Eu a queria perto. Não por desejo, embora o gosto do seu beijo ainda queimasse na minha boca, mas por necessidade. Ela era a peça descontrolada que eu precisava manter sob vigilância constante. Depois daquela noite na cozinha, a tensão entre nós se tornou palpável, como um fio esticado que ameaçava romper a qualquer momento.
Ambos estamos tentando manter uma distância segura.
Vejo seus olhares em mim, sei que ela vê os olhares que dou em sua direção, ainda sim, nos mantemos seguros, distantes e fazer novos avanços.
Não seu o que pensar em relação a ela, mas sei que não posso perder o controle.
Quando o dia amanhecer, eu sabia que seria mais um dia de batalhas. Uma batalha que travei contra mim mesmo e contra todos os sentimentos que seguem querendo ganhar espaço.
Ela chegou essa manhã, bateu na porta e depois que dei autorização para que entrasse, seu cheiro de invadiu.
Era uma merda que esse cheiro já tivesse impregnado em mim, na mesma medida que era um alivio.
Trocamos meia dúzia de palavras e então ela se acomodou em uma das cadeiras bem a minha frente.
Mesmo tentando não focar, eu a observava trabalhar nos relatórios, e o silêncio dela me incomodava mais do que qualquer grito.
Muda, em silêncio, fazendo seus serviço e me deixo maluco.
— Eu sei o que você está procurando nos arquivos, Aurora — disse, quebrando o silêncio sem erguer os olhos da minha tela. — Você está procurando o meu nome, diretamente ligado ao fogo. Você não vai encontrar.
Eu sabia que ela faria isso. Sabia que encontraria qualquer brecha para descobrir mais informações. Ela estava com sede e eu podia ver bem isso.
Ela finalmente olhou para mim. Os olhos, ainda cheios de ressentimento, me desafiaram.
— E isso te absolve? Seu pai deu a ordem. Você herdou o império dele. Você é o nome Valente. Você é responsável.
Eu suspirei, encostando-me na cadeira. Esta era a conversa que eu evitei por vinte anos, não com ela, mas comigo mesmo.
— Meu pai era um homem de sangue frio. Ele fez o que ele achava necessário para garantir que o nosso caos fosse menor do que o caos de uma guerra total. Sim, foi um aviso. Foi brutal. Mas se não fosse por essa brutalidade, a cidade estaria em chamas há décadas, dividida entre mil gangues.
— É sério? Você quer mesmo me dizer que ouve um motivo justo para a morte de pessoas inocentes? Você está justificando a morte dos meus pais, dizendo que era o melhor? — Ela se levantou da cadeira, a fúria a consumindo.
— Estou te explicando a lógica da ordem. Não é só uma justificativa. É a verdade — respondi, com a voz firme. — A Família Valente é o dique que impede o mar de inundar. O fogo na sua casa foi uma tragédia horrível, um custo que eu lamento, mas foi um m*l menor para garantir que milhares de outras famílias não morressem em uma guerra interminável. Eu herdei o sistema, mas eu garanto a paz através dele.
Vi as lagrimas brotando, embora ela brigasse para que não caíssem. Ela me olhou com nojo, mas também com uma ponta de incerteza. A sua verdade emocional confrontava a minha verdade pragmática.
— Você fala como se fosse algum salvador da pátria, quando na verdade, nós dois sabemos que você não passa de um monstro. Nós dois sabemos que você não se importa com que vive e quem morre. — ela sussurrou.
— Talvez eu seja — respondi, levantando-me e caminhando até ela. Eu estava perto o suficiente para sentir o cheiro do sabonete que comprei — Mas eu sou o seu monstro. E o que você viu em mim, aquela noite... é o que me torna o único homem que pode te proteger de tudo. Inclusive de mim mesmo. Você fala como se a única coisa que sentisse por mim fosse ódio, quando na verdade... nós dois sabemos que não é bem assim.
— Eu te odeio — sussurra.
— Eu sei. Mas não é só isso.
Toquei seu rosto. De inicio achei que ela se afastaria, mas não. Ela não se afastou. Aquele momento de vulnerabilidade, de quase confissão, era a minha única chance de reconquistar a sua lealdade.
O mundo não era preto e branco, mas um cinza sombrio onde a moralidade era uma moeda sem valor.