A manhã avançou, mas tudo parecia travado.
A aula acontecia na frente dos meus olhos, mas não conseguia prestar atenção.
Os livros, as vozes, as explicações — eram pano de fundo para a única coisa que ocupava minha mente.
A mensagem.
E o que Theo disse no pátio.
O motivo.
A verdade.
A confissão.
Tentei ignorar, mas o pensamento voltava sempre.
Como uma porta entreaberta que eu não conseguia decidir se deveria empurrar ou fechar.
Quando o sinal tocou, o celular vibrou no mesmo instante.
Olhei a tela com um frio na barriga que eu não sabia explicar.
Duas mensagens.
Da Maria.
“Ele está estranho hoje.”
“Fica atenta.”
Atenta a quê?
A quem?
A ele?
A mim mesma?
Guardei o celular sem responder.
A inquietação estava crescendo, se instalando em músculos que eu nem sabia que podiam doer.
Na saída da sala, percebi o burburinho no corredor.
Vozes baixas comentando algo com entusiasmo demais para ser inocente.
— Vocês viram o status dele?
— Finalmente disse alguma coisa.
— Bem na hora…
— Então era isso mesmo…
Meu peito apertou.
Peguei o celular de novo.
O aplicativo de mensagens estava com um alerta no canto da tela.
Theo tinha postado um status.
Eu hesitei antes de abrir.
Como se o conteúdo tivesse poder de mudar alguma coisa que eu ainda não estava pronta pra ver.
Mas eu abri.
Uma foto de céu nublado.
Cinza, pesado.
E uma frase curta, direta:
“Nem toda verdade espera.”
Senti meu coração errar o ritmo.
A foto não dizia nada.
Mas dizia tudo.
As pessoas comentavam ao redor, interpretando, conectando, inventando conclusões.
Mas, pra mim, aquela frase parecia ter sido escrita com meu nome.
Como se fosse um aviso.
Ou um pedido.
Ou uma contagem regressiva.
Respirei fundo, tentando controlar o impacto que senti.
Maria apareceu no corredor e veio direto até mim.
— Você viu? — ela perguntou.
Assenti.
— Vi.
Ela mordeu o lábio, nervosa.
— Livi… eu não gosto disso.
— Disso o quê?
— De como ele fala com você.
Pausa curta.
— Como se estivesse esperando algo de você.
Desviei o olhar.
— Ele só quer explicar.
— Explicar o quê?
Fiquei em silêncio.
Porque essa era exatamente a pergunta que eu tinha medo de fazer a mim mesma.
Maria suspirou.
— Livi, seja lá o que for… se prepara.
Assenti devagar.
Porque, no fundo, eu sabia.
Eu já estava me preparando desde ontem, quando ele parou o carro na frente de casa e disse que eu não precisava ter medo dele.
E desde esta manhã, quando ele disse que eu só entenderia se ouvisse dele — e não de outra pessoa.
Algo grande estava vindo.
Algo que não era só sobre boatos.
Não era só sobre carona.
Não era só sobre escola.
Era sobre ele.
E sobre mim.
E sobre um fio invisível que tinha se criado entre nós, sem aviso, sem permissão, sem lógica.
Mas que estava puxando os dois para o mesmo ponto.
A quadra antiga.
O palco da verdade que ele disse que só conseguiria dizer ali.
Olhei o horário.
Ainda faltavam horas para o fim da última aula.
Horas demais.
E, ao mesmo tempo, não o suficiente.
Porque uma parte de mim queria fugir.
Mas outra, mais profunda — a parte que eu tentava calar — queria ir.
Queria ouvir.
Queria entender.
Queria saber qual era essa verdade que Theo tinha carregado por todo esse tempo.
***********
As horas seguintes pareciam elásticas.
Passavam devagar e rápido ao mesmo tempo, como se o relógio estivesse brincando comigo.
Cada aula era uma espera.
Cada sinal era um aviso.
