DULCE
Ano de 1976
Maldito fax! Eu não lidava bem com a tecnologia e não estava com muita paciência para lidar. Era a terceira vez que o papel emperrava e era o terceiro soco que eu deferia contra a máquina. Se o meu chefe me visse agora, eu com certeza estaria com as orelhas quentes.
O motivo da minha irritação não era só a minha falta de prática em lidar com o aparelho à minha frente e nem mesmo o meu trabalho deprimente como coordenadora de RH de uma rede de supermercados. O meu estresse tinha uma raiz bem mais profunda e ela se chamava família Uckermann.
Quando atendi o telefone de manhã e ouvi o convite feito por Amelia, eu quis recusar.
Não, Lia, eu não vou para a sua festa de seis anos de casamento com o Nathan porque eu detesto ter que fingir estar feliz por vocês.
Mas ao invés disso, eu deixei minha voz em um tom bom o suficiente para que ela achasse que eu estava animada e me ofereci para levar a lasanha. Sempre a amiga perfeita, o quebra-galho de todos, o ombro onde chorar, nunca a namorada de alguém.
Não que eu não tivesse tentado. Eu saí com alguns homens ao longo desses anos e todos os meus encontros foram ruins. Eu tinha uma longa lista de jantares com piadistas péssimos, homens mais burros que uma porta, safados demais e até um que me tratou como se eu fosse sua mãe (bizarro). De uns tempos pra cá, eu só desisti de tentar. Melhor só do que m*l acompanhada, certo?
Infelizmente o homem certo para mim escorregou entre os meus dedos quando eu resolvi apresentá-lo para a Amelia, minha incrivelmente linda e popular melhor amiga. A culpa não era dela se eu fui covarde demais para admitir meus sentimentos por Nathan mais cedo. Mesmo ela sendo minha melhor amiga, eu nunca fui capaz de contar sobre esse interesse romântico porque eu achava que tinha que guardar para mim. Guardei tanto que acabei perdendo.
Eu não a odiava, ao contrário. Amava Lia como se fosse minha irmã desde que nos conhecemos no jardim de infância. E era por amá-la tanto que eu continuava em sua vida, sofrendo internamente e sorrindo por fora enquanto a via agarrar o homem que eu amava.
Fiquei ao lado dela mesmo me ferindo a cada conquista. Vi ele pedi-la em namoro no baile de primavera do colégio, vi ele pedi-la em casamento durante o aniversário de dezoito anos dela, fui madrinha do casamento deles, vi eles comprarem a primeira casa e terem o primeiro filho. Ah, meu pequeno Victor! Eu também amava aquele menino, mesmo ele sendo fruto de um amor que me feria.
Terminei o meu expediente e saí do trabalho direto para casa. Assim que entrei, joguei minha bolsa no sofá e chequei as mensagens na secretária eletrônica.
— Oi, Dul, é a mamãe. A Blanca quer muito ir ao aniversário dos Uckermann, mas eu estou trabalhando em um caso importante e não poderei ir. Você pode levá-la?
Fiz uma nota mental para não esquecer de fazer isso. Minha irmãzinha só tinha cinco anos – a mesma idade do pequeno Victor – mas já tinha seu grau concentrado de estresse, algo que eu e ela herdamos da nossa mãe que era uma advogada que você detestaria enfrentar. Talvez ela seja tão rígida por ser uma mãe solteira. Meu pai foi embora com a amante quando eu tinha doze anos e o pai da Blanca caiu fora quando minha mãe contou da gravidez. Desde então, tem sido só nós três. Talvez o azar no amor também seja hereditário.
Pobre Blanca...
— Dulce, Amelia falando! Sei que não gosta de surpresas, então achei melhor avisar que o Paul está na cidade e vem para a festa. — riu. — Ponha aquele vestido azul que lhe cai bem.
— Ah, não... — resmunguei revirando os olhos.
Aquele primo chato da Lia por quem eu fingi interesse só para ela parar de me encher a paciência com a história de que eu não gosto de ninguém? Ele mesmo. E agora eu teria que fugir dele a noite toda, já que com certeza Amelia falou de mim para ele. Ela achava que eu tinha sido uma espécie de cupido para ela e Nathan e isso fazia com que ela se sentisse na obrigação de arranjar alguém para mim.
