3. As Mensagens (Parte III)...

1636 Words
Fiquei estática diante dele, como se a gravidade tivesse sido alterada e o chão sob meus pés tivesse perdido a solidez. As palavras dele reverberavam nas paredes do meu crânio, ocupando espaços que eu nem sabia que existiam. "Eu já te conhecia antes." "Você parecia alguém carregando peso demais." "Eu não consegui simplesmente passar." Era informação demais. Era íntimo demais. E, assustadoramente, era verdadeiro demais. Theo manteve a distância — uma fronteira calculada, nem perto o suficiente para invadir, nem longe o suficiente para me deixar escapar. Ele parecia esperar uma sentença. Uma reação, um sinal, um veredito. Mas eu ainda estava lutando para processar por que aquela confissão, em vez de me repelir, me atraía como um ímã. Levei a mão à testa, sentindo a pele fria. Respirei devagar, tentando acalmar o caos interno. "Isso é... desconcertante, Theo" minha voz tremeu, traindo a compostura que eu tentava manter. Ele não se defendeu. Não usou o charme habitual para desviar do assunto. Apenas assentiu, solene. "Eu sei que é, a voz dele saiu baixa, impregnada de sinceridade. "E eu não quero que pareça que eu fiquei te vigiando ou obcecado desde aquele dia. Não foi isso." Meu peito apertou, uma mistura de alívio e ansiedade. "Mas você se lembrou de mim" eu disse, e a frase saiu mais como uma acusação suave do que uma pergunta. "Lembrei" ele confirmou, sem vacilar. "E não sei explicar a lógica disso." Ele fez uma pausa, buscando meus olhos. "Só sei que aquele dia ficou gravado. Como uma fotografia que a gente não consegue jogar fora." As palavras dele entraram em mim como uma lâmina fina — um corte limpo, sem dor imediata, mas profundo o suficiente para atingir camadas que eu mantinha trancadas. Meu olhar se prendeu ao dele. Pela primeira vez, a imagem do "Theo Navarro, o garoto de ouro" se dissolveu. O que restou foi apenas um ser humano. Cheio de arestas. De dúvidas. De verdades fragmentadas. E de um sentimento que nem ele parecia capaz de nomear. A voz dele suavizou ainda mais, quase um toque físico: "Você está com medo de mim agora?" O silêncio se esticou por alguns segundos. "Não" respondi, engolindo em seco. "Estou com medo do que isso significa." Theo soltou o ar dos pulmões, como se aquela resposta fosse, simultaneamente, seu maior temor e sua única esperança. "Não precisa significar nada se você não quiser" ele disse. "Mas eu precisava te contar. Porque você merece a verdade. A versão sem cortes, desde o início." Analisei o rosto dele, absorvendo detalhes que antes passavam despercebidos. O cansaço nas linhas ao redor dos olhos. A tensão nos tendões do pescoço. A forma como ele mantinha os punhos cerrados ao lado do corpo, como se segurasse algo volátil que poderia explodir a qualquer momento. "Theo..." o chamei, num sussurro. "Por que você está assim?" A pergunta o desarmou. Ele pareceu subitamente menor, vulnerável. Ele desviou o olhar para o canto escuro da quadra. "Porque eu estraguei tudo" admitiu, a voz carregada de culpa. "Não era para você estar no meio desse caos. Não era para existir boato nenhum." Ele voltou a me encarar, intenso. "E eu sinto que, se eu não te contar agora... vou perder a única chance de consertar as coisas." Aquilo me atravessou como um raio. "Consertar o quê?" Um peso gravitacional desceu sobre nós. Theo deu um passo em minha direção — suave, hesitante — como se pisasse em vidro quebrado. "Consertar o que esse 'motivo' causou", ele disse, quase inaudível. Meu coração disparou contra as costelas. "Então me diga. Qual é esse motivo?" Ele fechou os olhos por um instante, inspirando profundamente, reunindo os cacos de sua coragem. "Eu vou te dizer." Ao abrir os olhos, eles estavam diferentes: escuros, tempestuosos, ilegíveis. "Mas tenho medo de que, se eu disser... você nunca mais queira olhar na minha cara." Uma dor aguda perfurou meu peito. "Isso é sobre mim?" perguntei, a voz falhando. "Sim" Theo respondeu. Imediato. Brutal. "Sobre algo que eu fiz?" Ele negou com a cabeça, veemente. "Não. Foi sobre algo que eu fiz... e que acabou atingindo você." O ar na quadra tornou-se rarefeito. "Theo, você está me assustando." Ele avançou mais um passo. Agora, ele estava perigosamente perto, na fronteira da minha zona de conforto, mas respeitando o limite invisível. "Eu prometo que nada disso foi para te machucar" a voz dele ganhou firmeza, urgência. "Mas... envolve você. Inevitavelmente." Um arrepio subiu pela minha espinha. Não era o frio da quadra. Era a premonição da verdade. Theo abriu a boca para continuar, mas parou. O olhar dele desceu, fixando-se na minha mão direita. A mão que ainda apertava o bilhete amassado que encontrei no corredor. Ele reconheceu a própria letra. Os olhos dele suavizaram, tingidos de tristeza. "Você leu?" ele perguntou. Assenti, incapaz de falar. Ele engoliu em