Manuela
Saio da cozinha enxugando a mão no pano de prato e já vejo a Alícia deitada no sofá, perna esticada, celular na mão e aquele fone gigante tapando metade da cara dela.
— Alícia! — chamo alto.
Ela nem se mexe.
— Alícia! — repito, mais forte, mas a bonita continua igualzinha.
Perco a paciência, vou até ela e dou um cutucão no ombro.
— Tá me ouvindo não, menina?
Ela puxa um lado do fone devagar, revirando os olhos como se eu tivesse atrapalhando o descanso dela.
— Que foi, mãe? — responde, sendo grosseira.
— Arrumou teu guarda-roupa? — pergunto encarando.
— Não. A Madalena que vai arrumar! — dá de ombros, já enfiando o fone de volta e voltando pro celular.
Sinto o sangue ferver na mesma hora. Arranco o fone da cabeça dela e taco na parede.
— MÃE! — ela grita, se levantando num pulo e aí o show começa.
— Olha o que você fez! Meu fone novinho! Eu comprei ontem! — grita, agachada, catando os pedaços no chão.
— Vai arrumar tuas coisas, anda. — aponto pra escada.
Ela levantou com o fone todo quebrado na mão e voltou a se sentar no sofá, me olhando com aquela cara de deboche, como quem diz “coitada de você”, ainda com um sorrisinho de canto no rosto. Segurei o braço dela sem pensar duas vezes, arranquei ela do sofá e a empurrei em direção à escada. Só que a ordinária correu pros braços do pai, que apareceu na porta bem na hora.
Ele veio do quintal sem camisa, bermuda caída no quadril e óculos escuros. Já chegou com a cara fechada.
— Que que tá rolando aqui dentro?
E pronto. Era tudo o que a Alícia precisava pra mudar o roteiro dela e virar vítima na hora.
— Pai, olha o que ela fez comigo! — levanta o braço, esfregando como se tivesse apanhado. — Eu tava quieta, só ouvindo música… nem tava fazendo nada. E ela veio do nada, puxou meu braço, me machucou. — falou com voz de choro e ele me olhou feio. — Olha aqui, pai, olha o roxo que vai ficar.
Bernardo segura o braço dela, examina sério e depois levanta os olhos pra mim novamente.
Sério, me deu tanto ódio que eu mirei o teto, tentando engolir seco.
— Essa menina não faz p***a nenhuma, Bernardo. Nem a calcinha dela ela lava. Só pedi pra arrumar o quarto que tá uma zona, e ela vem falar que a Mada vai arrumar. Eu pedi foi pra tu, garota. — aponto pra ela. — A Madalena já tá cheia de serviço. Não é atoa igual tu, não.
— Eu estudo! Não sou atoa, não. No único dia que eu tenho livre a senhora quer me fazer de escrava! — berra, grudada no pai.
— Ah, me poupe! — passo a mão no rosto, morta de vontade de estourar a cara dela. — Eu te fazendo de escrava, Alícia?
— Pra que quebrar o fone, Manu? Olha o braço dela. — ele fala.
— Pra ela aprender, oras. Porque se for por você, ela nunca vai aprender nada. — solto p**a, já pegando a bolsa.
A Alícia continua colada no peito dele, chorando de mentira, mas me olhando com ar de riso.
— Fica com a tua filha, Bernardo. Só cuidado pra não acabar estragando ela, mais do que ela já tá estragada.
Atravesso a sala sem olhar na cara deles e ouço ele me chamando de longe. Mas nem dou confiança.
Parece que eu passei tanto tempo longe dele que eu esqueci da capacidade dele de me irritar.
Entro no carro bufando e bato a porta com força. Apoio a testa no volante e aperto a mão, tentando segurar a vontade de voltar lá e dar nos dois.
Cara, ele me olhou como se eu fosse a errada da história e não a Alícia.
Eu até entendo que, depois de vinte anos trancado, longe dos filhos, ele queira recuperar o tempo perdido. Mas daí me olhar daquele jeito? Ele não conhece a filha que tem. Não sabe nem metade das merdas que ela já aprontou, não viu eu aqui sozinha nessa p***a de casa tentando botar juízo na cabeça dela. Ele não faz ideia do porquê eu quebrei aquele fone, não sabe o tanto que essa garota já humilhou a Madalena aqui dentro de casa.
Não sabe de p***a nenhuma.
A Alícia mora aqui, come aqui, dorme aqui. O mínimo que ela pode fazer é arrumar as próprias coisas, lavar a calcinha, lavar o prato que come. Isso não é escravidão, c*****o, isso é ter higiene, é ter semancol. A Mada ajuda a gente, mas ela não é obrigada a ficar aguentando os caprichos de uma menina velha que se acha adolescente só porque cresceu sendo mimada. Desde pequena, tudo que eu negava, ele ia lá e autorizava, mesmo que fosse pelo telefone.
