Procurei Theo pelos corredores como se fosse uma necessidade física.
O envelope da diretoria queimava na minha mão.
A conversa com o garoto do terceiro ano repetia na minha mente como um aviso:
“Teve outra garota.”
“Mesmo padrão.”
“Mesmo começo.”
“Sumiu.”
Meu coração batia rápido demais.
Minha respiração estava curtas.
E minha mente já criava cenários, possibilidades, versões distorcidas — todas perigosas demais.
Maria caminhava ao meu lado.
— E se ele não estiver mais aqui? — ela perguntou.
— Ele tá.
Engoli seco.
— Eu sinto que tá.
E estava.
Quando virei o corredor que dava para a sala de artes, o vi parado em frente à parede externa, com as mãos na nuca, a cabeça inclinada para baixo.
Ele parecia exausto.
Não fisicamente.
Exausto por dentro.
Não hesitei.
— Theo.
Ele ergueu o olhar rápido, como se estivesse esperando por mim — e temendo que eu não viesse.
— Eu vim — falei.
Theo respirou fundo, como se aquela frase fosse importante.
Demais.
— Eu sei. Obrigado.
Aproximou-se um pouco.
Mas só um pouco.
Como se tivesse medo de cruzar uma linha invisível que ele mesmo criou.
— Aconteceu alguma coisa? — ele perguntou. — Você tá… diferente.
Claro que eu estava.
Eu respirei fundo e soltei:
— Eu preciso te perguntar uma coisa. E quero que seja completamente sincero.
Theo ficou rígido.
Os ombros dele ficaram tensos, como se antecipassem um golpe.
— Pergunta.
Olhei direto nos olhos dele.
— Teve outra garota antes de mim?
O mundo pareceu prender a respiração.
Theo não respondeu imediatamente.
Ele não desviou.
Não mentiu.
Não tentou parecer calmo.
Ele só… ficou ali.
E a culpa ficou evidente no rosto dele — uma culpa silenciosa, profunda, que dizia mais do que qualquer palavra.
— Quem te falou isso? — ele perguntou, com a voz baixa demais.
A pergunta dele não era de quem n**a.
Era de quem sabe que a verdade chegou do jeito errado.
Eu dei um passo à frente.
— Então é verdade?
Theo fechou os olhos por um instante.
Quando abriu, havia algo quebrado no olhar dele — algo que eu nunca tinha visto.
— Sim.
Pausa.
— Teve outra garota.
Meu coração deu um salto doloroso, como se tivesse batido na direção errada.
Ele continuou, a voz sufocada:
— E eu ia te contar hoje.
Passou a mão pelo cabelo, nervoso.
— Era isso que eu ia falar antes de me chamarem.
Eu respirei fundo, tentando organizar o caos interno.
— Theo… isso tem a ver com o que está acontecendo comigo agora?
Ele hesitou.
Por um segundo, hesitou.
E então disse:
— Tem.
Pausa.
— Tem tudo a ver.
As pernas ficaram fracas.
Maria se afastou, respeitando nosso espaço, mas sem nos deixar sozinhos de verdade.
Theo deu um passo — e parou, como se tivesse medo de tocar em qualquer coisa.
— Eu não quero que pense que você é uma repetição, Lívia.
A voz dele estava quase falhando.
— Não é nada disso.
— Então o que é? — perguntei, a garganta apertada.
Ele passou a mão no rosto, claramente lutando contra ele mesmo.
— Eu me envolvi num problema que não era só meu.
Pausa.
— E ela acabou no meio.
Engoliu seco.
— Assim como você.
A sensação de déjà vu me atingiu como uma onda.
— Ela… sofreu por sua causa? — perguntei, mesmo sabendo que a resposta machucaria.
Theo ficou completamente imóvel.
— Não do jeito que você tá pensando.
Pausa longa.
— Mas sim. Sofreu.
Eu senti o estômago revirar.
— E agora sou eu? — perguntei, a voz baixa, quebrada. — Eu sou a próxima?
Theo deu dois passos rápidos até ficar perto o suficiente para eu sentir a urgência dele.
— Não fala assim.
A voz dele saiu firme, intensa.
— Eu tô tentando evitar exatamente isso.
Meu coração disparou.
— Então me conta tudo agora.
Ele encarou meus olhos com um desespero sincero.
— Eu quero.
Tocou o próprio peito, como se aquilo doesse.
— Eu preciso.
— Então fala, Theo.
Ele respirou fundo.
— A outra garota…
Pausa pesada.
— Ela confiou em mim do jeito errado.
Eu senti um arrepio.
— E você não quer que isso aconteça comigo.
Ele assentiu lentamente.
— Você não merece ser alvo disso de novo.
Pausa.
— E eu não mereço uma segunda chance pra estragar alguém.
As palavras dele me cortaram por dentro.
Theo desviou o olhar por um instante e depois voltou, como se algo dentro dele tivesse decidido.
— Mas você não é ela, Lívia. E eu não quero que você ache que é.
Pausa.
— É por isso que precisa saber de tudo.
Eu respirei fundo.
— Então começa me dizendo quem é ela.
Theo ficou em silêncio.
Longos segundos.
E então abriu a boca para responder —
Mas o corredor se encheu de vozes.
Pessoas chamando, passos correndo, barulho vindo da direção da diretoria.
Maria se virou rápido.
— Livi… acho que aconteceu alguma coisa.
Theo ouviu também.
Seu corpo ficou tenso na hora.
— Eu preciso ir lá. — ele disse.
— Theo! — chamei, desesperada pela interrupção de novo.
Ele se virou para mim.
Os olhos dele carregavam tudo — medo, culpa, necessidade.
