🔥🖤 NARRAÇÃO — AMARA
Tenho dezessete anos.
Mas já vi mais inferno do que muita mulher de trinta.
E o nome do meu inferno é Regina — minha madrasta.
Acordo com grito. Durmo com ameaça.
Minha casa fede a cigarro, pinga barata e ressentimento.
Parece lar, mas é só cenário de tortura com telhado.
A mulher que o meu pai trouxe pra dentro depois que a minha mãe morreu…
ela nunca quis ser mãe.
E fez questão de me lembrar disso todos os dias.
A mãe…
A minha mãe era flor em campo minado.
Delicada e forte ao mesmo tempo.
Morreu cedo demais, deixada numa maca fria com o corpo sem alma e o meu coração esfarelado no canto.
Câncer, foi o que disseram.
Mas pra mim, foi tristeza.
Ela não aguentou ver o homem que amava virar um estranho.
E esse estranho... virou marido de outra.
O meu pai se perdeu quando ela partiu.
E no desespero de não lidar com o luto, casou com a primeira que se ofereceu pra "cuidar da casa".
Mas Regina nunca cuidou.
Ela consumiu.
O dinheiro, o respeito, a paz.
Ela cheira, bebe, joga.
E quando tá chapada... desconta em mim.
Já jogou prato, me trancou no banheiro, gritou que devia ter me matado.
Mas eu não choro.
Não por ela.
Porque chorar aqui é pedir pra ser pisada.
Aprendi a engolir.
A suportar.
A me calar com tanto ódio que parece que tenho pedra no lugar da garganta.
Eu falo pouco.
Olho firme.
Orgulho enfiado no osso.
Na escola, sou a que senta no fundo.
Que ninguém zoa.
Ninguém cutuca.
Porque sabem que eu mordo.
Não tenho amigas.
Não confio em ninguém.
Quem vive cercada de veneno, aprende a respirar por conta própria.
A única coisa que ainda me faz lembrar que sou humana é o caderno escondido embaixo da cama.
Escrevo nele quando a casa vira inferno.
Poemas que ninguém vai ler.
Palavras que escorrem em silêncio.
É ali que minha mãe ainda vive.
É ali que eu respiro.
Mas ultimamente… até isso tem perdido cor.
Depois que meu pai morreu, o mundo ficou mais frio.
Mas não aquele frio que gela o corpo…
é o tipo que congela por dentro.
Congela os sonhos, a fé, a vontade.
Na certidão de óbito: morte natural.
Na minha cabeça: assassinato disfarçado.
Regina foi a última a vê-lo vivo.
E a primeira a botar a mão nos documentos.
Nunca chorei aquele enterro.
Não consegui.
Fiquei em pé o tempo todo, igual uma estátua rachada.
A vizinha veio me abraçar, e eu endureci o corpo.
Não queria consolo.
Queria justiça.
Mas justiça não vive em casa pobre.
E muito menos quando a assassina dorme do outro lado da parede.
Faz um ano que comecei a trabalhar num mercado na cidade alta.
Empacotadora.
De segunda a sábado.
Uniforme vermelho desbotado, cabelo preso, crachá com nome errado.
“Tamara.”
Eles nunca se importaram em corrigir.
Lá, ninguém sabe da minha vida.
E é assim que eu gosto.
O gerente é um babaca que gosta de dar bronca só porque pode.
As clientes me olham como se eu fosse vírus.
Mas é o mais perto de liberdade que eu tenho.
Saio antes do sol nascer. Volto já de noite.
E às vezes penso em não voltar.
Pegar um ônibus qualquer.
Sumir.
Virar poeira.
Mas aí lembro da Regina.
Do que ela faz.
Do que ela é.
E não consigo ir embora sem ver ela pagando.
Hoje voltei cansada.
Pé doendo. Cabeça explodindo.
Mas quando abri a porta, soube que algo tinha mudado.
A luz da sala tava fraca.
A janela escancarada, mesmo com o vento frio.
Regina tava com a cara mole, afundada no sofá feito lesma em colchão velho.
Um copo quase vazio na mão, e o isqueiro brilhando entre os dedos.
O cheiro de cachaça e cigarro já batia no nariz antes mesmo de eu fechar a porta.
— “Olha só quem resolveu aparecer.”
A voz dela saiu arrastada, debochada.
— “A empregadinha do mês.”
Fingi que não ouvi.
Soltei a mochila no chão e fui em direção ao meu quarto.
— “Ei!” — ela se levantou, cambaleando. — “Tô falando contigo, sua p***a muda.”
Senti a raiva subir pela espinha, mas respirei fundo.
Ela veio até mim, os olhos vermelhos, a pele suada, a boca tremendo.
Parou perto demais.
Perto o suficiente pra eu sentir o bafo azedo.
— “Tu acha que é melhor que eu, né?”
Cuspiu as palavras com desprezo.
— “Só porque trabalha num mercadinho de merda e chega aqui toda durinha, toda cheirosinha...”
Eu não respondi.
Ela deu uma risadinha torta, c***l.
— “Sabe o que tu é, Amara?”
Encostou o dedo no meu queixo.
— “Tu é desperdício de carne. Só isso.”
Desviei o rosto.
Ela segurou meu braço, apertando.
— “Mas quer saber?” — sussurrou. — “Tu daria uma boa mercadoria…”
Meu corpo gelou.
Ela riu.
— “Com esse rostinho de santa e esse corpinho magricelo… homem pagaria caro. Aposto que até sem abrir a boca tu renderia mais que essa tua cara fechada todo dia.”
Soltei meu braço com um puxão seco.
— “Vai se foder.”
Foi o que saiu. Seco, direto, sem vacilo.
