A invasão — continuação
— Avança, avança! — Iago gritou, o fuzil colado no ombro.
— Segura cadência, c*****o! — Terror retrucou, encostando o corpo na parede descascada e mandando rajada curta na descida do beco. — Se gastar pente agora, nós fica vendido!
Um soldado atrás deles gritou, abaixado no canto do beco:
— Tô seco, preciso trocar! — era o Menor D, um dos mais ligeiros da tropa.
— Cobre ele, Iago! — Terror ordenou sem tirar o olho da frente.
Iago se lançou na quina da parede, botou o corpo rápido e despejou sequência em direção aos caveira que vinham subindo. A rajada obrigou os policiais a recuarem alguns passos, se escondendo atrás de um portão de ferro.
— Troca tranquilo! Tô na frente! — Iago berrou, dedo firme no gatilho.
— Valeu! — Menor D respondeu, já ajoelhado trocando pente, a mão tremendo de pressa.
De repente um estampido seco explodiu perto. A bala bateu no muro e arrancou lasca de cimento bem na linha do rosto do Iago. Ele recuou de um pulo.
— c*****o, quase! Esses filha da p**a tão mirando na gente.
— Fica esperto, p***a! — Terror respondeu rápido, sem parar de disparar.
A poucos metros dali já dava pra ouvir o barulho das deles subindo no beco, a tropa do BOPE avançando com gritos:
— Avança, vai, vai, não recua!
O eco encheu a viela apertada.
— Eles tão colado! — Vascaíno avisou da outra quina, já com a arma apontada.
— Então segura perto! — Iago rebateu, travando o fuzil no ombro e fixando o olho na curva do beco.
Três polícias apareceram de repente, surgindo pelo beco, fuzil na frente. Iago mirou em cheio, o primeiro caiu com tiro certeiro no peito. Os outros dois tentaram recuar, mas tomaram rajada do Terror, que varou o canto da parede.
— Já foi! — Iago gritou. — Segura, pai, que eles não sobem não!
— Não vacila, Iago! — Terror devolveu, firme. — Troca pente antes de secar!
Iago puxou pente novo, encaixou batendo com força e voltou pro muro.
Um dos soldados da tropa correu pelo beco lateral e se jogou encostando na porta de alumínio:
— Vou pegar posição melhor aqui!
— Vai, mas não bota o corpo todo não! — Terror avisou, rajando sem parar. — Senão vai cair de graça!
Outra sequência veio de baixo. Os polícia gritavam, a voz ecoando forte:
— Prende eles no beco! Não deixa respirar!
As paredes estreitas tremiam de tanto buraco de bala. Um dos soldados do morro não teve sorte: levou no meio da testa e caiu duro,ficando largado no chão de cimento.
— Ai, p***a! — Vascaino gritou, vendo o moleque estendido, sangue escorrendo pela boca. — Menor não tinha nem 18 anos…
— c*****o, mano! — Iago berrou, largando o corpo contra o muro e puxando o cadáver pro canto. — Morreu na hora.
Terror olhou rápido, no meio da trocação, e viu o filho arrastando o corpo.
— Deixa aí, c*****o, eles tão vindo!
Iago não largou. Encostou o corpo do garoto atrás de um portão e voltou pra posição. Encostou o fuzil na quina e despejou fogo outra vez.
Terror olhou pro filho, o peito latejando, mas deixou escapar entre rajada e rajada:
— Tu é bom mesmo, moleque! Mira afiada do c*****o!
Iago abriu um meio sorriso, suado e mantendo o dedo firme. O rádio chiou alto na cintura dele, estourando no meio do barulho:
— Tá f**a aqui, p***a! — a voz do menor veio desesperada. — Nós tá perdendo gente pra c*****o! Preciso de reforço urgente, Iaguin!
Iago olhou pro pai, a respiração curta, e respondeu sem pensar:
— Segura, c*****o! Não arreda o pé! Eu vou descer pra reforçar vocês!
Outro grito cortou a frequência, ainda mais desesperado:
— O Boca caiu, mano! Não vai dar pra segurar mais não, neguin! Os polícia tão vindo pra cima!
Iago respirou fundo, os olhos ardendo de fúria.
— Eles tão estourando os menor lá embaixo. Eu tenho que descer.
Terror apertou o rádio com força e berrou:
— Segura essa p***a, rapaziada! Segura até o último cair! Não deixa eles subir! Já tamo a caminho!
A troca de tiro não parava. Rajada subia, rajada descia. Os dois lados engolidos no som das armas.
— Se a gente não descer agora, vão tombar geral lá embaixo — Iago falou de novo, engatando pente novo.
— Então o Vascaíno desce contigo, c*****o! — Terror retrucou, varando mais um policia na escada enquanto eles avançavam.
— Vou sozinho! Esse moleque não dá conta não — Iago falou.
— Tu não vai descer! — Terror virou pro filho, o olhar duro, o maxilar travado.
