Beatriz narrando
Eu ainda sinto o peso da sacola do lanche nos meus dedos, como se o plástico tivesse grudado na pele pra me lembrar que foi tudo real. Eu comprei o que deu pra passar ali: um x-tudo embrulhado correndo, dois Guaravita de tampa vermelha, e um pedido silencioso praquele corredor de concreto não engolir o homem que eu amo. Nada vai me destruir mais do que a imagem dele daquele lado da grade, o olhar dele tão perdido quanto o meu…
Foi horrível. Horrível. Ver ele daquele jeito, impotente, algemado, sem poder me tocar, sem poder fazer nada. O homem que sempre se impôs diante de tudo e de todos agora estava reduzido a um número, um caso, um detento. Eu quis arrancar ele dali, juro por Deus que quis. Se eu tivesse qualquer poder, qualquer força naquele momento, eu tinha quebrado aquelas grades com as próprias mãos.
Voltei pra casa destruída. O silêncio no carro parecia o de um funeral. O amigo dele, que me deu carona, dirigia em silêncio, olhando pra frente, o maxilar travado. A esposa dele, sentada ao seu lado, tentava dizer alguma coisa, mas não conseguia. E eu… eu só chorava. Chorava sem parar, com o peito latejando e a garganta ardendo.
Os faróis passavam rápido pela estrada, e eu olhava pro vidro embaçado tentando entender como minha vida tinha virado isso. Eu só pensava em uma coisa: como eu ia fazer pra tirar ele de lá? De onde eu ia tirar dinheiro pra advogado, pra custas, pra tudo que viria pela frente? Agora já era a ideia de tirar ele desse mundo, por mais que fosse o meu sonho, eu teria que me render a essa vida, a esse dinheiro, nós não tínhamos escolha, eu precisava arrumar um jeito de tirar ele de lá, e sozinha eu não iria conseguir…
Eu pensava de onde eu ia tirar dinheiro, de onde eu ia desenrolar favor, vender coisa, fazer consulta extra, o que fosse, pra tirar ele daquele buraco. Se antes, com “transporte pequeno” e promessa de parar, a nossa vida já era um cabo-de-guerra entre o meu trabalho, a casa, as meninas e os surtos de amor e medo por ele, agora a corda arrebentou. E arrebentou no meu lado.
— Qualquer coisa que tu precisar, chama nós, já é, Bia. — o amigo dele falou quando estacionou na porta da casa dos meus pais, os olhos ainda na estrada, como se não conseguisse encarar o meu. — Nós tamo contigo pra tudo. Qualquer força que o mano precisar lá dentro, nós tá fechado.
— Obrigada. De verdade. — saiu um fiapo de voz.
A casa dos meus pais tava em silêncio de madrugada. O portão fez aquele rangido que eu conheço desde criança, e o cheiro da cozinha — alho, café de garrafa, pano molhado — me bateu como abraço e bofetada ao mesmo tempo. Minha mãe tava lá, o cabelo preso num coque apressado, a luz amarelada do fogão acesa só por companhia. Ela me viu e veio falando, como quem tenta impedir o chão de abrir.
— Minha filha, pelo amor de Deus, como é que ele tá? O que aconteceu? Eu vi as notícias nos jornais que já saíram… — ela comenta e eu deixo os ombros caírem com o peso que havia neles — eles estavam falando de helicóptero, de Federal… Tu tá bem? Ele tá machucado? Tu comeu?
Eu tentei responder, mas o corpo tava em modo sobrevivência.
— Mãe… eu vou tomar um banho. Eu preciso ficar sozinha um pouco. As meninas tão bem?
— Tão, tão sim. Dormindo as duas. — ela falou mais baixo, me medindo com o olho de quem te conhece do avesso. — Vai, vai lá, filha. O que tu precisar…
Eu só balancei a cabeça e fui.
Entrei no banheiro e a água do chuveiro caiu pesada, barulhenta, quente demais. Me ajoelhei no box como quem reza e chorei com o corpo inteiro. Chorei a madrugada, a sirene, a voz dele dizendo “a Federal me pegou”, chorei cada “eu te avisei” que nunca quis dizer, cada plano que fiz a lápis porque tinha medo de apagar com sangue. Chorei até doer a barriga, o joelho, a garganta. E entre um soluço e outro eu repetia, feito mantra: “ele vai sair na audiência, ele vai sair na audiência”. Eu sabia que era quase impossível, que era pouca chance, que era fé rasgada. Mas eu rezei assim mesmo. Rezar é às vezes a única coisa que a gente tem.
Quando a água esfriou, levantei, vesti a primeira roupa limpa que achei no armário antigo do quarto, e fui pra cozinha. Minha mãe tava lá, esperando com uma caneca fumegando. O relógio de parede fazia um tic-tac que parecia debochar.
— Toma, filha. — ela empurrou o suco pra mim. — Tu precisa comer alguma coisa.
— Não desce. — eu falei, a voz arranhada. Ela suspirou, puxou a cadeira ao meu lado.
— E agora?
— Agora eu arrumo um advogado. — encostei o cotovelo na mesa e abri o celular com a mão trêmula. — Vou falar com a doutora Camila primeiro… se ela não puder, tem o número do Dr. Sérgio que a vizinha indicou. Mas, Bia… tu vai entrar nessa mesmo ? Tu vai até o fim ? — ela me questiona e eu dou risada porque parecia piada depois de tudo, uma hora dessas, não podia ser real…
— vou mãe, eu vou com ele até o fim, eu não vou largar ele lá… — eu falo com ela
— Ta, tenta descansar um pouco, amanhã é a custódia né ? — ela pergunta e eu confirmo com a cabeça pensando nisso, nessa bendita audiência
A mãe dele me ligava sem parar, o pai dele também e sabe quando você não tinha cabeça pra nada, e aceitava o destino que teria que se render ? Então…
Foi isso o que aconteceu, eu precisava me render, mas eu ainda ia tentar, uma última vez, era meu último tiro no escuro antes de aceitar a realidade…
Eu conversei com a mãe dele, ela pegou um empréstimo já que eu não conseguia acessar as contas dele, e ela contratou um advogado…
Enquanto eu esperava resposta, entrei no site da Justiça, li sobre audiência de custódia, vi palavras que ferem: “tráfico interestadual”, “quantidade expressiva”, “flagrante”. Fechei os olhos, respirei, abri de novo. Anotei horários, endereços, protocolos. Mandei mensagem pra mãe dele de novo e a noite passava enquanto eu tentava pensar de alguma forma que ele iria sair de lá…
A lembrança da madrugada voltou como filme. O corredor gelado, o barulho da chave girando, a chapa abrindo, o rosto dele surgindo.
— Amor, me desculpa! — ele tinha dito, como quem tenta consertar uma casa caída com a mão. — Eu te amo. Cuida das nossas filhas.
— Eu tô aqui, amor. — eu respondi tremendo. — Eu vou te tirar daqui. Eu juro por Deus.
O policial puxou ele de volta, seco, e a chapa bateu com estrondo. O eco daquele metal ficou preso dentro de mim.
Aquilo parecia uma tortura na minha mente que me fazia chorar cada vez mais desesperada e rendida a nossa única saída naquele momento…