2- UMA CHANCE

1408 Words
Capítulo 2 SOMBRA NARRANDO A vida me ensinou que pra chegar no topo... Alguém tem que cair. Eu cheguei onde cheguei pisando firme. Com sangue nos tênis, lealdade nos olhos e ódio guardado no peito. Assumir o morro do Santa Marta não foi sorte. Foi guerra. Foi estratégia. Foi sobrevivência. O antigo dono, Romarinho, já tava fraco… deixando os menor fazer o que queria, a contenção uma bagunça, a boca dando prejuízo. A quebrada precisava de um chefe de verdade. E eu?.Eu tava pronto. O povo me chama de Sombra porque eu chego sem fazer barulho. Mas quando eu decido agir… ninguém fica de pé. Muita gente hoje respeita minha história. Mas poucos sabem como eu sentei na cadeira mais pesada do Santa Marta. Poucos sabem como o Romarinho caiu. Mas eu lembro de cada segundo. Foi numa noite abafada, daquelas que o ar pesa, o morro fica estranho, como se até o vento tivesse medo de passar. Romarinho já não era mais chefe. Era um fardo. Tava se afundando na própria merda. Cheirando o que devia vender, sumindo com dinheiro, deixando os menor se perder e ainda… Fazendo o pior. Tava se aproveitando das mina nova da favela. Pegava as inocente, oferecia droga, dinheiro, posição. Mas era só pra usar. Mente suja, coração podre. E o povo sabia. Só que ninguém tinha coragem de fazer nada. Menos eu. Chamei ele pra trocar ideia. Disse que era sobre a movimentação do final de semana. Ele veio sozinho. Achava que era intocável. Vacilo de quem se esquece que todo império cai. O barraco era em cima da laje, isolado. Tinha só uma lâmpada fraca e a lua por testemunha. — Fala, moleque. O que tu quer? — ele perguntou, se jogando na cadeira, o olho vermelho, a mão tremendo de tanto pó. — Quero teu lugar. — falei seco, direto, encarando. Ele riu. — Tu tá achando mesmo que tem peito pra isso? Quem é tu no jogo do bicho, pivete? — Sou o que vai botar ordem nessa p***a. O morro tá um lixo por tua culpa. Tu se entope de droga, some com grana, e ainda tem coragem de abusar das mina novinha. Tu morreu e não sabe. O sorriso dele murchou. — Tu vai me matar? — Eu não. Quem vai te matar é tudo que tu fez. Eu só tô aqui pra terminar o que tu começou errado. Puxei a Glock. Dois tiros. Secos. Um no peito. Outro no meio da testa. Ele caiu sem barulho, igual o lixo que era. O baseado apagado no chão, o corpo mole, os olhos abertos sem brilho nenhum. Dei as costas. Desci do barraco com o sangue dele nos meus tênis, a arma ainda quente na mão e o coração frio. Lá embaixo, o bonde já esperava. Ninguém falou nada. — O Santa Marta tem dono novo. — anunciei, firme. Eles só assentiram, porque ja sabiam. Sabiam que quem mata monstro… às vezes tem que virar um também. Naquela noite, eu não virei rei. Virei o juíz do meu morro. E foi assim que o Sombra nasceu. Não por sede de poder. Mas por justiça. Pela quebrada. Meu nome é João, tenho trinta anos nas costas. Moreno, alto, tatuado e forte. Mas não se engane… o que me fez virar o Sombra não foi o porte. Foi o sangue frio. A mente no lugar. A disposição pra fazer o que ninguém mais tinha coragem. Assumi o morro com dezenove anos. Novo, mas com visão de homem. Já tinha visto de perto o que o poder faz com quem não sabe usar. Vi chefe morrer por confiar demais. Vi traidor subir e cair no mesmo mês. Aprendi cedo: aqui não tem espaço pra fraqueza. De lá pra cá, fui construindo meu nome. Com base, com disciplina, com justiça. Nunca precisei gritar pra ser respeitado. Quem anda comigo sabe que o papo é reto. Se errou, paga. Se é leal, come do meu prato. Nunca fui muito de sentimento. Mulher, pra mim, era só distração. Até conhecer a Luiza. Ela apareceu no meu caminho numa noite qualquer. Chuva caindo fina, e eu encostado no bar da laje, só observando o movimento. Ela chegou com uma