Beatriz narrando
Tem coisa que a gente sente antes de acontecer.
E naquele dia, eu senti. Desde a hora que ele acordou dizendo que tinha que sair pra São Paulo, meu corpo inteiro gritava que não era pra ele ir. Eu via ele conversando com aqueles bostas que fazem as merdas juntos com ele pelo w******p é isso me dava um ódio enorme.
Felipe sempre foi teimoso. Quando ele bota uma coisa na cabeça, esquecer! pode vir o mundo abaixo, que ele só muda se quiser. E eu, que já conheço ele melhor do que ele mesmo, sabia que de nada adiantava falar. Ele ia, de qualquer jeito.
Mas eu tentei atrasar. Fiz o que dava, falava tudo que vinha na minha cabeça aquele dia. Acordei cedo com ele, ajudei a arrumar as coisas, botei o café, e comecei minha maratona de enrolar.
— Bora no mercado amor, as meninas tão precisando de coisa — falei, só pra ganhar tempo.
Ele olhou o celular, meio impaciente. — Eu tenho que sair de casa até umas cinco, Bia.
— Rapidinho, pô. A gente vai e volta logo.
No mercado, ele parecia uma criança querendo fazer tudo de uma vez. Pegava as coisas e jogava no carrinho sem pensar: leite, biscoito, shampoo, brinquedo, coisa que as meninas nem tinham pedido.
— Tu vai levar o mercado inteiro, é? — eu ri, mas o riso saiu travado.
— Tô deixando tudo certo, ué. — Ele respondeu, sem olhar pra mim.
E aí bateu o silêncio, aquele que diz tudo sem precisar dizer nada. No caixa, ele ainda comprou uma televisão nova, dessas grandes, e ficou rindo, dizendo que era pra gente ver filme junto quando ele voltasse.
— Dia dos namorados tá chegando, e eu quero a senhora bonita, arrumada, e nada de cara feia, ouviu?
— Tu tá me dando presente ou me comprando pra esquecer o que vai fazer? — falei, meio rindo, meio com raiva.
Ele me olhou com aquele sorriso de canto. — Tô te dando motivo pra sorrir quando lembrar de mim.
Saímos do mercado com o carro cheio, e eu inventando desculpa pra rodar.
— Vamos passar na loja ali, rapidinho, quero ver um negócio. Eu vi uma roupa linda ali na frente
— De novo, Bia?
— Só um minutinho garoto, deixa de ser chato!
No fundo, eu só queria atrasar ele. Ficar com ele mais um pouco. Se eu conseguisse enrolar até o anoitecer, talvez mudassem os planos, chamassem outro, e ele ficasse. Mas não deu. Ele comprou roupa nova pra mim, dizendo que era pra usar quando ele voltasse.
— Quero te levar pra jantar, sair só nós dois, do jeitinho que a gente não faz há tempo. Vamos lá no Esperança
— Tá bom!
— Eu volto no dia dos namorados po. Promessa é promessa.
A promessa dele ainda ecoa na minha cabeça. E eu não sei se odeio ou amo ele por isso. Quando chegamos em casa, ele começou a descarregar tudo, animado. As meninas iam ficar doidas quando vissem tanta coisa. Eu fiquei parada na cozinha, olhando ele arrumar, e o coração apertado. Tava tudo certo demais, e quando tá tudo certo demais, é aí que o errado vem.
Na hora de se despedir, eu só consegui dizer:
— Me manda a localização, tá?
Ele arqueou a sobrancelha, rindo debochado. — Pra quê? Pra ver se eu não tô te traindo com alguma p*****a, né?
Revirei os olhos. — Cara, eu não tô brincando contigo.
— Tá bom, tá bom, calma. Eu mando. — Ele me puxou, me deu um beijo demorado, e saiu de casa já mandando a localização.
Na tela do celular, o pontinho azul começou a se mover. E o peito apertou mais ainda. Depois que ele foi, eu fiquei parada um tempo na porta. O barulho do carro dele descendo a rua foi sumindo devagar, até que virou silêncio. Aí eu entrei, comecei a guardar as compras, botei as coisas das meninas no armário, e tentei respirar.
Pouco tempo depois, Maithê e Sophia chegaram da escola.
— Mãe, cadê o papai? — a mais velha perguntou.
— Foi trabalhar, filha. Vai voltar logo. — falei, tentando manter a voz firme.
Dei banho nas duas, ajeitei o cabelo delas, botei o jantar, deixei a TV nova ligada com desenho, e fingi que tava tudo bem.
Mas não tava. Eu olhava o celular o tempo todo. Cada quilômetro que ele andava, eu acompanhava. O pontinho azul indo pela estrada, atravessando a Dutra. Às vezes ele mandava áudio:
— Tá tudo certo, amor. Relaxa.
— Já tô quase na metade. Tá tranquilo.
A voz dele vinha calma, mas eu conheço o tom. Quando ele tá nervoso, ele fala mais devagar, pra tentar me enganar. Eu tentava trabalhar, mexer nas evoluções dos meus pacientes, atualizar relatório, mas a cabeça não tava ali. Era madrugada e eu ainda sentada na frente do notebook, tentando fingir normalidade. As meninas dormindo no quarto, e eu com o coração disparado.
