Manuela
Hoje é um daqueles dias que eu queria continuar deitada na minha cama. Mas infelizmente não posso, então respiro fundo e tento vestir a mesma força que já carrego há tantos anos.
Na verdade, desde o dia em que eu e o Bernardo fomos presos. Ele, condenado a mais de noventa anos por tráfico, organização criminosa e sei lá mais quantos crimes que jogaram na conta dele. E eu... eu que nunca tive envolvimento nenhum com o crime, que sempre tentei ficar de fora, acabei pagando junto. Paguei cinco anos de condenação por associação ao tráfico, como eles gostam de chamar.
A pena era de cinco anos no papel. Consegui a redução para dois em prisão domiciliar. Dois anos trancada entre quatro paredes, sentindo o tempo me engolir. Sem poder visitar o Terror. Sem poder levar meus filhos pra escola.
Uma época que eu gostaria de esquecer pra sempre.
Viro de lado na cama e encaro o espaço vazio. Vinte anos longe do amor da minha vida. Vinte anos dormindo sozinha. Até hoje eu ouço na minha cabeça a voz dele me falando do medo que sentia que a história do pai se repetisse.
Sento na cama, passo a mão pelo rosto, ajeito o cabelo e fecho os meus olhos. Assim como faço todas as manhãs. Minhas orações já viraram rotina. Peço a Deus proteção pros meus filhos, pro Bernardo e pra mim. Além de força, porque sem ela eu já tinha desistido.
Assim que termino, a porta do quarto se abre de supetão.
— Mãe, me empresta aquela tua bolsa da Gucci pra eu ir pra faculdade? — Alicia entra já pedindo, sem nem me dar bom dia primeiro.
Levanto a cabeça e encaro bem aquela cara abusada dela.
— Tá de s*******m, né, Alicia? Tu quer ir logo com a minha bolsa da Gucci pra faculdade? Desce daí, menina.
— Ah, mãe… — ela resmunga, virando os olhos.
— Na próxima vez que tu virar esses olhos pra mim eu arranco eles e como com sal e pimenta.
— Credo mãe!
— Teu nome é Alicia, não é Alice. Então acorda porque você não tá no país das maravilhas.
Ela cruza os braços e faz um belo de um bico. Emburradinha.
— O que mais tu tem nesse closet é bolsa tua, garota.
— Nossa, mas tu também nunca pode me ajudar com nada. Impressionante... Se fosse o meu pai...
— Pois é, mas não é o teu pai. — falo cortando e já indo pro banheiro, lavar o meu rosto.
Enquanto cumpro o ritual de beleza continuo ouvindo a ladainha dela ecoar atrás de mim.
O menina pra reclamar de tudo, pensa numa criatura resmungona e chata. É ela, não sei quem puxou. Eu, com vinte e poucos anos, já tava correndo atrás das minhas coisas. Não ficava encostada esperando nada de ninguém, não.
Mas vai falar isso com o Terror… por ele, a Alicia nem estudar, estudava. Ficava aí de florzinha de enfeite dentro de casa, só gastando ar. Ele acha bonito essa história de filha paparicada, que não precisa se preocupar com nada. Eu fico é doida, porque sei que sem estudo ninguém chega a lugar nenhum.
Ela aparece na porta com uma bolsa vermelha quase nova na mão.
Se eu tô lembrada eu só usei essa bolsa uma única vez.
— Essa pode? — balança na minha frente, levantando as sombrancelhas enquanto sorri.
Suspiro, já ciente de quê se eu disser não, não vou ter paz.
— Leva essa, mas ó.. eu quero ela do mesmo jeitinho que tu tá levando, entendeu? Quero inteirinha de volta, ouviu? Nem nenhum arranhão.
Ela sorri, me dá um beijo rápido na bochecha e já sai correndo.
— Sabe do Iago? — grito do banheiro.
— Não! — ela responde de longe, batendo a porta do quarto.
O Iago… dos dois é o que mais me preocupa.
Sempre foi caladão, desde pequeno. E depois que o pai foi preso, parece que se fechou ainda mais, como se tivesse criado um muro entre todos e ele.
Eu sinto… que no fundo ele se culpa pelo o que aconteceu comigo e com o Terror.
