Maria Clara
Entrei no escritório com o coração batendo rapido e uma raiva gigantesca. Minhas mãos tremiam e eu sentia o estômago doer de nervoso.
Meu pai tava sentado atrás da mesa, com o telefone entre o ombro e a orelha, escrevendo alguma coisa num papel.
Perecia estar calmo.
Como se nada de importante tivesse acontecido.
Como se ele não tivesse mandado matar o Iago dentro da cadeia.
Fiquei parada na porta, respirando fundo e tentando não chorar antes de falar.
Mas o sentimento de revolta que me invadiu era tanto que quando eu vi já tinha saido tudo de qualquer jeito:
— Até que você parece calmo pra quem mandou matar o Iago! — disse, e a voz saiu mais alta do que eu queria, embargada, mas firme.
A caneta parou no meio da folha.
Ele levantou o olhar devagar, sem nem disfarçar o espanto.
— O quê?
— Você mandou matar o Iago! — repeti, sentindo o corpo inteiro tremendo. — Você fala tanto de justiça, de moral, de Deus… mas você é pior do que todos que já condenou!
Ele desligou o telefone, ajeitou seu corpo e respirou fundo.
Como se fosse o homem mais racional do mundo.
E eu, a filha histérica.
— Maria Clara… do que você tá falando?
— Do que eu tô falando? — avancei um passo, e senti o coração saltar no peito. — Você fala que o Iago não presta, que o pai dele é um criminoso, que a mãe dele é uma marginal… mas você virou o quê? Igual ou pior! Porque quem manda matar uma pessoa é o quê, pai? — gritei, e senti minha garganta arranhar.
Ele levantou sem pressa da cadeira.
Calmo demais.
Frio demais.
— Cuidado com as palavras. — a fala dele parecia mais uma ameaça do que um simples aviso.
— Sabe o que o senhor é, doutor Eduardo Galdeia? — o tom saiu irônico, debochado e petulante. Como se fosse outra pessoa falando por mim. — Um assassino!
O tapa veio antes que eu conseguisse respirar.
O barulho ecoou pelo escritório e o meu rosto ardeu na hora.
Levei a mão à bochecha.
Mas não chorei.
Não ia dar esse gosto pra ele e pra ninguém mais.
— Pode me bater! — gritei. — Pode me bater, mas o senhor sabe que eu tô falando a verdade!
Ele veio pra cima de mim rápido, o rosto deformado de raiva.
— Cala essa boca, menina!
Me empurrou, e eu tropeçei na poltrona e quase caí.
— Eduardo! — ouvi a voz da minha mãe. — Solta ela! Agora!
Ele virou, os olhos na direção dela cheios de ódio.
— Não se mete!
— Eu me meto sim! — ela gritou, rebatendo. Era a primeira vez que eu via ela falando assim com ele.— Você não tem direito de tocar na nossa filha!
— Claro… — ele riu— que tu ia se meter. Afinal se ela é assim, a culpa é tua que não soube educar. Enquanto eu trabalhava pra sustentar essa casa, tu deixava ela solta.
Solta.
Essa palavra me doeu profundamente. Será que ele esqueceu de tudo que eu passei? Quem me dera se em vez de fazer quimioterapia eu tivesse tido a oportunidade de estar "solta" como ele disse.
— Solta? — minha mãe avançou nele — Ela passou a adolescência inteira presa numa cama de hospital, Eduardo!
Ele gritou rebatendo e ela também.
E de repente eu tava ali, no meio dos dois, assistindo tudo aquilo.
— Ele fala isso porque ele é um covarde! — gritei. — Um covarde que mente, manipula e mata pra fazer sua vontade prevalecer.
O segundo tapa veio mais forte que o primeiro.
E depois disso foram várias agressões empurrão, tapas e socos.
Senti o impacto nas costas, na cabeça e tentei me proteger com os braços.
Minha mãe correu pra me defender, mas ele empurrou ela também. Parecia um louco!
