O salão reluzia com luzes douradas, espelhos imensos e talheres que jamais haviam sido tocados por mãos humildes. Era mais uma daquelas noites em que a alta sociedade mexicana se reunia para rir alto, exibir suas joias e bajular Cesáreo Pérez.E Mar... Mar sorria.
Sorria como uma boneca de porcelana — treinada, fria, linda. Tinha aprendido desde cedo que sua dor deveria se esconder sob maquiagem e vestido justo. Naquela noite, como tantas outras, usava um vestido longo, de tecido pesado, preso com um broche de esmeralda que pesava no peito. O corpo doía, a alma doía mais, odiava aquela vida de esposa troféu, não era hipócrita, nunca foi, não era que achava a pobreza atrativa, não era, mas o luxo encapado com dor e sofrimento também não era atrativo.
Sabia o que viria quando a noite terminasse. Cesáreo estava sorridente, simpático, orgulhoso de exibir a esposa como um troféu, mas quando as portas se fechassem e os convidados partissem, ele exigiria. Como sempre fazia.
Mar respirou fundo.
Recebeu cumprimentos de mulheres que a invejavam, de homens que a devoravam com os olhos, e de bajuladores que sussurravam elogios falsos como serpentes sorridentes. Ela inclinava a cabeça, agradecia com um leve aceno. Mas estava distante.
Quando se aproximou do piano, sentiu alívio. Pelo menos, por alguns minutos, podia esconder o corpo atrás do instrumento, podia demonstrar a sua dor através da música.. Tocou com a alma, porque era isso que lhe restava. Cantou também — uma canção suave, que falava de distância, silêncio e cicatrizes. Estava grata por não ter sido forçada a dançar balé naquela noite. Detestava quando Cesáreo a colocava no centro do salão como uma bailarina de caixinha de música para satisfazer o ego dele.Não queria ser a estrela da noite. Queria ser invisível.
Abaixou o rosto, os dedos ainda deslizando pelas teclas. Mas então se lembrou — não podia abaixar a cabeça. Nunca, Cesáreo odiava, mandava levantar o queixo. Dizia que mulher dele jamais pareceria fraca.
Ergueu os olhos com esforço.
E então o viu.
No fundo do salão. Entre sombras e colunas de mármore, havia um homem parado. Usava touca preta, sobretudo pesado. O rosto estava parcialmente encoberto, mas os olhos... Os olhos atravessaram o salão inteiro e cravaram nela. Olhos escuros, incendiários., dolorosos e acusadores.
Ela congelou, o som do piano perdeu sentido. A canção se quebrou em silêncio, o olhar dele era como lâmina. Como se a julgasse. Como se dissesse: Você faz parte disso e você permitiu.
Ela tremeu.
Não o conhecia, mas algo nele... algo gritava perigo. E, ainda assim, era o primeiro olhar verdadeiro que recebia em anos. Um olhar que não queria possuí-la. Queria vê-la por inteiro — e talvez destruí-la junto. Quando olhou de novo, o homem já não estava mais ali, e voltou a tocar bem como sempre.
A última nota do piano m.al havia silenciado quando o salão irrompeu em palmas calorosas. Mar se curvou em agradecimento, escondendo o enjoo que crescia no estômago. Ainda teve que erguer a taça e brindar com sorrisos que não eram seus, dançar com Cesáreo e depois com alguns dos velhos amigos dele — homens que, se não fossem ricos, seriam evitados por qualquer mulher decente.
Sentia-se humilhada.
Cada risada, cada elogio sobre sua beleza, cada mão que se estendia educadamente para tocá-la era uma farpa. Tudo parte do jogo e ela era a moeda.
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BARDEN
Barden entrou em casa em silêncio, o relógio marcava quase duas da manhã. Citlali estava sentada nos degraus da escada, com os cotovelos apoiados nos joelhos, encarando Ikal, o sentinela que havia ficado de vigia naquela noite, a meninai encarava como quem era encara um inimigo..
— Não me movi, chefe — murmurou Ikal, ao vê-lo se aproximar. — Mas a menina acordou. Disse que o pai não estava e se recusou a voltar pra cama. Pode conferir nas câmeras.
Barden balançou a cabeça, conhecia em a filha, era uma cópia dele.
— Eu sei, Ikal. Pode ir pra casa.
Ikal assentiu, passou a mão no boné e saiu sem fazer barulho. Citlali continuava sentada, séria.
Barden subiu um degrau, se agachou, e a pegou no colo.
— Devia estar dormindo.
— Acordei e o papai não estava — sussurrou, encostando o rosto no pescoço dele.
— Eu avisei que ia sair, ciclete. Foi algo importante, filha.
Ela não respondeu. Apenas se apertou mais forte.
— Vamos pra cama. Está tarde. E amanhã você tem aula.
— Papai… — a voz era baixinha, sonolenta. — Eu não gosto quando o senhor sai, não gosto.