O olhar da Regina mudou.
Na hora.
Virou um poço fundo de ódio com sede de sangue.
Ela não tava bêbada o suficiente pra deixar passar.
— “Repete, vadia.”
Ela avançou.
Antes que eu recuasse, a palma da mão dela já tinha estalado na minha cara.
Um tapa seco, de quem não quer ensinar, só ferir.
Minha cabeça virou com o impacto, mas não caí.
Cuspi no chão. O gosto de ferro invadindo a boca.
Ela me encarava, esperando eu chorar.
Esperando eu pedir desculpa.
Esperando eu baixar a cabeça como sempre.
Mas eu levantei o queixo.
Firme.
— “Vai ter que bater mais forte se quiser me dobrar.” — sussurrei.
Ela arregalou os olhos, surpresa.
Por um segundo, Regina viu.
Viu o que ela mesma criou: Uma menina feita de farpa e faca.
Ela bufou.
Me empurrou contra a parede.
— “Tu tá achando que é o quê? Mulher feita? Vai me encarar agora, é?”
— “Tô achando que eu sou o que sobrou, Regina.” — falei entre os dentes.
— “E o que sobrou… não quebra fácil.”
Ela levantou a mão de novo.
Mas dessa vez eu segurei.
Forte.
Pela primeira vez.
Ela ficou me olhando, surpresa.
E pela primeira vez… ela hesitou.
— “Tira essa mão de mim.” — rosnou.
— “Tenta me bater de novo e eu juro que vou te deixar com medo de dormir.”
Soltei devagar.
A pele dela tava suando, escorregando.
Ela me encarou mais um segundo… e recuou.
Foi cambaleando de volta pro sofá, murmurando coisas que nem o d***o escutaria.
Eu entrei no quarto e tranquei a porta.
Não tremi.
Não chorei.
Abri o caderno.
Escrevi com letra cortada:
> “Hoje ela viu.
Viu que eu sou a cicatriz que ela criou.
E cicatriz… não sente mais dor.”
Me deitei com a cara virada pra parede.
O rosto ardia, mas o peito… o peito queimava mais.
Amanhã vai doer mais.
Mas hoje… eu não fui presa.
Fui ameaça.
E isso, Regina… nunca vai esquecer.
O caderno ainda tava aberto.
A caneta escorrendo angústia na folha.
Eu com o rosto virado pra parede, tentando fingir que o mundo lá fora não me atravessava mais.
Foi quando a porta se escancarou com tudo.
Sem aviso. Sem batida. Sem permissão.
— “Arruma tuas coisas.” — a voz da Regina veio cortando o ar. — “Tu sai dessa casa em uma semana.”
Eu virei o rosto devagar.
Me sentei na cama, sem entender.
— “O que você tá falando?”
Ela entrou no quarto com o mesmo sorriso torto de antes.
Mas agora… com algo a mais.
Um gosto de veneno fresco na voz.
— “Tô falando que finalmente tu vai ser útil.” — ela disse, cruzando os braços. — “Te vendi.”
Meu estômago virou.
— “O quê?”
— “Te vendi, Amara. Pros cara do tráfico.”
Ela falou como se estivesse dizendo o valor do gás ou o preço da carne.
Fria. Cínica.
— “Igual se vende um pedaço de carne. Uma dívida é uma dívida.”
— “Não… não, não, não…”
A minha voz saiu falhada.
O chão se abriu.
— “Você não fez isso, Regina. Diz que não fez…”
Ela riu. Baixo. Um som podre, que fede a maldade.
— “Fiz sim.” — disse, com os dentes sujos e o orgulho limpo. — “E fiz foi tarde.”
Meu coração batia errado. Batia como se quisesse sair do peito e me abandonar também.
— “Tu acha que essa casa se sustenta com teu salário de empacotadora, sua ingrata? Hein? Tu acha que eu vou perder minha vida, respeito por tua causa?”
Ela se aproximou devagar. Cada passo dela era um prego cravando fundo na minha pele.
— “Tu sempre se achou melhor que eu. Sempre com essa cara fechada, essa pose de santa. Mas no fundo… tu não vale mais que um corpo em vitrine.”
— “Cala a boca…” — sussurrei, mas ela nem ouviu.
— “Eles pagaram bem. E ainda me livraram da dívida. Troca justa. Tu vai subir o morro como encomenda. E vai ficar por lá.”
— “Não…” — minha voz era só um sopro agora.
Ela deu um passo pra trás, foi até a porta. Segurou a maçaneta com um brilho estranho nos olhos.
— “Se eles vierem antes, melhor ainda. Já deixo tu presa aqui. Ninguém foge do que deve.”
E antes que eu corresse, gritasse, batesse nela, ela girou a chave por fora.
CLAC.
Trancada.
Na minha cela.
Na minha sentença.
— “REGINA, ABRE ESSA PORTA!” — berrei, socando com toda a força. — “DESGRAÇADA! MONSTRA! ABRE ESSA p***a!”
Mas só ouvi o som do isqueiro sendo aceso lá fora. E o volume da TV subindo.
Sentei no chão, de costas pra madeira. A respiração descompassada.
As mãos tremendo.
As lágrimas… finalmente vieram.
Eu, que não chorava por nada.
Eu, que sempre aguentei calada.
Eu, que tinha pedra no lugar da garganta…
Desabei.
Mas ali, no meio do colapso, algo se acendeu.
Um ódio limpo.
Um desejo frio.
Não de fugir.
Mas de sobreviver.
Porque ela me vendeu como se eu fosse mercadoria.
Mas esqueceu de avisar que essa mercadoria…
morde.
E morde pra matar.