Ele carrega esse peso como se tudo tivesse sido por causa dele.
E não foi.
Eu e o Bernardo sempre soubemos que uma hora ou outra isso podia acontecer. E se aconteceu… é porque ninguém foge do que Deus já escreveu.
Aquele promotor já tava de olho no Terror fazia tempo. Até chegamos a falar disso, eu e ele.
O promotor tava cego de ódio do Bernardo, queria prender ele de qualquer jeito.
O morro tava tendo invasão direto e a cara do Bernardo estampado nos jornais. Esse foi até um dos motivos da gente sair daqui e ir pra Goiás. A polícia tava fazendo uma mega operação pra prender ele.
Talvez era melhor termos ficado no morro ou ido para um morro aliado com as crianças. Mas na hora não pensamos direito e pecamos. Mas essa falha foi nossa e não do Iago que era uma criança.
Mas vai explicar isso pra aquele garoto cabeça dura. Não adianta falar, pois ele não ouve e muda de assunto. Eu fico com o coração apertado, vendo o sofrimento dele e sem poder fazer nada pelo meu filho.
Pego o celular e ligo pra ele. Mas nada.
Nessa parte ele é igualzinho ao pai, não gosta de telefone de jeito nenhum.
Então mando uma mensagem.
— Vem almoçar comigo hoje?
Ele visualiza e responde daquele jeito seco dele:
— Vou.
— Tá, beijo. Te amo.
— Também.
Volto com o Cecília pra cama e assim que desço as escadas. Logo de cara vejo a bagunça do Arturo. Pulando no meu sofá.
— Quantas vezes eu já falei pro Iago que não quero esse macaco pulando no meu sofá? — cruzo os braços, fuzilando a cena.
A Leda aparece rindo e com as mãos na cintura.
— Tadinho do bichinho, dona Manuela.
— Tadinho mesmo, era pro bichinho tá solto pulando de galho em galho e não dentro da minha sala destruindo o meu sofá.
Ela cai na gargalhada e eu acabo rindo junto. A Leda tá comigo desde que a Alicia nasceu, praticamente criou meus filhos comigo. Foi presença nos bons e nos piores momentos.
Entro na cozinha, puxo a garrafa de café e encho minha xícara. O cheiro invade tudo, e eu solto um suspiro.
— Sabe, senhora Manuela... ontem eu rezei tanto pra minha santinha pra que o senhor Terror saísse da cadeia — ela fala de um jeitinho simples e com as mãos juntas.
Passo o dedo no pingente em formato de lua, lembrando do dia em que ele me presenteou com essa pulseirinha.
— Também tinha essa esperança, Leda... às vezes eu tenho a sensação de que eu vou acordar e vou ver ele sentado aqui nessa mesa, rindo de alguma besteira.
Ela sorri e balança a cabeça.
— As vezes eu não acredito que eu consegui criar esses meninos sem ele.
Ela balança a cabeça, emocionada.
— A senhora foi muito forte. Outro dia eu tava comentando isso com a Dorinha, minha vizinha. Todo mundo aqui na comunidade fala de como a senhora foi uma mulher dez a dez com ele.
— Para com esse “senhora”, pelo amor de Deus!. — falo rindo, encostando as costas na cadeira. — Tô me sentindo uma idosa.
— Mania, desculpa. — ela sorri, e logo completa: — Até porque a senhora continua bonita, parece até uma menininha.
Sorrio negando.
— Não é pra tanto assim, se tirasse o botox, silicone,lipo e umas coisinhas a mais. Eu estaria acabada. — brinco, e nós duas rimos juntas.
— Mas voltando ao assunto que você disse. As vezes a única alternativa que a gente tem é essa. Sermos fortes.
Sorrimos uma pra outra e o Arturo aparece entrando na cozinha, o Iago trata esse macaco igualzinho se fosse filho dele. As vezes eu acho que ele ama mais ele do que eu.
Pego uma banana da fruteira e entrego a ele. Que arranca da minha mão e já começa a comer todo animado.
— Cadê teu pai, Arturo? — pergunto rindo, como se ele fosse me responder.
Ele só mastiga, me olhando com os olhinhos brilhando, e eu balanço a cabeça, tomando outro gole de café.
Tomara que o dia de hoje seja melhor que ontem.