Peguei a minha toalha e fui direto para o banho. Não vesti o vestido azul que me caía bem e daria a desculpa de que esqueci de levá-lo para a lavanderia. Usei o meu vestido preto básico que combinava com qualquer ocasião, inclusive com o meu humor atual.
Peguei a lasanha que estava guardada na geladeira e saí de casa, passando primeiro na casa da minha mãe para buscar a Blanca. A menina estava na varanda me esperando, usava um vestido rosa e um laço de mesma cor no cabelo.
— Vamos, Branca de neve! — brinquei, sabendo que ela detestava o apelido.
— Mamãe! — ela reclamou, olhando para trás onde nossa mãe estava em pé da porta.
— Vai logo, meu anjo, você briga com a Dulce no caminho. — deu um pequeno empurrãozinho em Blanca. — Divirtam-se!
Blanca deu a volta no carro pronta para ir até o banco do carona e eu esperei ela abrir a porta para erguer o meu dedo e fazer um sinal negativo.
— Crianças no banco de trás.
— Chata! — me mostrou a língua.
— Vai logo, Branca de neve.
— Bruxa! — e bateu a porta com força.
Estresse hereditário, como eu havia dito.
— E só por isso eu não vou te dar o presente que comprei hoje. — falei depois que ela se acomodou no banco de trás.
— Presente? — seus olhinhos brilharam. — Me desculpa, Dul, eu juro que não faço mais! — juntou as mãos como se fizesse uma prece.
— Jura de dedinho? — ergui meu dedo mindinho para ela.
— De dedinho. — ela fez o mesmo, enlaçando seu dedo ao meu.
Abri o porta-luvas e tirei de lá a tiara que havia comprado para ela naquela semana.
— Supimpa! — bateu palminhas animada e foi logo colocando a tiara na cabeça, não se importando se iria combinar com o seu laço ou não. — Agora eu deixo você me chamar de princesa.
Dei risada, balançando a cabeça negativamente.
— E o meu beijo? — toquei a minha bochecha, virando o rosto para ela.
Blanca se esquivou, apoiou-se em meu ombro e me deu um beijo estalado no rosto.
Comecei a dirigir a caminho da casa de Amelia e Nathan. Quando chegamos, estacionei meu carro em frente, segurei a lasanha com uma das mãos enquanto agarrava a mão de Blanca com a outra.
— Comer lasanha! Comer lasanha! — minha irmãzinha cantarolava no ritmo de "la cuca racha", puxando meu braço à medida que saltitava.
— Blanca, pare com isso! — reclamei, desequilibrando um pouco a travessa na minha outra mão.
Consegui não derrubar a lasanha até chegarmos à entrada. Toquei a campainha e a porta foi aberta por Nathan. Tremi involuntariamente ao sentir o cheiro de seu perfume me atingir em cheio. E claro, aquele sorriso brilhante e os olhos de cor de mel – ou castanhos, era difícil dizer – não me ajudavam a manter a postura.
— O-oi. — gaguejei. — Feliz aniversário!
— Obrigado, Dulce! Desculpe o convite de última hora, nós não estávamos pensando em fazer nada até hoje de manhã.
— Vocês são uma caixinha de surpresas. — ri sem humor.
— Olá, Blanca! — ele se apoiou em seus joelhos para poder ver a minha irmãzinha de perto.
— Olá, tio Nathan! — Blanca sorriu gentilmente.
— Tia Dulce chegou! — ouvi uma voz aguda gritar de dentro da casa e logo depois passos leves e ligeiros em minha direção.
— Ei, Vic, vá com... — antes que eu terminasse a frase, o pequeno Victor se chocou contra as minhas pernas para um abraço e em seguida eu derrubei a lasanha no chão, fazendo um verdadeiro estrago. — ...calma. — murmurei coçando a nuca.
— Tudo bem, tudo bem. — Nathan riu, olhando para a lambança no chão. — Desculpe por isso, Dulce.
— A culpa foi minha, eu posso limpar. — me adiantei em dizer.
