POV: Cauã Delacruz
A mão dela ainda ardia na minha.
Ou talvez fosse o contrário:
talvez fosse minha pele queimando por ter segurado ela daquele jeito.
— Me solta Cauã eu não quero conversar com você! - ela se debatia nos meus braços.
O camarote inteiro estava parado — eu sentia os olhares pesando no meu pescoço como pedra.
O som do paredão martelava, mas parecia distante, abafado, como se o mundo tivesse entrado debaixo d’água.
E no centro de tudo isso…
a Hannah.
Não a Hannah brava.
Não a Hannah mãe.
Não a Hannah que me dava bronca, que cuidava de mim, que me tirava do eixo.
Essa versão aqui…
essa mulher de olhos faiscando, respiração curta, e mão ainda semi-fechada do puxão que tinha dado na outra — essa Hannah era um trovão de roupa curta.
E eu tava bêbado o suficiente pra não saber lidar…
e sóbrio o suficiente pra saber que ia estragar tudo se abrisse a boca errado.
Jonah rugiu atrás de mim.
A tropa prendia a respiração.
Kauány tava com os olhos do tamanho de dois pires.
E a mulher que a Hannah puxou pelos cabelos tremia encostada na parede.
A única coisa que eu conseguia realmente sentir era o pulso dela — da Hannah — pulsando rápido na minha mão.
Eu soltei devagar.
Devagar demais, talvez.
Mas soltei.
— Hannah… — tentei.
Ela abriu os olhos como navalha.
— Não fala meu nome assim — ela disparou, baixa, firme, cortante.
Porra.
Meu peito caiu pra dentro.
O camarote não era lugar pra aquela conversa.
Tinha celular filmando.
Tinha gente esperando escândalo.
Tinha a p***a toda do morro assistindo.
E eu…
eu tava longe de ser santo, mas não ia expor ela ali.
Nunca.
Inclinei o corpo, sem tocar nela — não ousaria — e murmurei perto o suficiente pra só ela ouvir:
— Vem. Só um minuto. Só eu e você… por favor…
Ela hesitou.
E na hesitação dela, senti medo.
O medo mais primitivo que eu já senti.
O medo de perder.
Não foi bonito.
Não foi forte.
Foi desesperado.
Peguei a mão dela — dessa vez com cuidado, com respeito, como se a mão dela fosse vidro — e a conduzi até a lateral do camarote, atrás de caixas de som e do maquinário que ninguém podia ver.
Era um corredor estreito, m*l iluminado, com cheiro de poeira misturado ao suor da pista.
O som do baile ali vibrava tanto que parecia bater no meu peito.
Ela parou bem na minha frente.
Braços cruzados.
Queixo erguido.
Respiração difícil.
Linda.
E furiosa.
E magoada.
A mistura que mais acabava comigo.
— Pronto — ela disse, fria. — Fala. Tô ouvindo.
Eu passei a mão no rosto.
A bebida ainda correndo quente nas veias.
A cabeça pesada.
Eu não tava no meu melhor.
Mas tava sincero — talvez sincero demais.
— Aquela mulher… — respirei fundo. — Aquilo não significou nada.
Ela riu.
Um riso curto, seco, sem alegria nenhuma.
— Jura? Porque pra mim parecia muito significado lá debaixo.
— Eu to bêbado, Hannah.
— E eu sou otária?
Meu coração escorregou dentro do peito.
— Não fala assim — murmurei, firme. — Você não é isso. Nunca foi.
Ela deu um passo pra trás.
Quase imperceptível.
Mas doeu como se ela tivesse me dado um empurrão.
— Cauã, você quer conversar ou quer continuar se justificando?
Ah, essa mulher.
Essa mulher me desmontava com uma frase.
— Eu… — toquei a cabeça na parede de metal atrás de mim, respirando fundo. — Eu não tô justificando. Eu tô tentando te dizer que eu vacilei.
Ela me encarou.
O olhar dela não era raiva pura.
Era decepção.
O tipo que corta.
Aquele olhar me destruiu mais do que qualquer tapa.
— Você me machucou hoje — ela disse, finalmente. — Não fisicamente. Aqui.
Ela bateu a mão no peito.
Porra.
Porra.
Eu fechei os olhos.
Quando abri, a voz saiu rouca:
— Eu segurei você daquele jeito porque eu… eu entrei em pânico.
— Pânico de quê?
