Maria Clara
Me olho no espelho e dou voltinhas, rodando a barra do vestido azul só pra ter certeza de que ele é mesmo o escolhido. Minha cama tá uma bagunça. Vestido por cima de vestido, cabides, maquiagem. Mas esse… esse me convenceu. Ele caiu no meu corpo do jeito certo, ficou lindo.
Me sento pra fechar a sandália prata, me equilibrando na beira da cama, quando a porta se abre.
— Maria… — minha mãe entra animada, mas para no meio da frase. Os olhos dela me percorrem de cima a baixo. — Que linda, filha.
Levanto, ajeitando o vestido e ela vem até mim. Segura nos meus ombros e me gira, devagar, com aquele sorriso orgulhoso de mãe.
— Gostou, mãe? Tô bonitinha? — pergunto, rindo nervosa.
— Bonitinha? — ela solta uma risadinha curta. — Você tá deslumbrante. — se senta na beira da cama e cruza as pernas. — Isso tudo é pro tal do… Iuri?
Olho pra ela e n**o sorrindo.
— Iago, mãe. — corrijo — E não. Não é por ele.
Ela levanta as mãos como quem diz “tá bom, acredito”, e se levanta não escondendo o sorriso no canto do rosto.
— Então tá… tô lá embaixo com o seu pai. — fala me abraçando por trás e sai.
Fico encarando a porta fechada por alguns segundos antes de voltar pro espelho.
(…)
Quando o relógio marca oito, o celular vibra em cima da penteadeira. Olho a tela e o nome dele aparece. O coração dispara na hora. Respiro fundo e desço.
— Ele chegou. — aviso na sala, passando pela porta grande de madeira.
Meus pais estão no sofá e a minha mãe me lança um olhar cheio de malícia, mas eu só sigo. O caminho de pedra até a rua parece mais longo do que nunca. As luzes do jardim acesas refletem na fachada da casa, e eu sinto cada passo do salto ecoar dentro de mim.
As luzes azuis aparecem primeiro, cortando a rua, e o barulho do motor do carro me faz prender a respiração. A BMW para bem na frente de casa, brilhando sob as luzes do condomínio. A cor azul metálica reflete no portão do vizinho, e por um segundo parece que tudo em volta ficou pequeno perto dela.
O ronco do motor ainda vibra no meu peito quando os faróis se apagam, e a rua volta a ficar silenciosa, só com o som distante de um cachorrinho latindo.
A maçaneta se move, a porta abre.
E ele desce.
Calça preta justa, camisa verde aberta nos primeiros botões, boné combinando. As tatuagens subindo pelo pescoço, o olhar fechado, direto. Ele não sorri, mas noto o seu olhar descendo pelo meu corpo.
Tento parecer calma, mas minhas mãos estão frias e úmidas, e sinto a barriga doer quando ele para diante de mim.
— Oi. — ele fala baixo.
— Oi… — respondo, quase sem voz. Minha garganta ta seca.
Ele continua parado, me olhando. E o pior é que eu não sei ler nada naquele olhar. Não esboça sorriso, não fala ou demonstra nada. Só me olha. Como se estivesse me medindo, de cima a baixo, guardando cada detalhe pra si. Eu tento sustentar o olhar, mas minhas pernas tremem, denunciando o meu nervosismo.
De repente, ele se move. Abre a porta do carro, do lado do carona. Se abaixa e tira de lá dois buquês, lindos, um de rosas brancas e o outro cheios de cores. É como se ele tivesse arrancado um pedaço de primavera e colocado ali.
Eu levo as mãos ao rosto, surpresa, sem conseguir disfarçar a emoção. Tô me tremendo toda.
— Pra você. — diz simples, estendendo um dos buquês.
Meus dedos tocam o papel que envolve as flores, e eu quase desabo. O cheiro fresco me invade, mas é a forma como ele me olha nesse momento que me deixa toda boba.
O outro buquê, ele mantém nas mãos.