O relógio marcava quase duas da manhã quando ele mandou o último áudio:
— Tá tudo bem, amor. Amanhã cedo eu te ligo. Te amo.
Depois disso, silêncio. O pontinho azul ficou parado.
Primeiro, achei que era o sinal da estrada. Esperei uns minutos. Atualizei a tela e nada.. Dez minutos, minutos depois.. Aí veio o gelo na espinha. Porque quando o Brinquedo fica em silêncio, o mundo desaba.
Eu levantei, fui até o quarto das meninas, e fiquei olhando pra elas dormindo. Naquele momento, eu entendi o que era medo de verdade: não o medo de morrer, mas o medo de perder o amor da sua vida e ter que fingir força pra duas crianças que não fazem ideia do tamanho do inferno que a mãe delas tá vivendo por dentro.
Eu sentei no sofá, olhei pro celular, e rezei. Não sei pra quem, nem se alguém me ouviu. Mas eu pedi pra que, onde quer que ele tivesse, ele ainda tivesse tempo de mandar um último “tô bem”.
O relógio marcava quase três da manhã quando o celular vibrou de novo.
Eu pulei da cadeira, coração disparado. Era ele.
“Amor, já tô chegando em São Paulo. Vou carregar o carro e já tô voltando. Aqui tá osso, o sinal cai toda hora, mas tá tudo bem. Vai olhando aí no GPS que cê vai ver eu me movendo.”
A voz dele veio rouca, cansada, mas com aquele mesmo jeito de sempre, aquele tom que ele usa pra disfarçar o perigo. Eu respirei fundo, mas não conseguia fingir que tava tranquila.
Peguei o celular e comecei a digitar rápido:
— Felipe, olha só, quando você fica sem sinal, o GPS para de atualizar! Tu me mata do coração desse jeito, c*****o!
Mandei o áudio tremendo, a voz falhando. Ele respondeu rindo.
— Calma, amor. Cê é muito agoniada. Tá tudo certo, eu tô suave.
— Suave é o c*****o, Felipe. Eu tô aqui olhando essa p***a desse pontinho parado, achando que o mundo acabou.
Ele soltou um riso abafado.
— Ó, pra te acalmar, eu acabei de bolar um baseadão sinistro aqui, frio do c*****o, cê ia rir se visse.
— Felipe, pelo amor de Deus, tu tá fumando dirigindo?
— Calma, doutora. — ele riu. — Tá tudo tranquilo. O carro tá de boa, o caminho tá limpo. Cê relaxa e vai dormir.
Eu passei a mão no rosto, exausta, mas sem conseguir desligar.
— Não vou dormir enquanto tu não chegar.
— Vai dormir sim, Beatriz. — ele respondeu firme. — Eu tô bem, tá? Já, já tô pegando o caminho de volta. Amanhã cedo eu tô em casa, aí a gente vai sair pra jantar como o combinado.
— Tomara.
— Vai dormir, amor. Dá um beijo nas meninas por mim, dorme tranquila.
Ele sempre falava isso, “Dorme tranquila.” Como se fosse possível pra uma pessoa casada com um ser humano desse.
A voz dele veio de novo, mais leve, como se quisesse mudar o clima:
— Ó, e pode me dar um bojaco de presente de dia dos namorados, hein? Já te dei um montão de coisa hoje, agora é minha vez.
Eu ri baixinho, mesmo tensa. — Bobojaco novo? Vou pensar no teu caso.
— Aquela moralzinha gostosa de cria.
— i****a. — falei, rindo, mas o riso saiu molhado de lágrima.
O áudio terminou e eu fiquei ali, com o celular encostado no peito. O GPS ainda marcava o pontinho se mexendo, bem devagar. Eu via ele passando pelas estradas, nome de cidade que eu nunca tinha ouvido falar, e cada quilômetro que ele andava era uma reza minha pedindo pra nada dar errado.
As meninas dormiam abraçadas no quarto, o ventilador rodando e o barulho da rua já quase inexistente. A casa tava em paz, mas dentro de mim era só barulho. Aquela agonia muda que só quem ama alguém do crime entende.
Eram quase quatro da manhã quando o celular vibrou de novo. Um áudio curtinho, a voz dele mais baixa, mais cansada:
— Já tô indo, amor. Carreguei tudo. Tá tranquilo, tô voltando agora. Te amo, tá? Dorme um pouquinho, cê tá virada desde cedo.
A respiração dele vinha pesada, dava pra ouvir o som do motor no fundo.
Eu fechei os olhos, tentando acreditar que o pior já tinha passado.
— Tá bom, amor. Dirige com calma, tá? — eu mandei de volta. — Me avisa quando parar pra descansar.
— Pode deixar. — ele respondeu. — Agora dorme, Bia. Dorme um pouquinho, vai.
Eu ainda fiquei um tempo olhando a tela, o pontinho azul seguindo firme na estrada, depois fui pro quarto. As meninas continuavam dormindo do mesmo jeito. Deitei no sofá da sala com o celular na mão, e o barulho da chuva fraca lá fora começou a me embalar. A última coisa que ouvi antes de pegar no sono foi a voz dele ecoando na cabeça: “ Dorme tranquila, amor.” Fechei os olhos acreditando. Mesmo com o coração dizendo o contrário.