No final, eu ficava como a r**m e ele o papai bonzinho. O que ele acabou de fazer na frente dela não é justo comigo. Porque, quando ele faz isso, deixa claro pra menina que com ele é só fazer cena que consegue o que quer. E aí ela vai querer me obedecer depois? Claro que não.
Viro a chave, ligo o carro, aperto firme o volante e afundo o pé no acelerador. Saio dali com o peito queimando de raiva.
No caminho pro mercado, indo buscar a carne do churrasco de última hora que o Bernardo inventou, eu ligo pra Agatha e pro RD, chamando eles pra irem lá pra casa. A Agatha anda toda tristinha esses dias, cheia de saudade da Mel, que tá lá na Califórnia estudando.
Estacionei quase em frente ao mercado, desci e entrei. Cumprimentei uns conhecidos no caminho e peguei o carrinho. Fui direto nas bebidas, botei refrigerante, cerveja, uns lanches também. Depois passei na parte da farofa, peguei mais uns ingredientes e segui pro açougue. O mercado tava lotado, sabadão antes do almoço, parecia um formigueiro.
Encostei no balcão, fiquei olhando a carne pelo vidro, esperando minha vez, quando duas meninas pararam atrás de mim. Começaram a falar alto, rindo, como se quisessem provocar.
— E aí, Naty… já correu lá na Simone fazer a cera? Tem que tá lisinha, né… vai que mandam te chamar. — falou rindo.
— Com certeza, né! Agora que o meu preso tá solto, tenho que manter do jeitinho que ele gosta. — a outra respondeu, e as duas riram.
Mesmo sem querer deixar aquilo entrar na minha mente, acabou entrando. Que eu saiba, o único preso que foi solto recentemente é o Terror.
Meu celular vibrou na bolsinha lateral e puxei pra olhar. Era o Bernardo ligando, rejeitei na hora.
Quando chegou a minha vez eu pedi uns três quilos de picanha de primeira, dois de alcatra, dois de maminha e três de costela bonita. Além de linguiça e coração também.
Ele assentiu e se virou pra pegar. Foi nesse momento que eu aproveitei e olhei de canto pras duas que estavam atrás de mim. Elas me encararam, mas logo viraram a cara.
Peguei a sacola de carne, coloquei no carrinho e fui empurrando pra sair. Mas consegui ouvir uma delas brincando com o açougueiro:
— Atende essa garota direitinho aí, hein. Que agora ela tá tocando o terror no morro.
Segui em frente, mas aquela risadinha ficou remoendo dentro de mim. Podia tentar pensar em outra coisa, mas era como se a voz delas tivesse grudado no meu ouvido, repetindo o nome dele sem parar.
Quando chegou a hora de pagar, percebi que foram pro outro caixa. Vi quando abriram a bolsa e tiraram várias notas de cinquenta. Alguém devia tá bancando ela.
Uma delas eu conheço bem: a Nathalia.
Ela já teve um rolo com o Bernardo, antes da gente começar a ficar e há muito tempo atrás. Na época ela não tinha filho, mas agora tem um menino de cinco anos.
Passei minhas compras rápido e saí do mercado, mas a conversa delas ainda rodava na minha mente.
Que preso dela que saiu da cadeia?
Porque, que eu saiba, o pai do filho dela nunca nem foi preso, e até há pouco tempo atrás ela tava com ele.
Entrei no carro e o celular tocou de novo. Era ele. Não atendi. Não é possível que ele tenha tido a cara de p*u de fazer isso comigo depois de tudo que a gente passou juntos. Parecia que eu tinha engolido ácido, de tanto que o meu estômago queimava. A mão suava tanto que quase escorregava do volante. O corpo inteiro denunciando a raiva que eu tentava segurar.
Dirigi até a casa da Agatha com tudo entalado na garganta e controlando o choro a cada esquina. Eu precisava desabafar com alguém antes que os meus pensamentos me enlouquecessem.
Se eu voltasse pra casa naquele estado, eu sabia que ia fazer besteira. Estacionei em frente e, assim que desci do carro, vi o RD saindo, indo em direção à moto dele parada em frente à casa.
— Tá saindo? — perguntei, fechando a porta do carro.
— Tô indo lá na tua casa. — ele respondeu em um tom tranquilo.
— A Agatha tá indo também? — perguntei.
Ele negou com a cabeça e apontou lá pra dentro.
— Ela vai mais tarde. Tá aí dentro, conversando com a Mel no telefone.
Assenti. Ele já tava pronto pra subir na moto quando chamei de novo:
— RD, faz um favor… leva essas sacolas pra mim. É a carne e umas bebidas. Vou bater um papo com a Agatha.
Ele fez que sim, e eu abri o carro, puxando as bolsas pesadas do banco. Ele pegou tudo e saiu acelerando morro acima.