CAPÍTULO 2

1186 Words
CAPÍTULO 2 Alice Silva Perder alguém nunca é fácil. Mas perder alguém e não saber como lidar com a dor depois... é devastador. Faz pouco mais de um ano que perdi minha mãe. Um infarto fulminante a levou de mim de forma abrupta, sem aviso, sem despedida. Ela era uma mulher forte, carinhosa, encantadora... uma daquelas pessoas que iluminam qualquer lugar apenas com a presença. Todos ao nosso redor a admiravam. Ela era incrível. Tanto... que meu pai era completamente fascinado por ela. Mas ele nunca conseguiu superar sua ausência. Desde o dia em que ela se foi, tenho tentado ajudá-lo, apoiá-lo, resgatá-lo. Mas não importa o quanto eu tente é como se nada fosse o bastante. Meu pai se afundou nas próprias dores, nas lembranças, nos lamentos. E com isso... ele se perdeu. Hoje, ele é um alcoólatra. Passa os dias mergulhado em bares, tentando enterrar o que sente no fundo de um copo. Já fui buscá-lo incontáveis vezes, tentando trazê-lo de volta para casa, tentando impedir que eu o perca também. Me pergunto constantemente: como a vida pode mudar tanto? Antes, ele era trabalhador, cuidadoso, um pai presente. Hoje, é como se tivesse desistido de tudo. E eu... fiquei com o peso do mundo nos ombros. Tive que largar os estudos, assumir a casa, as contas, e cuidar da minha irmã mais nova, Lorena. Sim. Hoje eu trabalho como diarista. E cuido da minha irmã com todo amor que tenho dentro de mim. Lorena é minha luz. É ela quem me faz levantar da cama todos os dias. Tento preencher o vazio que a ausência dos nossos pais deixou porque, mesmo com meu pai ainda vivo, ele não está realmente presente. Ele não vê Lorena. Não ouve. Não sente. Ele se perdeu. E se não fosse por mim... se eu não estivesse aqui, firme, mesmo com a dor me rasgando por dentro todos os dias... as coisas estariam ainda piores. Cansada... É assim que me sinto ao chegar em casa após mais um dia exaustivo de faxina. Moro em uma casa pequena, em uma comunidade da zona leste de São Paulo. Mas é nosso lar. Aconchegante, ainda que hoje pareça mais um retrato de tudo o que foi quebrado. Antes, havia vida aqui dentro. Sorrisos, brincadeiras, cheiro de café fresco e bolo no forno. Agora... restaram os silêncios pesados. As lembranças que doem. E as pessoas que, mesmo partidas, continuam tentando viver. Respiro fundo ao perceber que meu pai ainda não voltou. Talvez tenha feito algum bico hoje e, como sempre, gastado tudo em algum bar qualquer. Isso me machuca. Deixo meus pensamentos de lado por um instante. Largo a bolsa sobre a mesa. Preciso buscar minha irmã. Lorena sempre fica na casa da dona Ana quando eu preciso de socorro imediato, dona Ana é uma das maiores bênçãos que cruzou nosso caminho. Ela sempre foi grande amiga da minha mãe. Me lembro dela cuidando de nós na infância, com aquele jeito firme e carinhoso ao mesmo tempo. Hoje, ela é como um anjo que Deus deixou por perto para não nos deixar cair de vez. Saí muito tarde do último trabalho hoje, e como sempre, dona Ana se ofereceu para buscar minha irmã na escola. Ela é a luz que me deu forças após o caos que virou a minha vida. Bato à porta duas vezes. Não demora muito para ela aparecer, com seus cabelos brancos cuidadosamente presos e aquele sorriso terno, o mesmo de sempre acolhedor como um abraço de mãe. — Boa noite, querida. Está bem? — pergunta com a voz doce que tanto me acalma. Assinto com a cabeça, esboçando um sorriso cansado. — Sim… só um pouco exausta, mas estou aqui — respondo, tentando disfarçar o peso do dia. Ela me observa com aquele olhar de quem enxerga além das palavras. Um olhar cheio de compaixão e cuidado. — Ótimo. Inclusive, acabei de fazer o jantar. Só estava esperando você chegar — diz, abrindo espaço para que eu entre. Sorrio, tocada pelo gesto simples, mas tão valioso. — Ah, dona Ana... a senhora é sempre um anjo na minha vida. Já estava pensando em chegar e ainda ter que preparar algo pra comer. Amanhã vou acordar cedo — conto, animada. — A mãe da Andrea me indicou para uma faxina no Morumbi. Ela está com a agenda lotada e não vai conseguir ir, então me indicou no lugar dela. Andrea é minha melhor amiga desde sempre. Crescemos juntas, correndo pelas vielas da comunidade. É aquela amiga leal, que mesmo com uns parafusos a menos às vezes, está sempre do meu lado. Me ouve, me aconselha, me faz rir nos piores dias. — Que maravilha, querida. Fico muito feliz que tenha conseguido esse trabalho. Mas… você chegou a se inscrever no curso a distância que eu te indiquei? Sorrio sem jeito, apertando as mãos no colo. — Então… eu fui ver sim. Mas a senhora sabe, né? Preciso trabalhar, colocar as contas em dia. Tem a escola da Lorena, os lanches, o aluguel, luz, água... É tanta coisa que nem sei por onde começo. Meu plano é tentar fechar a semana com as faxinas e, quem sabe, com um pouco de fôlego, voltar a pensar nos estudos. No momento, minha cabeça tá cheia demais. Ela me lança um olhar carregado de sentimento. Não diz nada por alguns segundos, apenas me olha como se pudesse sentir toda a minha exaustão. — Tudo bem, minha filha… — diz, por fim, com a voz embargada de emoção. — Mas eu vou pedir muito aos anjos que te deem força. Você não merece carregar esse fardo sozinha. Como eu sempre te disse, Alice… você merece o melhor dessa terra. E tenho certeza de que, um dia, vai ter. Meu coração se aquece com suas palavras. Ela não faz ideia do quanto isso significa pra mim. Sorrio, emocionada, e estou prestes a responder, quando sou surpreendida por um furacão loiro de seis anos que entra correndo pela sala. — Alice! Você chegou! Tá atrasada… A dona Ana que foi me buscar na escola hoje. Ela disse que você estava muito ocupada trabalhando — reclama Lorena, com a sinceridade típica das crianças. Ela sorri com os mesmos cabelos claros que os meus, o mesmo brilho nos olhos… e aquela energia que transforma tudo ao redor. — Sim, minha princesa. Mas amanhã a irmã vai fazer uma faxina, e assim que chegar em casa… vamos assistir seu filme favorito e comer muita pipoca, combinado? — Aeeee! — ela grita, pulando de alegria. E meu coração se enche. Por um instante, tudo vale a pena. Depois, me despeço de dona Ana com um abraço apertado e seguimos para casa. Dou banho em Lorena, escovo seus dentinhos e a coloco para dormir. Ela adormece rápido, abraçada à bonequinha preferida. Tomo meu banho em silêncio, e deito em seguida. Amanhã é um novo dia… e pela primeira vez em muito tempo, sinto uma esperança diferente brotando dentro de mim. Mas o que eu não sabia… É que tudo estava prestes a mudar. Mais do que eu jamais poderia imaginar. Continua...
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