Meus pais apareceram na porta e eu e o Iago fomos até eles. Assim que nós aproximamos ele deu um passo à frente e estendeu a mão.
— Eduardo — meu pai se apresentou.
O Iago apertou a mão dele com firmeza.
— Iago. — disse, sem sorrir.
Ele foi até o carro e buscou uma caixinha de charuto e entregou ele. Sinceramente não sei como ele sabia que o meu pai gostava disso.
Meu pai agradeceu e o Iago se virou pra minha mãe, entregando o buquê de flores. Ela ficou toda agradecida e abriu um sorriso imenso.
— Seja bem-vindo, querido.— respondeu simpática.
Ele fez um aceno leve com a cabeça.
— O prazer é meu. — respondeu.
Quando entramos, notei pela janela que um dos seguranças do meu pai se aproximou do carro do Iago, do jeito que eles sempre fazem. Mas logo meu pai falou alguma coisa e minha atenção voltou pra dentro de casa.
Sentamos na sala, e meu pai, puxava vários assuntos com o Iago.
— E então, Iago… com o que você trabalha?
— Tenho uma empresa de logística. — ele respondeu tranquilo, a voz sempre no mesmo tom. — Trabalho com transporte e distribuição.
Meu pai se ajeitou no sofá todo interessado no que o Iago falava.
— Logística… isso exige inteligência. Administra sozinho? — perguntou ao Iago.
— Não. Tenho gente que trabalha comigo. — ele falou simples, mas com uma segurança que até eu fiquei impressionada.
E os dois seguiram conversando. Meu pai fazia perguntas, e o Iago respondia cada uma sem hesitar, sempre direto, sempre com aquela postura.
Eu m*l piscava, juro. Só ficava ali, boba, achando incrível como ele conseguia prender a atenção do meu pai. O homem mais difícil de impressionar no mundo. Eu pensava: como ele consegue?
Quando minha mãe anunciou o jantar, fomos até a sala de jantar. A mesa estava impecável, cheia de pratos elaborados. Camarão na moranga, bacalhau, risoto de frutos do mar, salada com frutos secos, vinho caro decantado. Tudo brilhava sob a luz do lustre.
— Espero que goste, Iago. Fizemos com muito carinho. — minha mãe disse, ajeitando os pratos.
— Comida bonita dessa, impossível não gostar. — ele respondeu, ainda sem sorrir, mas educado.
Sentamos e brindamos com vinho. Meu pai perguntou a idade dele que respondeu ter vinte e sete anos.
Meu pai assentiu, quase impressionado.
— Jovem… mas fala como um homem de experiência.
E eu fiquei ali, observando e ouvindo os dois conversarem durante todo o jantar. Depois que terminamos, voltamos pra sala. Minha mãe trouxe café, docinhos e serviu em bandeja de prata. O cheiro de café fresco tomou a sala inteira.
Sentamos, e foi aí que meu pai aproveitou para agradecer.
— Iago… eu preciso agradecer. — começou, a voz firme, cheia de gravidade. — A Maria é o nosso bem mais precioso. É nossa única filha, nossa menina, que sempre foi tão dedicada, estudiosa, que enfrentou situações que muitos não teriam suportado… e mesmo assim se formou, se tornou uma excelente médica veterinária. Nós temos muito orgulho dela.
Meu rosto queimou na mesma hora, o coração pequenininho de emoção e nesse instante o Iago olhou pra mim rapidamente.
— O que você fez… — ele continuou — é algo que pra nós não tem preço. Você arriscou a sua vida por ela. Isso não é algo que se agradece com palavras, mas mesmo assim eu preciso dizer: obrigado.
O Iago mexeu só um pouco a cabeça.
— Não precisa agradecer. Eu fiz o que qualquer um faria.
Meu pai franziu o cenho, negando de imediato.