— Não, a culpa não foi sua. — ele colocou sua mão atrás das minhas costas e me deu um empurrãozinho para entrar de vez, fechando a porta logo depois. — Victor? — ergueu a sobrancelha, olhando para o filho.
— Desculpa, tia Dulce. — o garotinho disse ao erguer a cabeça na minha direção.
— Tudo bem, meu amor. — eu sorri, abaixei um pouco e dei um beijo em sua testa.
— Filho, por que não mostra os seus novos bonecos para a Blanca?
— Depois a tia Dulce vem ver também?
— Sim, claro. — assenti.
Victor estendeu sua mão para a minha irmã e eles caminharam juntos pelo hall até as escadas.
— Pode ir também, eu cuido disso aqui. — Nathan disse.
— Mas...
— Vai logo. — outro empurrãozinho.
Se ele continuasse a me tocar eu soltaria um gemido involuntário. Achei melhor mesmo sair dali, então eu sorri, acenei positivamente com a cabeça e dei as costas caminhando em direção à sala.
Haviam muitos amigos, conhecidos e familiares ali. Eu cumprimentei algumas pessoas enquanto caminhava pensando em ir até a cozinha pegar algo alcoólico para beber. Eu não conseguia aguentar esses eventos se estivesse totalmente sóbria. Fui até a cozinha, abri a geladeira e peguei uma garrafa de cerveja. Quando me virei novamente, dei de cara com Amelia.
— É sério, você deve ter algum problema com o álcool. — arqueou a sobrancelha.
— Problema nenhum, a gente se dá muito bem. — brinquei.
Ela riu enquanto me envolvia em seus braços, me abraçando com força.
— Feliz aniversário de casamento! — falei quando nos afastamos.
— Obrigada, cupido. — piscou.
Argh... pare de me chamar assim!
— Não há de quê. — forcei um sorriso.
— Amiga, o Paul...
— Não, Lia, desculpa, mas hoje eu não estou muito bem pra flertar.
— Você nunca parece bem pra isso. — cruzou os braços. — Ele é um cara legal e você achou ele gatinho.
— E isso não significa que eu queira alguma coisa. Eu posso achar alguém bonito sem ter interesse nenhum.
Amelia cerrou os olhos como se estivesse desconfiada.
— Só seja gentil quando ele falar com você.
— Eu sou uma pessoa gentil.
— Quando quer, não é, Dul?
Revirei os olhos e soltei um longo suspiro.
— É melhor voltarmos para a sua festa. — passei por ela.
— Não quer o abridor de garrafa?
— Não preciso. — levei a garrafa até minha boca e abri com os dentes.
— Você tem mesmo uma relação estranha com o álcool. — riu enquanto me acompanhava.
Fiquei em um canto afastado observando as pessoas beberem, comerem e conversarem entre si. Soltei mais suspiros do que pude contar e dobrei o tamanho dos meus goles a cada beijinho que eu via Nathan e Amelia dando um no outro. Minhas interações se resumiram a acenos de cabeça, sorrisos forçados e uma repreensão ou outra quando Blanca e Victor tentavam correr pela sala.
De repente o disco do Elvis que tocava na vitrola trocou para Can't Help Falling in Love. Ótimo, a música dos dois, agora eles tinham que dançar agarradinhos enquanto os convidados assistiam. E foi exatamente o que eles fizeram.
Eu não pude deixar de encara-los. A forma como ele olhava para ela... Eu quis tanto que ele olhasse assim para mim... Eu quis aqueles olhos cor de mel/castanhos brilhando para mim... Eu queria aquelas mãos em minha cintura, me segurando com firmeza... Eu queria ele. Meus pensamentos me fizeram sentir culpada, uma amiga invejosa jogando energia negativa no casamento de duas pessoas que nada fizeram de errado e que eram um casal tão bondoso que chegava a ser irritante.
Meus olhos se encheram de lágrimas, por tristeza, vergonha, raiva de mim mesma ou deles, não importava. E enquanto eu os observava, as lágrimas rolaram por meu rosto e eu me deixei chorar enquanto entornava a minha quarta garrafa de cerveja.
— Você está triste, Dul? — Blanca perguntou, passando sua mãozinha em minha bochecha.
