2. O Boato (Parte II)

1625 Words
O restante da manhã aconteceu como se eu estivesse assistindo minha própria vida de fora. As pessoas se moviam, falavam, riam, postavam — mas eu não escutava nada de verdade. Meu corpo seguia, mas minha mente ainda estava presa no corredor, naquele instante em que Theo segurou o celular e engoliu tudo em silêncio. Só que o silêncio dele nunca era vazio. Era um aviso. E a escola percebeu isso rápido. ******* O segundo intervalo estava prestes a começar quando ouvi um barulho vindo da quadra coberta. Não era gritaria. Não era briga. Era algo mais contido: vozes baixas, tensas, carregadas. Maria me puxou pelo braço. — Vem. Acho que é sobre o que rolou mais cedo. Eu queria ir embora. Mal tinha forças pra continuar o dia. Mas meus pés seguiram o som. Quando chegamos perto da quadra, a cena já estava armada. Theo estava ali. Em pé. Postura relaxada — ou pelo menos parecia — mas o olhar focado o suficiente para ninguém confundir aquilo com tranquilidade. Ele conversava com três meninos do terceiro ano. Os mesmos que postaram o vídeo do estacionamento com aquela legenda nojenta. Não era briga. Não ainda. Mas o clima era pesado. Fiquei atrás de uma pilastra, observando. Maria sussurrou: — Ele tá maluco? Esses idiotas adoram confusão. Mas Theo não parecia intimidado. — Vou falar uma vez só — ele disse, com a voz baixa, firme. — Apaguem o que postaram. Os garotos riram. Repito: riram. — Que isso, Navarro? Ficou sensível? — um deles provocou. — O vídeo nem mostra nada demais. — outro completou. — Só você e a princesinha entrando no carro. Meu coração bateu alto demais. Senti o rosto esquentar. Theo cruzou os braços. — Apaguem. — E se a gente não quiser? — o terceiro desafiou, dando um passo pra frente. Theo inclinou a cabeça para o lado. Parecia calmo. Calmo demais. — Eu não estou pedindo. — disse. Houve um silêncio breve — o tipo que antecede impacto. Os meninos trocaram olhares. Um deles sorriu. — Relaxa, Navarro. Não fizemos nada demais. Ele deu um tapinha no ombro de Theo. — A garota parece ter gostado da atenção. No segundo exato em que ouvi aquilo, meu estômago virou. Eu quis gritar, correr, desaparecer. Mas antes que eu pudesse reagir, algo aconteceu. Theo segurou a mão do garoto antes que ele completasse o gesto. Não apertou. Não empurrou. Não intimidou de forma óbvia. Ele apenas segurou. E olhou nos olhos dele. E foi o bastante. O garoto engoliu seco. Os outros dois pararam de sorrir. A voz de Theo veio baixa, calma, mas com um peso que fez até o ar parecer mais frio. — As pessoas confundem silêncio com fraqueza. Pausa. — Eu não tenho dificuldade com nenhum dos dois. Mas tenho problema com covardia. Os garotos ficaram imóveis. Theo soltou a mão devagar, mas não afastou o olhar. — Apaguem. Agora. — E parem de falar dela. Estava tudo dito. Sem grito. Sem ameaça explícita. A força estava na forma como ele permanecia ali. Inteiro. Firme. Perigosamente tranquilo. O primeiro dos garotos pegou o celular. Depois o segundo. E, por último, o terceiro. Os vídeos sumiram. Os comentários sumiram. Os stories foram apagados. Theo esperou. Só depois disso desviou o olhar. E saiu andando. Sem olhar para trás. Sem me procurar. Sem querer reconhecimento. Não fez aquilo para impressionar ninguém. Não fez para parecer herói. Não fez porque esperava algo de mim. Fez porque quis. E isso foi mais desconcertante do que qualquer outra coisa. ******** Maria me olhou boquiaberta. — Eu… eu nunca vi ele assim. Eu também não. Theo passou pela lateral da quadra e sumiu no corredor vazio, deixando para trás três garotos pálidos, assustados e calados. E uma escola inteira que agora tinha duas histórias para comentar: A versão deles. E a versão dele. Mas, pela primeira vez, eu senti que existia também a minha. Aquela que ninguém tinha perguntado. Aquela que ninguém sabia. Aquela que começava a crescer dentro de mim como um espinho. Theo não era quem diziam. Mas também não era previsível. Ou seguro. Ele era… outra coisa. Uma enigma que começava a se aproximar de mim por todos os lados. E, mesmo com medo, eu não conseguia negar: Eu queria entender. Eu precisava entender. ****** O resto do intervalo passou como um borrão. Os boatos não diminuíram — só mudaram de forma. As pessoas agora falavam mais baixo, mas olhavam mais. Os celulares ainda estavam ativos, mas não com a mesma agressividade. Era como se todos estivessem tentando entender por que Theo Navarro havia se importado tanto. E a verdade é que nem eu sabia. Quando voltei para a sala, o efeito já tinha começado: — Ele apagou tudo dos caras. — Ele brigou por ela? — Será que estão juntos? — Ou ele só protege as