seco. "É verdade." O silêncio pulsou. "Se você soubesse desde o começo... talvez tivesse atravessado a rua para me evitar." Ele parou por um momento, a expressão dolorosa. "Mas eu fui egoísta. Eu não queria que você fizesse isso." Algo dentro de mim cedeu. Uma barreira que eu nem sabia que tinha construído começou a ruir. O silêncio entre nós tornou-se denso, elétrico. Ele estava tão perto que eu podia contar os fios soltos na gola da camisa dele. Podia ouvir o ritmo descompassado da sua respiração. Podia sentir a tensão vibrando no espaço minúsculo que separava nossos corpos. E então, num tom que era meio confissão, meio súplica, ele sussurrou: "Lívia... eu não quero que você vá embora de mim." Meu coração parou. Um silêncio absoluto tomou conta do mundo. Eu não sabia o que responder. O que pensar. Como respirar. Antes que eu pudesse reagir, ele recuou meio passo. Como se tivesse percebido que tinha se exposto demais. Como se lutasse para conter uma represa prestes a estourar. O silêncio não estava vazio; estava vivo, latejando entre nós. Theo permanecia ali, inclinado na minha direção, buscando um equilíbrio que parecia impossível. Eu não conseguia desviar o olhar. Era como se, finalmente, eu estivesse vendo o Theo real, despido das lendas, das fofocas, das máscaras sociais. A voz dele quebrou o transe, rouca e desesperada: "Eu não quero que você vá embora de mim." A frase ecoou, pesada. Não era uma cantada barata. Não era um romance de filme. Era uma necessidade crua. "Theo..." tentei articular, mas as palavras morreram na língua. Ele passou a mão pelos cabelos com força, puxando a raiz, frustrado. "Eu sei que parece loucura" ele disse, atropelando as palavras. "Sei que parece errado. Mas eu preciso que você entenda o contexto, o motivo, antes de... antes de decidir que eu não presto." "Então me conte, sem enrolação" minha voz saiu mais firme agora, impulsionada pela adrenalina. "Estou aqui. Diz agora." Os olhos dele travaram nos meus. Vi a hesitação dançar nas pupilas escuras. Theo respirou fundo. Uma. Duas vezes. Preparando-se para o salto. "O motivo..." ele começou. Meu corpo inteiro entrou em alerta máximo. "É algo que aconteceu comigo. Um erro meu. E que... acabou chegando até você, sem que eu pudesse controlar." Ele fechou os olhos, o rosto contorcido. "Eu deveria ter te avisado. Antes da carona. Antes da confusão. Antes de te arrastar para o centro de algo que é problema meu." Senti o chão tremer metaforicamente. "Theo, agora eu estou com medo de verdade" confessei. "Eu sei" ele disse, abrindo os olhos. "Mas eu preciso que você tenha só mais um pouco de paciência. Só mais um pouco." Ele deu um passo. Lento. Cauteloso. O chão entre nós parecia feito de gelo fino. Ficamos frente a frente. O ar misturava nossos perfumes e nosso medo. Meu peito subia e descia rápido demais. O dele também. "O que você precisa saber é que... você não deveria estar envolvida nisso" a voz dele era um murmúrio quebrado. "Mas, quando percebi que estava... eu não consegui mais te tirar da minha cabeça. Nem da minha vida." Meu estômago afundou numa vertigem. "Então me diga. Qual é o 'isso'?" Theo abriu a boca. A tensão atingiu o pico. Eu senti. Ele ia falar. A represa ia estourar. A verdade, finalmente, seria libertada. Mas o mundo lá fora tinha outros planos. "Navarro! A coordenadora está te chamando! Agora!" O grito veio da entrada da quadra, cortante como um estalo de chicote. Theo fechou os olhos com força, uma expressão de dor pura cruzando seu rosto, como se tivesse sido arrancado fisicamente de onde queria estar. Ele virou a cabeça lentamente em direção à porta metálica. Respirou fundo, tremendo de raiva contida. E eu vi. Num segundo antes dele se virar, eu vi o desespero. A verdade tinha sido abortada no último segundo. Ele voltou o olhar para mim. Intenso. Feroz. "Eu volto" ele rosnou, a voz grave. "Não vai embora." "Theo..." "Eu preciso te contar isso, já que envolve você" ele insistiu, com uma convicção que fez meu sangue gelar. "E quando eu contar... nada vai ser igual. Eu sei disso." Ele deu um passo para trás, resistindo à própria vontade de ficar. A porta metálica se abriu com um rangido alto e enferrujado. Um funcionário da escola apareceu na fresta de luz. "Navarro, é urgente. Vamos." Theo me olhou uma última vez. Um olhar que valia por mil pedidos de desculpas. "Me espera." E saiu. A porta bateu, engolindo a luz e o som. O eco reverberou pelo espaço vazio e frio. Fiquei ali. Sozinha. Com o coração espancando o peito. Com a mente em turbilhão. E com a sensação claustrofóbica de que a verdade estava tão perto que eu podia sentir o hálito dela na minha nuca. A única certeza que restou foi simples, inevitável e aterrorizante: Quando ele voltasse por aquela porta, a minha vida mudaria. Quer eu quisesse... Quer não.
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