— De você ir embora. — confessei. — De você olhar pra mim como olhou e decidir que já chega. Que não vale mais a pena.
Hannah piscou lento.
Eu continuei, porque agora que tinha começado, não tinha mais volta:
— Eu fiquei com medo. É isso.
— Medo? — ela repetiu. — De perder o quê exatamente, Cauã?
Eu cheguei mais perto.
Um passo só.
Um passo que ela não recuou.
— De perder você.
Ela apertou os lábios.
— Eu não sou mais sua mulher! Ela sussurra.
E foi ali — exatamente ali — que algo dentro de mim realmente rachou.
Eu respirei fundo e disse:
— Mas meu coração não sabe disso.
Hannah desviou o olhar.
E quando ela desviava, era porque sentia.
Eu sabia.
Eu conhecia.
— Você não pode brincar comigo desse jeito — ela disse, a voz pequena, como se tivesse ficando sem ar. — Não hoje.
— Não tô brincando — sussurrei. — Eu tava m*l. Tava tentando esquecer a falta que você me faz. Fiz besteira. Mas quando eu vi você ali… puxando a mulher… olhando pra mim daquele jeito… eu só… — minha voz falhou. — Eu só senti medo. Real. Vivo.
— Então você quer que eu sinta pena? — ela rebateu.
— Não. — respondi, rápido. — Quero que você sinta a verdade.
Ela me encarou.
Eu encarei de volta.
A tensão entre nós era tão forte que eu podia ouvir o próprio sangue circulando.
— Se você tivesse ido embora… — murmurei. — Eu não sei o que eu teria feito.
— Cauã…
— Eu não tô falando isso pra te prender. Eu tô falando porque é verdade. Porque quando você vira as costas pra mim… — toquei o peito, sobre a camiseta. — eu sinto como se o chão abrisse.
Ela respirou fundo, tentando não tremer.
Eu percebi.
Eu sempre percebia.
Estendi a mão, devagar, devagarinho, até tocar o queixo dela com a ponta dos dedos.
Ela não recuou.
— Me olha — pedi.
Ela olhou.
E eu vi tudo.
Raiva.
Dor.
Saudade.
E algo que ela nunca admitiria — mas eu reconhecia:
medo de sentir também.
— Eu não quero que você vá embora — falei, baixo, com a sinceridade atravessada na garganta. — Não hoje. Não nunca.
O silêncio pesou.
O som do baile vibrou atrás de nós como trovão.
O ar cheirava a tensão, suor, perfume doce vindo dela.
E então…
no exato segundo em que eu achava que ela ia falar algo —
um estampido ecoou lá fora.
Seco.
Violento.
Depois outro.
E outro.
E outro.
Gritos.
Correria.
O metal do camarote tremeu.
Hannah arregalou os olhos.
Eu me virei na hora.
— TIRO? — alguém berrou.
— NÃO É FOGOS! — outro respondeu.
O baile explodiu em caos.
Gente correndo.
Gente caindo.
Gente se empurrando.
A tropa sacando ferro.
Jonah gritando ordens.
O DJ desligando a música e berrando pra todo mundo se abaixar.
Metralhadora, p***a.
Metralhadora pesada.
As luzes piscavam.
A fumaça começava a subir.
Eu agarrei Hannah pela cintura — dessa vez com urgência, não violência — e a puxei pra trás de uma coluna de concreto.
— FICA ABAIXADA! — gritei.
Ela respirava acelerado, mas não entrou em pânico.
Essa mulher era feita de aço.
Kauány gritava o nome da Hannah do outro lado.
A tropa tentava formar barreira.
O barulho de passos acelerados ecoava pelo corredor.
E antes que eu conseguisse pensar no próximo movimento…
alguém lá embaixo gritou o que gelou meu sangue:
— É O CAVEIRÃO !
— O CAVEIRÃO SUBIU!
Puta.
Que.
Pariu.
O ar saiu do meu peito.
A Caravela não aparecia por nada.
Quando aparecia…
era pra buscar sangue.
Olhei pra Hannah.
Ela percebeu meu olhar.
E entendeu.
— Cauã… — ela murmurou, tensa. — O que tá acontecendo?
O chão vibrava com os tiros.
A respiração dela batia no meu pescoço.
E eu sussurrei a verdade crua:
— Eles não vieram pro baile.
Eles vieram por mim.
E então…
um laser vermelho mirou bem no peito dela.
E antes que ela percebesse —
eu a joguei no chão.