— Qualquer um, não. — disse firme. — A imensa maioria das pessoas não faria o que você fez rapaz. Você salvou a minha filha, e isso é algo que eu jamais vou esquecer.
— Hoje o Rio de Janeiro é praticamente um estado falido. A segurança pública está um caos, tomada pelo crime organizado. Por isso que eu luto todos os dias para devolver a cidade para a população de bem. Mas não é fácil. — ele fez uma pausa, tomando um gole do café. — O rapaz mesmo que assaltou a clínica… tinha catorze anos.
— Pela idade, ele não vai preso. — explicou. — O máximo que pode acontecer é cumprir medidas socioeducativas. Internação em centro educacional, que pode durar até três anos, ou liberdade assistida. Mas nós sabemos como é as coisas… a mãe esteve na delegacia, alegou mil coisas, e provavelmente o menino já deve está em casa.
Ele balançou a cabeça, decepcionado.
— Esse é o retrato do nosso país. Enquanto famílias sofrem, esses vagabundos continuam agindo impunemente.
Eu vi quando o olhar do meu pai se endureceu, cheio daquela indignação que sempre carregou. O Iago, por outro lado, só escutava. Não interrompia, não comentava, só mantinha a postura seria, como se absorvesse cada palavra.
— Eu repito, Iago. — meu pai concluiu. — Não há nada que eu possa fazer que pague a dívida que eu tenho contigo. Mas se algum dia precisar de mim, de qualquer coisa… me procure.
— Tá tranquilo. — o Iago respondeu, seco, mas educado. — Não existe dívida. Tá tudo certo.
O Iago se levantou agradecendo pelo jantar, pela recepção e se despediu dos dois com um aperto de mão firme. Minha mãe sorriu, meu pai assentiu respeitoso
Saímos juntos até a frente da casa. O ar da noite estava mais fresco, as luzes do jardim ainda acesas. A segurança seguia lá fora, todos armados e nos encarando de longe. E no meio daquele cenário todo, só eu e ele, andando lado a lado em silêncio.
A gente para perto do carro dele, e ele encosta as costas no capô e eu fico do seu lado.
— Obrigada por ter aceitado o convite… e pelos presentes. — falo sincera, mas minha voz sai baixa, meio sem jeito, porque ele me encara fixamente. Sem desviar o olhar.
— Eu que agradeço pelo convite. — responde simples, e a forma seca como ele fala só me deixa mais nervosa.
— Então… é isso. — começo a me afastar, mas sinto sua mão prender a minha.
Num puxão, meu corpo bate no dele e, por um segundo, eu esqueço até de respirar. Fico travada e sem reação.
Ele abre um pouco as pernas, me prende entre elas, e desliza a mão pela lateral do meu rosto. Eu fico estática, congelada, mas por dentro é como se estivesse derretendo.
— Amanhã eu passo aqui pra te levar pra almoçar.— fala, como quem não está pedindo e sim comunicando.
— Eu… almoçar com você? — gaguejo, porque meu cérebro não acompanha o coração disparado.
— Tu não quer? — ele tira uma mecha do meu cabelo do rosto, e esse gesto tão simples me deixa soltando fogos internamente.
— Quero. — sai rápido, sem nem pensar. Só depois me dou conta: eu aceitei. Meu Deus, eu aceitei!
— Então já é. — confirma.
Ele se inclina, e eu sei exatamente o que vai acontecer. Meu coração grita, mas minha razão fala mais alto. Então viro o rosto no último instante.
E então percebo… os seguranças estão todos nos olhando. Eles não disfarçam, e ele também percebe. Endurece o maxilar, encara na direção deles e balança a cabeça.
Se desencosta do carro, dá a volta, abre a porta.
— Amanhã, às dez da manhã. — diz, antes de entrar.
Eu só concordo com a cabeça, meio boba, e subo pra calçada. Ele acelera, o ronco do motor ecoa na rua, e eu fico ali parada, sem saber se rio, se choro, se desmaio.
Como que eu durmo agora?