4. O Projeto (Parte III)

1762 Words
Procurei Theo pelos corredores como se fosse uma necessidade física. O envelope da diretoria queimava na minha mão. A conversa com o garoto do terceiro ano repetia na minha mente como um aviso: “Teve outra garota.” “Mesmo padrão.” “Mesmo começo.” “Sumiu.” Meu coração batia rápido demais. Minha respiração estava curtas. E minha mente já criava cenários, possibilidades, versões distorcidas — todas perigosas demais. Maria caminhava ao meu lado. — E se ele não estiver mais aqui? — ela perguntou. — Ele tá. Engoli seco. — Eu sinto que tá. E estava. Quando virei o corredor que dava para a sala de artes, o vi parado em frente à parede externa, com as mãos na nuca, a cabeça inclinada para baixo. Ele parecia exausto. Não fisicamente. Exausto por dentro. Não hesitei. — Theo. Ele ergueu o olhar rápido, como se estivesse esperando por mim — e temendo que eu não viesse. — Eu vim — falei. Theo respirou fundo, como se aquela frase fosse importante. Demais. — Eu sei. Obrigado. Aproximou-se um pouco. Mas só um pouco. Como se tivesse medo de cruzar uma linha invisível que ele mesmo criou. — Aconteceu alguma coisa? — ele perguntou. — Você tá… diferente. Claro que eu estava. Eu respirei fundo e soltei: — Eu preciso te perguntar uma coisa. E quero que seja completamente sincero. Theo ficou rígido. Os ombros dele ficaram tensos, como se antecipassem um golpe. — Pergunta. Olhei direto nos olhos dele. — Teve outra garota antes de mim? O mundo pareceu prender a respiração. Theo não respondeu imediatamente. Ele não desviou. Não mentiu. Não tentou parecer calmo. Ele só… ficou ali. E a culpa ficou evidente no rosto dele — uma culpa silenciosa, profunda, que dizia mais do que qualquer palavra. — Quem te falou isso? — ele perguntou, com a voz baixa demais. A pergunta dele não era de quem n**a. Era de quem sabe que a verdade chegou do jeito errado. Eu dei um passo à frente. — Então é verdade? Theo fechou os olhos por um instante. Quando abriu, havia algo quebrado no olhar dele — algo que eu nunca tinha visto. — Sim. Pausa. — Teve outra garota. Meu coração deu um salto doloroso, como se tivesse batido na direção errada. Ele continuou, a voz sufocada: — E eu ia te contar hoje. Passou a mão pelo cabelo, nervoso. — Era isso que eu ia falar antes de me chamarem. Eu respirei fundo, tentando organizar o caos interno. — Theo… isso tem a ver com o que está acontecendo comigo agora? Ele hesitou. Por um segundo, hesitou. E então disse: — Tem. Pausa. — Tem tudo a ver. As pernas ficaram fracas. Maria se afastou, respeitando nosso espaço, mas sem nos deixar sozinhos de verdade. Theo deu um passo — e parou, como se tivesse medo de tocar em qualquer coisa. — Eu não quero que pense que você é uma repetição, Lívia. A voz dele estava quase falhando. — Não é nada disso. — Então o que é? — perguntei, a garganta apertada. Ele passou a mão no rosto, claramente lutando contra ele mesmo. — Eu me envolvi num problema que não era só meu. Pausa. — E ela acabou no meio. Engoliu seco. — Assim como você. A sensação de déjà vu me atingiu como uma onda. — Ela… sofreu por sua causa? — perguntei, mesmo sabendo que a resposta machucaria. Theo ficou completamente imóvel. — Não do jeito que você tá pensando. Pausa longa. — Mas sim. Sofreu. Eu senti o estômago revirar. — E agora sou eu? — perguntei, a voz baixa, quebrada. — Eu sou a próxima? Theo deu dois passos rápidos até ficar perto o suficiente para eu sentir a urgência dele. — Não fala assim. A voz dele saiu firme, intensa. — Eu tô tentando evitar exatamente isso. Meu coração disparou. — Então me conta tudo agora. Ele encarou meus olhos com um desespero sincero. — Eu quero. Tocou o próprio peito, como se aquilo doesse. — Eu preciso. — Então fala, Theo. Ele respirou fundo. — A outra garota… Pausa pesada. — Ela confiou em mim do jeito errado. Eu senti um arrepio. — E você não quer que isso aconteça comigo. Ele assentiu lentamente. — Você não merece ser alvo disso de novo. Pausa. — E eu não mereço uma segunda chance pra estragar alguém. As palavras dele me cortaram por dentro. Theo desviou o olhar por um instante e depois voltou, como se algo dentro dele tivesse decidido. — Mas você não é ela, Lívia. E eu não quero que você ache que é. Pausa. — É por isso que precisa saber de tudo. Eu respirei fundo. — Então começa me dizendo quem é ela. Theo ficou em silêncio. Longos segundos. E então abriu a boca para responder — Mas o corredor se encheu de vozes. Pessoas chamando, passos correndo, barulho vindo da direção da diretoria. Maria se virou rápido. — Livi… acho que aconteceu alguma coisa. Theo ouviu também. Seu corpo ficou tenso na hora. — Eu preciso ir lá. — ele disse. — Theo! — chamei, desesperada pela interrupção de novo. Ele se virou para mim. Os olhos dele carregavam tudo — medo, culpa, necessidade. — Eu volto. Pausa. — E eu termino