Ela bateu no canto da mesa e caiu.
— PARA, PAI! — gritei, mas ele estava completamente fora de si.
Eu só ouvia os gritos dela e via ele inclinado sobre ela. Empurrei ele pelas costas, mas ele virou e me jogou longe.
Acabei caindo e então minha cabeça bateu em alguma coisa e tudo ficou embaçado.
Tentei levantar, mas as pernas não obedeciam.
A voz dele se misturava ao choro da minha mãe e ao som dos móveis sendo arrastandos..
Vi quando ela foi empurrada e acabou caindo no chão. Tentei ajudar mais a minha cabeça doía muito e em questão de segundos tudo escureceu.
(...)
Quando acordei, o relógio da parede marcava quase nove da noite.
A luz fria do teto me deixava tonta e a cabeça latejava.
— Mãe… — sussurrei. — Mãe...
Me arrastei até a porta, tentando me firmar até me levantar.
As pernas bambas.
Subi as escadas segurando no corrimão, o coração batendo acelerado, com medo do que podia encontrar.
— Mãe...
A porta do quarto deles tava entreaberta.
Empurrei com cuidado, até ver ela caída no chão, com o rosto machucado e lotada de hematomas pelo corpo.
— Mãe! — gritei, ajoelhando do lado.
Ela abriu os olhos devagar, tentou dizer algo, mas só saiu um gemido fraco.
Senti o desespero me corroer e comecei a chorar.
— Foi ele? — perguntei, sem acreditar que o homem que eu tanto me orgulhava de ser filha, era capaz de uma coisa dessa.. — Foi ele que fez isso?
Ela tentou falar, mas só balançou a cabeça, um movimento leve, quase invisível.
Peguei o celular com as mãos tremendo.
Não podia ligar pra polícia porque não confiava em ninguém.
O Humberto menos ainda.
Nem pra ninguém de casa.
A única pessoa que pensei foi na Manuela.
Liguei pra ela, chorando enquanto segurava o celular com a mão trêmula.
Chamada
— Maria Clara? O que aconteceu?
— Meu pai… — falei entre lágrimas. — Ele agrediu a mim e a minha mãe. Eu tô bem mas ela tá muito machucada, muito mesmo.
— Escuta, eu vou te mandar o nome de um hospital, vai pra lá agora que eu encontro com vocês lá.
— Eu não posso. É o primeiro lugar que ele vai procurar a gente.
— Tá.. então vem pra cá.
— Praí? — pergunto, olhando minha mãe toda encolhida no chão.
— Sim, aqui pro morro. Vem pra cá. Eu vou te esperar aqui na entrada.
— Tá bem.. tô indo.
— Vou te mandar o endereço até aqui, bjo — ela responde e desligamos a ligação.
Sai do quarto e procurei o meu pai pelos cômodos. Mas ele não estava em lugar nenhum, então subi novamente, peguei nossos documentos, o celular dela, algumas roupas e chamei um carro.
O motorista subiu e me ajudou a descer ela.
Colocamos minha mãe no banco de trás, e eu entrei junto.
Ela gemia baixinho, e eu só pensava que se algo acontecesse com ela, eu nunca ia me perdoar por ter iniciado aquela discussão.
Quando o carro se aproximou do morro, vi a Manuela parada em frente a uma Hilux preta, esperando a gente.
O farol iluminou o rosto dela e o carro onde estávamos foi reduzindo a velocidade.
O motorista olhou pra mim pelo retrovisor, com o tom meio hesitante:
— É aqui, moça?
Assenti rápido, o coração acelerado.
— É sim... pode parar aqui, por favor.
O carro foi encostando e parou.
— Obrigada, viu? — falei, sorrindo pro motorista. — Obrigada mesmo por ter vindo até aqui.
Ele só respondeu um “se cuida”, meio baixo, e eu desci.
A porta bateu e o som pareceu me devolver pra realidade. Eu não acreditava que depois de tudo eu estava novamente neste lugar.