— Eu sei, mi amor… mas às vezes é assim. Eu prometo avisar sempre que puder.
Carregou a filha até o quarto. A colocou debaixo das cobertas, ajeitou o travesseiro e sentou ao lado da cama por alguns segundos.
— Precisa estudar, Citlali. Amanhã vem a professora nova. Lembra? Vai estudar com você aqui mesmo.
Ela reclamou com os olhos fechando, e Barden ficou observando até a respiração dela desacelerar.
Antes de sair do quarto, passou a mão pelos cabelos dela com carinho, saiu e fechou a porta com cuidado.
E ali no corredor, sozinho de novo, voltou a pensar no olhar de Mar naquela noite.
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Marimar
Uma hora depois, Cesáreo ofereceu o braço e ela aceitou. Entraram na limusine. Só naquele instante, quando o vidro escurecido os protegeu do mundo lá fora, Mar baixou a cabeça.
— Quem era o homem com quem trocou olhares?
Ela ergueu o rosto lentamente, como se tivesse que fingir surpresa.
— Quem?
— O homem. Trocou olhares com ele.
Mar sentiu o gelo subir pelas costas, mas respondeu com suavidade:
— Me assustei. Ele usava sobretudo... achei que fosse alguém entrando sem ser convidado. Mas os seguranças... sabem quem entrou, não sabem?
Cesáreo apertou a mandíbula e arrancou com o carro. Mar engoliu seco, tentando parecer tranquila, mesmo com o coração acelerado, não podia demonstrar interesse em ninguém, medo sim, interesse jamais, jamais..
Cesareop acabou pegando o celular e ligando para um dos seus homens.
— Vou querer as imagens das câmeras da festa e o nome de todos os homens que estiveram lá — ordenou.
Mar se permitiu respirar. Pelo menos, ele nao teria uma crise de ciúmes.. o resto, ela já sabia como suportar.
Quando chegaram em casa, ela subiu direto para o banheiro, foi usar a água calmante.
A água quente escorria pelas costas machucadas. Tomou um comprimido para dor — sabia o que viria. E outro para o enjoo, porque sempre vomitava depois.
Saiu do banho em silêncio, colocou uma camisola clara, longa, e deitou-se, tentando manter os olhos fechados, o corpo imóvel.
Mas a porta se abriu com força.
Cesáreo entrou nu, com um copo de uísque na mão. Acendeu a luz.
— Gosto da luz acesa. Quero olhar pra você.
Mar tirou a coberta, já tremendo. O medo colava na pele. Mas antes que ele se aproximasse, o celular tocou, estava no viva voz, e a voz do homem de Cesareo surgiu;;
— Não sabemos quem era o homem, senhor. Ele entrou sem ser notado... parece que não estava na lista.
Cesáreo praguejou em espanhol, xingando, esmurrando a parede com o copo na mão.
— Quero saber quem era! — berrou — Não me importa se precisam revirar cada maldita câmera! Eu quero o nome dele!
Desligou.
O celular tocou de novo.
Dessa vez, era Emiliano, o fazendeiro envolvido com denúncias de trabalho escravo. Mar não ouvia tudo, mas reconheceu o tom mais calmo, frio. Cesáreo caminhava pela suíte, nu, negociando alguma coisa. Mar permaneceu imóvel.
Fingiu que dormia.
Mas estava acordada. Cada músculo em alerta. E, em algum lugar dentro dela, o rosto encoberto pelo sobretudo — os olhos daquele estranho — ainda queimava em sua memória.
Mar quase sorriu.
Não por alegria, não por amor. Mas por vê-lo se vestindo, Cesáreo havia terminado de gritar com seus homens por telefone, derramado uísque no chão, bufado palavrões em espanhol. E agora, finalmente, estava colocando as calças. Vestia-se devagar, como se o mundo devesse esperar por ele. Abotoava os punhos com arrogância, se achava um rei.. era isso.
Mar não perguntou onde ele iria. Não era da conta dela. Ele dizia isso sempre, com voz seca e olhos frios. “Você não precisa saber, só precisa estar aqui quando eu voltar.”
Mas, por dentro, ela precisou esconder o sorriso, porque ele sairia. E com sorte, demoraria.
Quando a porta se fechou atrás dele, ela sentou-se na cama com cuidado, como se o próprio colchão pudesse traí-la. Estava exausta, mas com o coração estranhamente leve. Não sabia quando ele voltaria, e, naquele momento, não se importava.
Ele não a havia tocado.
Pela primeira vez em semanas, ela ficou sozinha no quarto sem precisar lavar o corpo em lágrimas depois. Ainda nua sob a camisola leve, Mar foi até a janela, olhou a rua silenciosa. Pensou no homem do sobretudo. Pensou nos olhos dele.
Não sabia quem era. Mas queria saber, era um sentimento ambíguo, assim como muita coisa na vida dela.