O rádio chiou outra vez:
— Tão entrando na rua da igrejinha! Tão ganhando espaço, c*****o! Tá só eu e mais dois aqui!
Terror apertou o botão, gritou de volta:
— Segura, p***a! Eu tô descendo! Não arreda o pé!
Eles avançaram mais um pouco, mas o beco fechava, impossível descer direto.
— Não dá por aqui! — Vascaíno gritou, procurando cobertura.
Terror respirava fundo, encarando o filho. A testa suada, os olhos cheios de fúria e orgulho ao mesmo tempo.
— Iago, é agora ou nunca. Se eles subirem nesse beco, eles vão tomar tudo.
Iago encarou ele e respondeu sem tremer:
— Eles não vão subir, c*****o.
Uma rajada forte veio de baixo, obrigando eles a se encolher. Terror olhou de um pro outro, respirou e puxou uma granada do colete. Arrancou o pino com os dentes e lançou longe.
— Baixa, p***a! — gritou.
Todos se jogaram no chão. O barulho estourou dentro do beco, fumaça, grito, estilhaço batendo nas paredes estreitas.
A poeira tomou o espaço. Mesmo assim, eles avançaram no meio da confusão, varando quem aparecia. Iago acertou dois na sequência, rajada reta. Menor D do lado meteu outro no chão. Terror vinha atrás, atirando em cadência.
Até que o Vascaíno levou um tiro no abdômen e caiu de joelhos segurando a barriga.
— p**a que pariu! Perdi! — ele gritou, a mão coberta de sangue.
Terror se abaixou, arrancou a própria blusa e mandou:
— Segura aqui, c*****o! Pressiona! — enquanto gritava no rádio: — Reforço urgente no beco 7, beco que sai na igrejinha!
Iago ficou abaixado, pressionando o ferimento do companheiro.
— Fica comigo, p***a! Tu não vai tombar aqui não! — falava pro garoto.
Renan chegou com mais três soldados, suados, fuzil na mão.
— c*****o, menor! — ele soltou, vendo o sangue jorrando. — O buraco tá feio!
— Ele tem que ir pra UPA — Iago disse.
— Leva ele, Iago — Terror mandou.
Iago levantou a cabeça, encarando o pai.
— Não, tô descendo. Leva tu.
Terror travava o filho só no olhar, a raiva e o orgulho misturados.
A verdade é que ele era igualzinho ao pai.
Não tinha medo de nada.
Mesmo sem querer admitir e sentindo raiva da teimosia do filho.
Ele se orgulhava.
Devido ao impasse sobre quem deceria. Renan resolveu tomar uma decisão:
— Eu vou com ele.
Silêncio de um segundo. Todo mundo encarou ele.
Ela loucura os dois descerem por ali.
A chance de dar merda era maior que a de dar certo. Se o beco tava cheio de polícia, a saída do beco tambem estaria.
— Eu vou descer com o Iago. — Renan repetiu e Terror estreitou os olhos.
— Fica aqui com o moleque ferido e eu desço, Renan. — Terror falou.
— Não tô pedindo não, Terror. — Renan retrucou. — Não vou deixar ele sozinho.
— Não precisa vir ninguém, p***a — Iago rebateu — Eu dou conta sozinho.
— Tu não é homem de ferro não, c*****o. — Renan falou firme. — Vai achando que pode bancar tudo no peito… não pode. Parece teu pai, c*****o.
Terror respirou fundo, aceitando na marra.
— Tá bom. Eu vou levar o menor. — gritou pros soldados: — Prepara ele pra remoção!
Iago e Renan bateram mão, ajeitaram o corpo e começaram a descer o beco estreito, passo rápido, dedo no gatilho. As paredes marcadas de bala, o chão sujo de sangue fresco.
— Esquerda limpa — Renan falou baixo, correndo junto.
Iago respirou fundo, o olhar firme.
— Direita também. Mas fica esperto, p***a. Esses verme brotam do nada.
O beco bifurcou: uma ruazinha pra esquerda, outra saindo na rua da igrejinha. Iago levantou a mão, sinalizando.
— Vamos reto.
— Fechou. — Renan confirmou.
Só que antes deles saírem, uma rajada estourou de frente. Os polícia tavam colados na saída.
— Cuidado! — Renan gritou, se jogando contra a parede.
Iago grudou no portão de ferro, as balas ricocheteando a centímetros.
— p***a, p**a que pariu!
As vozes ecoaram no beco:
— Prensa eles aí! Não deixa subir, p***a! A ordem é pra matar.
Renan abriu sequência, rajando.
— Caiu um! — disse pro Iago.
Iago levantou meio corpo, puxou o gatilho certeiro e fez com que dois caíssem.
Mas eles não recuaram e as rajadas aumentavam ainda mais.
Iago olhou rápido pro parceiro.
— Mete o pé, Renan. Te dou cobertura, irmão.
Renan ajeitou o pente novo, respiração pesada.
— Nós fica junto, p***a. Tá maluco arregar pra esses p*u no **.