A Manuela veio andando rápido.
— Maria Clara! — me chamou, e eu sorri.
— Oi... — murmurei, abrindo um sorriso. — Obrigada por tudo que tá fazendo pela gente.
Ela olhou pro carro.
— Tua mãe tá aí dentro?
Assenti.
— Tá. Ela machucou a perna, tá sentindo muita dor.
— Ok. — ela virou pra trás e chamou alguém que tava encostado num poste conversando. — Ô, Juninho! Vem cá, ajuda aqui.
O cara desencostou e veio andando, magro, moreno e com poucas tatuagens aparentes.
Veio sem dizer nada.
Abri a porta traseira e minha mãe se mexeu devagar, gemendo de dor.
— Devagar, mãe... — segurei o braço dela.
— Ai... tá doendo, filha... — murmurou, a voz baixa.
O cara se aproximou.
— Bota o braço dela aqui, ó. — orientou, e a gente fez o que ele disse.
Com cuidado, conseguimos tirar ela do carro.
A Manuela já tinha aberto a porta da caminhonete dela e ajudou minha mãe a se sentar.
— Assim tá bom, tia? — ele perguntou, ajeitando ela no banco.
— Tá, sim... obrigada, meu filho. — minha mãe disse pro tal Juninho.
— De nada, tia. — respondeu e se afastou.
A Manuela fechou a porta e olhou pra mim.
— Entra também. — entrei.
Estar ali me deu uma sensação estranha... era como se a minha vida tivesse virado de cabeça pra baixo depois da última vez que pisei aqui.
— O que aconteceu? — ela perguntou, sem tirar os olhos de mim pelo retrovisor enquanto dirigia pelas ruas do morro.
— Eu... discuti com meu pai e ele acabou perdendo o controle... me empurrou, bateu em mim... e depois nela também.
A voz deu uma morgada no final.
E ela ficou quieta por uns segundos, apertando o volante.
— Isso já aconteceu antes? — perguntou e eu neguei.
— Nunca. — balancei a cabeça. — Foi a primeira vez. Nunca tinha visto nada assim.. ele nunca nem gritou com a gente.
Ela respirou fundo.
— Ele não tinha o direito de encostar em vocês.
Abaixei a cabeça e me inclinei entre os bancos olhando pra minha mãe que tava de olhos fechados.
A perna esticada, o tornozelo inchado.
— Qual o nome da sua mãe?
— Fernanda.
— DONA FERNANDA, a senhora me escuta? — perguntou a Manuela, olhando pro banco do carona.
— Tô, sim. — ela respondeu, abrindo os olhos.
— A senhora pode ficar tranquila, tá? — a Manuela disse, firme. — Enquanto vocês estiverem comigo, ninguém encosta em vocês.
Minha mãe assentiu, emocionada.
— Obrigada.
A Manuela me olhou e sorriu.
— Eu vou levar vocês pra UPA, ver esse tornozelo.
Assenti.
— Tá bom. — respondi sorrindo.
O carro começou a subir enquanto eu olhava pela janela. Aqui era diferente da aparecia do condomínio onde a gente morava, mas pelo menos aqui estavamos seguras.
Meus olhos queimaram e a Manuela percebeu, colocou a mão pra trás segurando o meu braço e falou:
— Vocês vão ficar bem.
Fechei os olhos, sentindo o peito apertar.
E respondi só com um sussurro:
— Vamos sim.
Naquele momento, eu realmente queria acreditar que tudo ia se resolver.
De verdade.
Lá no fundo, onde ainda mora o restinho de fé que eu insisto em carregar.
Porque, sei lá... não era a primeira vez que eu via meu mundo desabar, e mesmo assim, de algum jeito, as coisas sempre acabavam se ajeitando.
E dessa vez eu quis acreditar nisso de novo que no fim, tudo ia acabar bem. Pra mim, pra minha mãe e pra ele.
Mesmo sem saber como ainda.