— Eu volto.
Pausa.
— E eu termino isso.
Outro passo atrás.
— Eu juro.
E correu.
Eu fiquei ali.
Com o envelope da diretoria na mão.
Com metade da verdade solta no ar.
E com a sensação de que:
A outra garota não era só uma história do passado.
Ela era a chave.
E o motivo de tudo estar caindo sobre mim agora.
***********
O som vindo da direção da diretoria crescia — passos apressados, vozes tensas, a movimentação típica de quando algo sério acontece.
Maria puxou meu braço, preocupada.
— Livi… isso não parece normal.
Não parecia.
A escola inteira havia ficado pesada desde a manhã.
Cada corredor tinha um clima estranho, como se algo silencioso estivesse se acumulando sem que ninguém percebesse.
Eu ainda segurava o envelope para Theo.
Mas ele tinha sumido outra vez, dessa vez correndo como se estivesse sendo chamado para um problema urgente — grande o suficiente para interromper a conversa mais difícil do dia.
Maria e eu seguimos na direção dos barulhos, mesmo sem saber ao certo o que procurar.
Viramos o corredor principal e encontramos um grupo de alunos próximos à porta da diretoria.
Alguns cochichavam.
Outros pareciam assustados.
E então ouvi.
— É por causa daquela denúncia.
— A nova?
— Sim. E envolve o Navarro.
— De novo?
— Não é só ele. Tem outra pessoa no meio.
Meu coração deu um salto.
Maria ficou rígida ao meu lado.
— Livi… não se aproxima. — ela disse.
Mas eu já estava dando passos lentos, quase sem perceber.
Algo maior estava acontecendo ali, e parte de mim sabia:
Tinha ligação com ele.
E se tinha ligação com ele… tinha ligação comigo.
Uma funcionária saiu da sala da diretoria e fechou a porta com força.
Theo estava lá dentro.
Eu sabia.
Eu sentia.
*******
— Vamos sair daqui — insistiu Maria, tentando me puxar. — Você não precisa ouvir isso agora.
Mas antes que eu pudesse responder, uma voz atrás de nós se intrometeu:
— Engraçado como tudo se repete, né?
Reconheci o tom.
Uma mistura de deboche e intenção.
O mesmo garoto do terceiro ano que tinha falado comigo antes.
Virei devagar.
— O que você quer? — perguntei.
Ele deu um sorriso demorado.
— Só acho curioso.
Ele inclinou a cabeça.
— A outra garota também passava por isso. O caos começava do nada… e aí, boom. Todo mundo falava. Todo mundo sabia. Todo mundo dava opinião.
Maria foi para a frente, irritada.
— Cala a boca. Você não sabe de nada.
— Sei o suficiente. — ele rebateu, olhando diretamente para mim. — Sei que você devia ficar esperta.
Meu estômago revirou.
— Por quê? — perguntei, mesmo sabendo que eu não ia gostar da resposta.
Ele deu um passo à frente, mais perto do que deveria.
— Porque quando o Navarro tenta “proteger”, alguém sempre sai machucado.
O ar sumiu dos meus pulmões.
Maria puxou meu braço de novo.
— Vem. Agora.
Eu não consegui me mover.
Porque, naquele instante, a porta da diretoria se abriu.
Theo saiu.
Mas não como antes.
Não irritado.
Não frustrado.
Saiu pálido.
Tenso.
Com o olhar no chão, as mãos fechadas, os ombros rígidos — como se estivesse segurando o impacto de um soco interno.
Quando levantou os olhos e me viu, parou.
Literalmente parou.
Como se o mundo tivesse congelado entre nós.
A coordenadora apareceu atrás dele.
— Theo, você precisa ficar disponível amanhã cedo. Vamos conversar sobre o segundo caso.
Meu coração saltou de um jeito doloroso.
— Segundo caso? — perguntei, quase sem voz.
Theo fechou os olhos como se aquilo doesse mais nele do que em mim.
Maria arregalou os olhos.
O garoto atrás de nós sorriu.
A coordenadora, percebendo que tinha mais gente no corredor do que deveria, fechou a porta novamente.
Theo caminhou até mim.
Cada passo dele era tenso, como se estivesse lutando contra ele mesmo.
Parou perto, mas não tão perto quanto antes.
Era como se a presença dele tivesse medo de tocar na minha.
— Livia…
Sua voz estava rouca.
— Eu ia te contar. Hoje. Tudo.
Engoliu seco.
— Mas já não é mais sobre o que eu queria.
— É sobre o quê, então? — perguntei.
Um silêncio curto.
Doloroso.
Então ele disse:
— É sobre o que fizeram agora.
Arrepios subiram pela minha coluna.
— Fizeram… o quê?
Theo respirou com dificuldade, como se as palavras estivessem travadas na garganta.
— Tem outra denúncia.
Pausa pesada.
— Usaram meu nome.
Outra pausa.
— E o seu.
Senti o corpo inteiro gelar.
Maria ficou boquiaberta.
— O quê?!
Theo finalmente me olhou nos olhos — e era um olhar cheio de culpa, medo e urgência.
— Alguém fez isso com a gente de propósito.
Pausa.
— E você está no centro disso agora, Lívia.
O chão pareceu inclinar.
— Por quê? — perguntei, com a voz trêmula. — Por que eu?
Theo fechou os olhos, respirou fundo e disse a frase que encerrou o capítulo como uma lâmina:
— Porque a outra garota…
Olhou para mim.
— Tinha o seu mesmo perfil.
Meu coração disparou de um jeito que doeu.
— Que perfil? — sussurrei.
E Theo respondeu, quase num fio de voz:
— Alguém que acreditava em mim.