Apaguei a luz do corredor, deixei só o abajur ligado no quarto. A claridade era morna, amarelada, como sempre. Trazia um certo conforto. A janela tava meio aberta, e o vento que entrava era fresco, com cheiro de noite úmida e terra viva. Um cheiro que só quem cresceu no mato conhece.
Milena subiu na cama dela com a boneca abraçada no peito. Deitou de lado, os olhos enormes me encarando com aquela expectativa silenciosa.
— Dani, conta uma história? Aquela do sapo que virava príncipe?
— Ih, essa de novo, Mi? Tu já sabe de cor... — sorri, sentando ao lado da cama e ajeitando o cobertor nela.
— Mas eu gosto... — ela respondeu baixinho, os cílios quase tocando as bochechas.
Caio já tava deitado, mas fingia que não tava ouvindo. Ele era mais velho, mas eu sabia que também gostava. E Dudu, do lado dele, brincava com um carrinho improvisado feito de tampa de garrafa e palito de picolé.
— Tá bom. Mas hoje o sapo vai ser diferente — comecei, ajeitando o travesseiro atrás das costas e puxando Milena mais pra perto. — Esse sapo aqui... morava num açude lá no meio do mato. Era sozinho, ninguém queria saber dele. Diziam que ele era feio, esquisito, e que falava com os passarinhos.
— Igual o Tico! — Caio gritou, e os outros riram. Tico era um senhor que morava num sítio perto e vivia falando com os bichos.
— Shhh... deixa eu contar. — falei, rindo também. — Esse sapo, um dia, ouviu um barulho vindo da estrada. Era uma menina, sozinha, com um vestido azul e um laço no cabelo. Ela tinha se perdido do pai, e tava com medo. Mas quando viu o sapo, não gritou, não correu. Ela parou, olhou bem nos olhos dele e disse: "você pode me ajudar?"
Milena já tava bocejando. Caio virado pro lado, de olhos fechados. Dudu ainda resistia, mas os movimentos com o carrinho já estavam mais lentos.
— E o sapo disse: "se você confiar em mim, eu te levo pra casa." E foi assim que ela subiu nas costas dele, e os dois atravessaram o mato, o riacho, o pasto, até achar o caminho de volta. E quando chegaram na porteira, sabe o que aconteceu?
— Ele virou príncipe? — Milena murmurou, quase dormindo.
— Não... ele continuou sapo. Mas, pra ela, ele já era o príncipe desde o começo.
O silêncio caiu no quarto, denso e tranquilo. O tipo de silêncio que só existe quando a gente se sente seguro. Me levantei devagar, beijei a testa da Mi, do Dudu, e até do Caio, que fingia dormir. Saí do quarto deixando a porta encostada, como sempre fazíamos.
Na sala, minha mãe já tinha apagado a luz, e só a brasa do cigarro do meu pai brilhava no escuro da varanda.
Fui até a cozinha, peguei um copo d'água, e de volta no meu quarto, sentei na beirada da cama. O ventilador fazia um zumbido baixo, hipnótico. Peguei o celular. Ainda com sinal. Uma ou duas barrinhas. Tela acesa. Nenhuma notificação nova.
Mas eu continuei ali, olhando pra luz fria da tela, sem saber o que exatamente eu esperava.
Talvez uma novidade. Uma mensagem. Um motivo qualquer. Qualquer coisa que quebrasse o ciclo calmo, e silenciosamente sufocante que era a minha vida ali.
Mas naquela noite, só havia o som do mato, o cheiro de terra e o peso gostoso do amor que eu sentia pelos meus irmãos.
Queria sair e ir viver minha vida também. Mas a culpa de deixar meus irmãos e meus pais me machucam. Esse é o peso de ser a mais velha que nenhum dos três vão ver, porquê tudo que eu puder fazer pra evitar que eles sintam essa sobrecarga, eu vou evitar.