— Não, princesa. — tentei sorri. — Só estou emocionada.
Emocionalmente fragilizada.
— Ah, olha só a nossa cupido emocionada! — ouvi Amelia proferir, olhando para mim enquanto sorria.
Os dois pararam de dançar e me olharam com todo aquele amor fraternal que diziam sentir por mim. Eu odiava ter que admitir, mas eu era mesmo a droga de um cupido e eu odiava isso. Queria voltar no tempo e ter dito ao Nathan o quanto gostava dele antes que o verão acabasse e ele começasse a estudar no mesmo colégio que eu, me obrigando a apresentá-lo para ela.
Ele era o vizinho charmoso por quem eu sempre fui apaixonada e eu o joguei nos braços dela quando preferi me omitir.
— Vocês são... — engoli em seco. — Sinceramente o casal mais lindo que eu já vi. — suspirei. — Eu amo vocês. — de formas diferentes, mas ninguém precisava saber.
— E a gente te ama. — Nathan disse com aquele maldito sorriso charmoso. Ele sabia que era lindo assim?
E então eles começaram as suas declarações, me colocando no discurso como a ponte entre os dois. Caramba, como eu me odiava por não ser essa pessoa incrível que eles achavam que eu era.
Quando a festa acabou, o mínimo que eu poderia fazer era ajudar com a bagunça, mesmo os dois insistindo que eu não precisava.
— A Blanca pegou no sono com o Victor, você pode deixá-la aqui se quiser e amanhã a gente leva ela pra casa. — Nathan disse depois de descer as escadas.
— Claro, obrigada. — respondi.
— Eu vou cuidar dos pratos, vocês podem dar uma geral na varanda? — Amelia perguntou.
— Sim, querida.
Pegamos as vassouras e esfregões e fomos para a varanda. Os dois... sozinhos... no meio de uma noite silenciosa...
— Você conseguiu conversar com o Paul? — Nathan perguntou e eu quis revirar os meus olhos, mas me contive.
— Não. Eu fui bem em fugir dele, não acha? — fui sarcástica.
— Dulce, por que não tenta conhecer alguém?
— Eu tentei e você sabe como deu errado.
— Mas nós conhecemos o Paul e eu garanto que...
O interrompi.
— Vocês não precisam fazer isso.
— Fazer o que? — franziu o cenho.
— Dar uma de cupido comigo. Não precisam retribuir o favor porque nada do que eu fiz foi proposital. Eu achei que vocês seriam amigos, não que se casariam e formariam uma família. — eu fui quase ríspida.
— Você não está muito bem hoje, está? — me olhou com estranheza. — Conversa comigo. — ele sentou sobre a mureta da varanda e indicou o lugar ao seu lado.
Sentei ali e respirei fundo, tentando não olhar muito em sua direção para evitar aqueles arrepios pelo corpo.
— Hoje não foi o meu dia de sorte, muita coisa me irritou e tudo acabou acumulando. Desculpe se não fui a convidada mais animada da festa.
— Não precisa se desculpar por estar em um dia r**m. — pousou a mão sobre o meu ombro e eu posso jurar ter sentido um pequeno choque. — Você pode desabafar com a gente quando quiser, Dulce. Somos seus melhores amigos e nos preocupamos com você, mas às vezes não fazemos ideia do que está acontecendo na sua vida.
— Eu sou só uma mulher solteira que não quer procurar pelo amor. Quando eu encontrar uma pessoa, não vai ser porque procurei, vai ser porque ele veio a mim no momento certo.
— Você tem razão. — assentiu. — Não vamos mais tentar interferir nessa parte da sua vida, eu prometo.
— Obrigada. — abri um sorriso fraco e olhei para ele finalmente. — Não é mais um dia r**m.
— E pode melhorar com um abraço. — abriu os braços.
Eu fui até ele e nós nos abraçamos por alguns segundos. Eu amava abraçá-lo, mas isso me balançava demais, por isso eu sempre estava dando a desculpa de que meus abraços não eram para momentos desnecessários. Aquele era um momento necessário e eu precisava mesmo de um abraço dele, por mais que fosse passar a noite pensando nesse momento depois.