Os dois permaneceram, lado a lado, sustentando no beco apertado, descendo bala contra o avanço do BOPE, cada vez mais perto.
Maria Clara
Quando chegou a tarde, minha mãe apareceu na porta do quarto. Dizendo que o Humberto estava lá fora, me esperando pra me levar à delegacia.
Por um instante, o tempo parou.
Fiquei sentada na beira da cama, com a bolsa nas mãos e o coração doendo.
Queria inventar qualquer coisa, dizer que eu tava passando m*l, que não devia fazer aquilo ou até reafirmando que não queria.
Mas não dava pra fugir.
Meu pai tinha sido claro demais.
Respirei fundo, ajeitei a alça da bolsa no ombro e caminhei até a porta.
Quando atravessei a porta da sala e o vento bateu no meu rosto.
O Humberto estava encostado no carro, braços cruzados, a postura reta, aquele jeito calmo que ele sempre tinha.
Calmo demais pra um dia como aquele.
O relógio no pulso dele refletia o sol, e por um segundo fiquei olhando pra aquilo, sem motivo, só pra adiar o que vinha depois.
Ajeitei o cabelo atrás da orelha, tentando disfarçar a tremedeira nas mãos.
Ele me olhou rápido, com um meio sorriso educado,frio e polido demais pra ser consolo.
Respondi com um aceno pequeno, meio sem saber se queria mesmo ir até ele.
Meu corpo foi, mas minha cabeça ficou.
O medo vinha em ondas, subindo, descendo, até virar silêncio.
— Teu pai pediu pra eu te acompanhar — ele disse, ajeitando a gola da camisa. A voz dele era leve, gentil.
Assenti, sem conseguir responder.
Por mim, eu voltava pra dentro e me trancava no quarto. Mas meu pai não me perdoaria.
O Humberto abriu a porta do passageiro.
Entrei.
O som da porta fechando pareceu me isolar do mundo.
Prendi o cinto e fiquei ali, olhando pra frente, tentando respirar. O motor ligou. O carro se moveu.
— Eu sei que tu não queria vir — ele disse depois de um tempo. — Mas tenta não ficar assim. Tu tá fazendo a coisa certa.
Demorei pra responder pensando na fala dele.
Fiquei olhando o reflexo da rua pelo vidro, vendo tudo se distorcer.
— Desde quando mentir é o certo? — perguntei baixo.
Ele suspirou, apertou o volante.
As mãos dele tinham aquela calma ao dirigir.
— Quando a mentira é por uma boa causa... justifica. — disse encarando o sinal vermelho.
Baixei o olhar pro meu colo.
Minhas mãos estavam entrelaçadas, nervosas.
Balancei a cabeça devagar.
— Mentira nunca justifica nada.
O silêncio ficou no ar.
Só o vento entrando pela fresta do vidro e bagunçando o meu cabelo.
Eu queria que o caminho fosse mais longo, só pra demorar a chegar.
— Teu pai só quer te proteger — ele tentou de novo. — Tu sabe o que ele passou contigo naquele hospital. Sabe que ele é a única pessoa que faria de tudo pra te ver bem.
— Eu sei… — respondi quase num sussurro. — Mas isso não é me proteger.
Ele me olhou rápido de lado.
— Ele te ama, Clara. Tá fazendo o que acha certo.
Não respondi. Até porque não adiantaria.
Virei o rosto pro vidro e fingi observar o movimento da rua, mesmo sem conseguir prestar atenção em nada.
O carro virou à esquerda.
A fachada cinza da delegacia apareceu, com policiais indo e vindo, o som de vozes, o portão aberto.
Um frio invadiu a minha barriga.
O Humberto estacionou e desligou o motor.
Virou-se um pouco, o olhar calmo de novo, como se me dissesse sem palavras que não havia mais volta.
— Vamos juntos, tá?
— Eu posso ficar sozinha um pouquinho antes de entrar? — perguntei, sem olhar pra ele.
— Claro. Fica o tempo que precisar. Eu tô aqui fora. — abriu a porta e saiu.
Fiquei sozinha.
As mãos no colo, o coração na garganta.
Olhei pro prédio à frente e me deu uma vontade quase infantil de fugir.
Mas eu não tinha pra onde ir.
Eu deveria odiar o Iago.
Por tudo que ele me fez. Pelo que disseram que ele é. Mas eu não conseguia.
O amor, às vezes, é essa coisa c***l.
Te faz sentir culpa até por sentir.
Fechei os olhos, as lágrimas escorrendo.
A lembrança do toque dele veio com tudo. O beijo, o calor, o jeito dele dizer meu nome.
Aquilo me tocou de novo.
— Me desculpa... — sussurrei. — Me desculpa por ser fraca...
Encostei a testa no vidro frio e fiquei ali, tentando parar de tremer. Mas era inútil.
Tem coisa que a gente não consegue enterrar, por mais que o mundo inteiro queira e por mais que seja o certo a se fazer.