amiga, de salto alto, cabelo preso num coque bagunçado, e aquele olhar atrevido que desafiava sem nem precisar abrir a boca. — Cerveja, por favor — ela disse pro dono do bar, mas os olhos dela tavam em mim. — Essa aí eu pago — falei, sem tirar o cigarro da boca. Ela riu de canto, aquele tipo de riso que deixa homem com a mente suja. Se aproximou devagar, me olhou de cima a baixo. — Tu é o Sombra? — Não. Sou só o cara que manda nessa p***a toda. — respondi, no seco. Ela gostou. Gosto de mulher que não se assusta fácil. E Luiza era assim: afiada, vaidosa, cheia de si. No começo, era só fogo. Beijo roubado, pegada no canto escuro, briga e reconciliação quente. Com o tempo, ela foi ficando. Dormia no meu barraco, botava roupa minha, ajeitava minha cama como se fosse dona. E eu… deixei. Não porque eu era burro. Mas porque achei que ela tava do meu lado. Ilusão. A maior que eu já tive. Hoje, olhando daqui, sei que nunca foi amor. Foi conveniência. Ela amava o status, o nome, o respeito que vinha junto. Mas na hora que eu precisei… Na hora que minha perna não respondeu… Ela virou as costas como se eu fosse só mais um caído no chão da guerra. Mas é isso. Tem gente que a vida bota no teu caminho só pra te ensinar o que é traição e ela me ensinou. A raiva me comia por dentro. Daquele tipo que corrói devagar… Que sufoca. Até pra respirar doía. Tava ali, jogado naquela cama de hospital, o corpo travado da cintura pra baixo e a mente fervendo. O quarto tava silencioso, só o barulho do monitor marcando o tempo que eu queria matar. Até que a porta abriu com um estalo. Era ele. Maconha. Meu parceiro. Meu braço direito. Meu sub. Cria do morro, fiel até o osso. Desde o começo comigo. Quando o bonde era pequeno e a gente nem sonhava em dominar o Santa Marta, ele já tava do meu lado, batendo de frente com tudo. Entrou calado, com a cara fechada e o boné abaixado. Me olhou por uns segundos, como se ainda tentasse entender o que tava vendo. — E aí, patrão... — ele soltou, a voz baixa, embargada. — Cê tá bem? Soltei um riso seco, amargo. — Tô ótimo. Só perdi as pernas, fui traído e largado com um filho no colo. Melhor impossível. Ele fechou a cara na hora. Veio até o lado da cama e puxou a cadeira. Sentou. — Se eu pudesse, eu trocava de lugar contigo agora — ele disse, firme, encarando meu olho. — Eu sei disso. — respondi no mesmo tom. Maconha era daqueles que não precisa provar lealdade todo dia. A presença dele já era escudo. — Os menor tão na atividade, a boca tá rodando, a contenção tá firme. Mas os cara já tão cochichando… falando que tu pode não voltar. A raiva queimou mais ainda dentro de mim. A mão fechou sozinha, com força, até doer o punho. — Quem cochichar vai cochichar debaixo da terra. — Eu tô contigo, Sombra. Em pé, deitado ou de cadeira de rodas. Essa p***a ainda é tua. Assenti. Respirei fundo. — Vai ter volta, Maconha. Tudo isso. Essa cadeira. Essa dor. Essa humilhação. — Já tem plano? Olhei pro teto. E naquele instante, como se o universo ouvisse minha mente, a porta se abriu de novo… e a enfermeira entrou com uma prancheta na mão. — Oi, desculpa atrapalhar… mas a gente vai começar a agendar a reabilitação. A nova fisioterapeuta chega hoje no Rio. Vem só pra uma conferência, mas topou fazer uns atendimentos enquanto estiver aqui… Maconha me olhou. Eu levantei uma sobrancelha. — Como é o nome dela? — Doutora Eduarda. Sorri. Mas não foi sorriso bom. Foi daqueles que só quem me conhece sabe o que significa. A enfermeira saiu do quarto e eu encarei o Maconha. — Descobre onde ela vai se hospedar — falei pro Maconha. — E arruma tudo. Porque essa mulher… vai ser minha última chance de levantar. E ela vai vir até mim. Nem que seja amarrada. Continua.....
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