meninas que… você sabe. — Não via o Navarro desse jeito faz tempo. Cada frase me acertava como se fosse um soco discreto. Eu queria ser invisível de novo. Queria ser só mais um rosto perdido entre dezenas. Mas não era. Agora eu era uma história. E histórias sempre são distorcidas. Maria me olhava com cautela. Como se temesse que eu quebrasse a qualquer momento. — Não deixa isso entrar, Livi — disse, baixinho. — Eles só querem assunto. — É difícil — respondi. Ela não insistiu. Porque sabia que era verdade. Sentei na carteira e tentei ajeitar o material, mas meus dedos tremiam. Senti um arrepio que não vinha do frio. Vi movimento na porta. Theo entrou. A sala ficou em silêncio — aquele silêncio carregado, cheio de expectativa, cheio de interpretações que não pertenciam a ninguém além de quem as criava. Ele não olhou para mim. Passou direto para a carteira dele, sentando devagar, como se estivesse calculando cada gesto. Mas eu sabia. Sabia que ele tinha percebido minha reação antes mesmo que eu percebesse a presença dele. O professor entrou logo depois, e a atenção se dispersou. Ou fingiu se dispersar. Durante a aula, tentei manter os olhos no caderno. Tentei anotar. Tentei parecer normal. Mas era impossível. A sensação de que o ar tinha mudado — e não apenas ao meu redor — era esmagadora. Em um momento, sem querer, virei a cabeça. Theo estava olhando para a janela. Mas não via a janela. Ele estava pensando. E o que quer que fosse, tinha relação com tudo que aconteceu hoje. Senti um peso estranho no peito — uma mistura de culpa e inquietação. Será que ele fez aquilo por mim? Por responsabilidade? Por vergonha? Por arrependimento? Ou por algo que eu não queria admitir ainda? Meu coração acelerou sem motivo aparente. Theo virou o rosto devagar, como se tivesse sentido meu olhar queimando a distância. Seus olhos encontraram os meus. Foi rápido. Apenas um segundo. Mas um segundo suficiente para estremecer o eixo interno do meu corpo. Ele desviou primeiro. E isso, de alguma forma, me deixou mais abalada do que se tivesse mantido o olhar. Pela primeira vez desde que nos cruzamos, Theo parecia… inseguro. E eu não sabia o que fazer com isso. ***** Quando o sinal tocou, o professor m*l terminou a frase. Os alunos explodiram em movimento. Maria guardava o material quando sussurrou: — Vai falar com ele? — Não. A resposta saiu instantânea demais. Maria me encarou, surpresa. — Por quê? Eu fechei o caderno com força. — Porque não sei o que falar. E porque… Parei. Porque eu não queria admitir o resto. Maria completou por mim: — Porque tá com medo. O olhar dela não era julgador. Era compreensivo demais para eu suportar. — Não dele — murmurei, mesmo sabendo que não era totalmente verdade. — De mim. Ela não respondeu. Não precisava. A verdade estava entre nós duas. ****** Saímos da sala juntas. Os corredores estavam mais calmos do que antes, como se todos sentissem a tensão pairando no ar — uma tempestade emocional prestes a acontecer. Chegamos à porta da escola. Maria foi abraçar o namorado perto da entrada e me deixou sozinha por alguns segundos. Eu respirei fundo. E então ouvi: — Lívia. Virei antes de conseguir evitar. Theo estava alguns passos atrás, mãos nos bolsos, cabelo bagunçado, expressão séria. Não irritada. Não arrogante. Séria de um jeito que mexeu comigo. — A gente precisa conversar — ele disse. Precisar. Aquela palavra pesou. Eu balancei a cabeça. — Agora não. Ele deu mais um passo, mas parou antes de ficar perto demais. — Eu não quero que você pense que… Parou. Recomeçou. — Eu não deixo ninguém falar assim de mim. Mas hoje… hoje eu fiz isso por você. Meu coração falhou uma batida. Ele continuou: — Você não merece carregar um boato que nem é seu. Engoli seco. — Nem você. Theo sorriu de um jeito que parecia ferido e grato ao mesmo tempo. — Talvez eu mereça, sim. Pausa. — Mas você não. A sinceridade doeu. Entrou como faca afiada, cortando silenciosamente. — Theo… — comecei. Mas não consegui terminar. Ele deu um meio passo atrás. Respeito. Distância. Auto-controle. — Quando você souber o motivo de tudo isso, vai entender — disse. — E eu… eu só espero que não seja tarde demais. E antes que eu pudesse perguntar tarde demais para quê, ele já tinha virado e desaparecido entre os alunos que deixavam o pátio. ********* Fiquei ali parada, sentindo o ar frio bater no rosto. A escola inteira tinha criado uma história sobre nós. Mas a sensação que me dominava era outra: Theo sabia algo. Algo que eu não sabia. Algo que mudaria tudo. E o pior — ou o melhor — é que eu já queria saber qual era essa verdade. Mesmo morrendo de medo dela.
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