E, quanto mais o horário do encontro se aproximava, mais meu corpo reagia de um jeito que eu não conseguia controlar.
Mãos frias.
Coração acelerado.
Pensamentos que iam e vinham sem ordem.
A cada vez que o celular vibrava, eu sentia o estômago apertar.
No fim da penúltima aula, recebi uma notificação.
Theo.
Outra mensagem.
“Ainda quer me ouvir?”
Não tinha raiva ali.
Nem exigência.
Só dúvida.
E dúvida não combinava com ele.
Theo era intensidade.
Confiança.
Silêncio carregado.
Mas essa mensagem parecia… medo.
Digitei:
“Sim.”
Apaguei.
Digitei outra:
“Eu prometi."
Apaguei também.
Acabei enviando apenas:
“Quero.”
Logo depois, outra mensagem dele chegou:
“Bom.”
Só isso.
Simples.
Mas havia algo diferente naquele “bom”.
Algo que parecia… alívio.
E isso mexeu comigo mais do que deveria.
*****
A última aula foi pior.
Eu não conseguia focar em nada.
As vozes dos outros pareciam distantes, como se eu estivesse submersa em água.
Em alguns momentos, percebi que alguém me observava.
Quando virei, Theo estava olhando para mim de longe.
Discreto.
Atento.
Ele não desviou de imediato.
Só depois de perceber que eu tinha percebido.
E esse detalhe — esse segundo a mais — ficou preso na minha mente.
Ele estava preocupado.
E isso era perigoso demais para eu ignorar.
******
Quando o último sinal tocou, senti o corpo inteiro reagir.
Um choque interno, como se tivesse chegado a hora de uma coisa que eu não conseguia evitar.
Maria veio até mim antes que eu levantasse.
— Você tá pálida.
— Não tô.
— Tá sim. — Ela cruzou os braços. — Quer que eu vá junto?
Balancei a cabeça.
— Ele pediu pra ser só eu.
Maria mordeu o lábio, claramente desconfortável.
— E você vai… sozinha?
— Tenho que ir.
Ela respirou fundo.
— Tá. Mas qualquer coisa me chama, ok?
Assenti.
Mas a verdade era outra.
A conversa que eu precisava ter não era sobre segurança.
Era sobre verdade.
E só ele podia me dar.
*****
Saí da sala e fui para o corredor lateral.
A quadra antiga ficava nos fundos, quase ninguém passava por lá.
Era o lugar onde o colégio deixava coisas velhas e onde alguns alunos iam quando queriam ficar sozinhos.
Enquanto caminhava, o celular vibrou.
Theo.
“Tô indo pra lá.”
Respondi:
“Já estou chegando.”
Meu coração batia tão rápido que parecia querer fugir antes de mim.
Quando virei o corredor que levava à quadra, vi algo no chão, perto da parede.
Um papel dobrado.
Olhei em volta.
Ninguém.
Peguei.
Era um bilhete.
Escrito com letra rápida, inclinada.
“Se você soubesse desde o início, teria me evitado.”
Meu peito apertou.
Atrás do bilhete, outra frase:
“Mas eu não queria que você fizesse isso.”
Reconheci a letra.
Theo.
Por um instante, fiquei parada ali, sentindo o mundo estreitar.
Como se cada palavra escrita tivesse peso real.
Ele estava com medo.
Medo de perder algo que nem começou.
Medo de afastar alguém que ele nem tinha.
E aquilo — aquela vulnerabilidade — provocou algo profundo em mim.
Eu dobrei o bilhete e o segurei na mão.
Continuei andando.
A quadra antiga estava próxima.
Muito próxima.
E eu sabia:
O que ele ia dizer ali dentro não era sobre boato.
Não era sobre escola.
Não era sobre reputação.
Era sobre ele.
E sobre mim.
E sobre algo que, mesmo que eu tentasse negar, já estava crescendo entre nós.