isso. Outro passo atrás. — Eu juro. E correu. Eu fiquei ali. Com o envelope da diretoria na mão. Com metade da verdade solta no ar. E com a sensação de que: A outra garota não era só uma história do passado. Ela era a chave. E o motivo de tudo estar caindo sobre mim agora. *********** O som vindo da direção da diretoria crescia — passos apressados, vozes tensas, a movimentação típica de quando algo sério acontece. Maria puxou meu braço, preocupada. — Livi… isso não parece normal. Não parecia. A escola inteira havia ficado pesada desde a manhã. Cada corredor tinha um clima estranho, como se algo silencioso estivesse se acumulando sem que ninguém percebesse. Eu ainda segurava o envelope para Theo. Mas ele tinha sumido outra vez, dessa vez correndo como se estivesse sendo chamado para um problema urgente — grande o suficiente para interromper a conversa mais difícil do dia. Maria e eu seguimos na direção dos barulhos, mesmo sem saber ao certo o que procurar. Viramos o corredor principal e encontramos um grupo de alunos próximos à porta da diretoria. Alguns cochichavam. Outros pareciam assustados. E então ouvi. — É por causa daquela denúncia. — A nova? — Sim. E envolve o Navarro. — De novo? — Não é só ele. Tem outra pessoa no meio. Meu coração deu um salto. Maria ficou rígida ao meu lado. — Livi… não se aproxima. — ela disse. Mas eu já estava dando passos lentos, quase sem perceber. Algo maior estava acontecendo ali, e parte de mim sabia: Tinha ligação com ele. E se tinha ligação com ele… tinha ligação comigo. Uma funcionária saiu da sala da diretoria e fechou a porta com força. Theo estava lá dentro. Eu sabia. Eu sentia. ******* — Vamos sair daqui — insistiu Maria, tentando me puxar. — Você não precisa ouvir isso agora. Mas antes que eu pudesse responder, uma voz atrás de nós se intrometeu: — Engraçado como tudo se repete, né? Reconheci o tom. Uma mistura de deboche e intenção. O mesmo garoto do terceiro ano que tinha falado comigo antes. Virei devagar. — O que você quer? — perguntei. Ele deu um sorriso demorado. — Só acho curioso. Ele inclinou a cabeça. — A outra garota também passava por isso. O caos começava do nada… e aí, boom. Todo mundo falava. Todo mundo sabia. Todo mundo dava opinião. Maria foi para a frente, irritada. — Cala a boca. Você não sabe de nada. — Sei o suficiente. — ele rebateu, olhando diretamente para mim. — Sei que você devia ficar esperta. Meu estômago revirou. — Por quê? — perguntei, mesmo sabendo que eu não ia gostar da resposta. Ele deu um passo à frente, mais perto do que deveria. — Porque quando o Navarro tenta “proteger”, alguém sempre sai machucado. O ar sumiu dos meus pulmões. Maria puxou meu braço de novo. — Vem. Agora. Eu não consegui me mover. Porque, naquele instante, a porta da diretoria se abriu. Theo saiu. Mas não como antes. Não irritado. Não frustrado. Saiu pálido. Tenso. Com o olhar no chão, as mãos fechadas, os ombros rígidos — como se estivesse segurando o impacto de um soco interno. Quando levantou os olhos e me viu, parou. Literalmente parou. Como se o mundo tivesse congelado entre nós. A coordenadora apareceu atrás dele. — Theo, você precisa ficar disponível amanhã cedo. Vamos conversar sobre o segundo caso. Meu coração saltou de um jeito doloroso. — Segundo caso? — perguntei, quase sem voz. Theo fechou os olhos como se aquilo doesse mais nele do que em mim. Maria arregalou os olhos. O garoto atrás de nós sorriu. A coordenadora, percebendo que tinha mais gente no corredor do que deveria, fechou a porta novamente. Theo caminhou até mim. Cada passo dele era tenso, como se estivesse lutando contra ele mesmo. Parou perto, mas não tão perto quanto antes. Era como se a presença dele tivesse medo de tocar na minha. — Livia… Sua voz estava rouca. — Eu ia te contar. Hoje. Tudo. Engoliu seco. — Mas já não é mais sobre o que eu queria. — É sobre o quê, então? — perguntei. Um silêncio curto. Doloroso. Então ele disse: — É sobre o que fizeram agora. Arrepios subiram pela minha coluna. — Fizeram… o quê? Theo respirou com dificuldade, como se as palavras estivessem travadas na garganta. — Tem outra denúncia. Pausa pesada. — Usaram meu nome. Outra pausa. — E o seu. Senti o corpo inteiro gelar. Maria ficou boquiaberta. — O quê?! Theo finalmente me olhou nos olhos — e era um olhar cheio de culpa, medo e urgência. — Alguém fez isso com a gente de propósito. Pausa. — E você está no centro disso agora, Lívia. O chão pareceu inclinar. — Por quê? — perguntei, com a voz trêmula. — Por que eu? Theo fechou os olhos, respirou fundo e disse a frase que encerrou o capítulo como uma lâmina: — Porque a outra garota… Olhou para mim. — Tinha o seu mesmo perfil. Meu coração disparou de um jeito que doeu. — Que perfil? — sussurrei. E Theo respondeu, quase num fio de voz: — Alguém que acreditava em mim.
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