Capítulo 8 — O Peso da Mudança

1272 Words
(POV Cauã Delacruz) Acordei com o barulho das crianças rindo lá fora. O sol já batia no pedaço de parede sem reboco, iluminando o quarto pequeno. Por um segundo, nem lembrei onde tava. A cabeça pesada, o braço latejando — enfaixado. O curativo era dela. Respirei fundo. O cheiro dela ainda tava ali — sabonete misturado com café e cheiro de vida. Olhei pro teto e pensei: c*****o, dormi pesado. Nem lembro que horas cheguei da rua, nem quando ela fez o curativo. Só lembro do olhar dela na noite passada: cansado, com medo e cheio daquela coragem que me deixa puto e apaixonado ao mesmo tempo. O barulho da molecada correndo pela laje me fez sorrir. Yume gritava alguma coisa pra Ava, e Yohan discutia com o Aaron. Aquela bagunça era casa. Era o que me prendia mais que o morro. Levantei devagar, a dor no braço me lembrando do tiro de raspão da confusão da noite anterior. Entrei na cozinha — chão frio, cheiro de pão e café. A Hannah tava ali, de costas, mexendo a panela. O cabelo preso num coque bagunçado, a pele cansada, o vestido simples colado no corpo do jeito certo. Fiquei só olhando. Ela não percebeu que eu tava ali. Ou fingiu que não. A casa já tava cheia — Gracinha lá embaixo, minha mãe Mayara falando com Celina, minha irmã, e Jonah passando pelo corredor com o rádio de um dos aviões chiando. Mas ali, naquele pedacinho de cozinha, era só nós dois. Cheguei devagar. Encostei o corpo no dela e abracei por trás. O toque foi instinto. Ela congelou na hora. Mas não me empurrou. Por uns segundos… deixou. Aproximei a boca do pescoço dela, senti o arrepio subindo na pele e sussurrei: — Bom dia, gatinha. A voz saiu baixa, rouca. O tipo de voz que ela fingia odiar. O corpo dela reagiu — senti. O calor. O tremor. Beijei o pescoço devagar, e o cheiro dela me acertou o peito. Ela respirou fundo, se soltou devagar, tentando disfarçar o descontrole. Virou pra mim, o olhar firme mesmo com os olhos marejando. — Qual foi? — perguntei. — Vai ser assim de novo? Vai me afastar de novo? Ela respirou fundo. — Ontem à noite… o tiro que você levou… e se não tivesse pegado de raspão, Cauã? Fiquei olhando pra ela. Os olhos dela me atravessaram. Tava cansada — mas ainda era a mesma mina que eu amava e odiava por me fazer sentir humano. Levantei a mão boa, toquei o rosto dela. Ela desviou. O coração bateu forte, pesado. — Só queria te dar um bom dia, pô. — falei, tentando leve. — A casa cheia, a correria… Deixa eu aproveitar esse segundo aqui contigo. Ela respirou fundo. Tentou esconder o tremor na voz. — Segundo, Cauã? Tu quer continuar fingindo que não arrisca a vida todo dia? Até onde isso vai dar? Eu ri, meio sem graça, meio irritado. — E tu quer que eu faça o quê, Hannah? Que eu finja que essa vida é escolha? Tu acha que é fácil sair? Ela ficou em silêncio. E foi pior que grito. Porque o silêncio dela sempre fala mais alto. — Sabe o que eu acho, Cauã? — ela disse, por fim. — Tu tem medo. Medo de viver diferente. Medo de ser só homem. Sem arma. Sem comando. Sem respeito de bandido. A p***a da frase veio como tapa. Respirei fundo, cheguei perto outra vez. Ela deu um passo pra trás, mas bati o olhar no dela. — Tu fala isso porque não sabe o que é segurar o morro, Hannah. Tu não sabe o peso que é acordar e pensar se o inglês vai aparecer no baile com os caras armados, se meus muleque vão voltar do corre inteiro. Não fala do que tu não entende. Ela respira fundo, a voz mais baixa, mas firme: — Eu entendo o suficiente pra saber que tu tá se perdendo. E levando tudo com você. Fiquei em silêncio. O peito travando, o maxilar rangendo. Porra, ela sempre sabe onde bater. Passei a mão no rosto, respirei fundo e soltei: — Chega desse papo, beleza? Só quero um pouco de paz, pô. Virei as costas antes que ela dissesse mais alguma coisa. O chão frio da cozinha ecoou meus passos. Lá fora, as crianças ainda riam, sem entender que dentro daquela casa o mundo tinha parado de novo. O sol batia forte na laje, o beco já acordado. Os moleque correndo, rádio chiando, o morro vivo. Encontrei o Jonah encostado na parede, cigarro no canto da boca. O Caveira tava logo ali, trocando ideia com dois dos avião. — E aí, patrão? — Caveira veio direto. — O inglês não se mexeu hoje, não. Tá sumido, mas os cana tavam rondando de manhã. — Rondando onde? — perguntei. — Perto da boca da escadinha. Passaram devagar, tiraram foto, depois meteram o pé. Franzi a testa. — Fica ligeiro. Esses filha da p**a não sobem à toa. Se o inglês tá quieto, é porque tá tramando. Jonah soltou a fumaça e me olhou de canto. — Baile vai rolar mesmo assim? — Vai. — respondi firme. — Ninguém cancela essa p***a por boato. Só quero o beco em alerta. Se ver viatura subindo, avisa. Se ver movimento estranho, avisa também. Caveira assentiu, pegando o rádio. — Pode deixar, patrão. Os avião já tão espalhados nos ponto. Qualquer coisa, a gente avisa antes de estourar. — Isso aí. — falei. — Ninguém peida no morro sem eu saber. Dei dois tapas de leve no ombro dele e subi a viela. O sol já tava de rachar, o corpo doendo, mas o pensamento… nela. A p***a do olhar da Hannah ainda me queimando a mente. O dia passou voando. O corre andou sem tiro, sem sangue. Tudo calmo demais pro meu gosto. E quando o morro fica quieto demais, é porque vem merda por trás. Na hora do almoço, a casa tava cheia. Gracinha arrumando a mesa, minha mãe mexendo na panela, Celina cuidando dos moleque. Jonah falando besteira, Caveira encostado no batente com o rádio chiando baixinho. A Hannah, parada. Séria demais. E eu já senti que vinha bomba. Ela limpou a mão no pano e falou sem gaguejar: — Eu tenho um comunicado a fazer. O barulho sumiu. O garfo de Jonah caiu no prato. Até o rádio parou de chiar. — A empresa me ofereceu um apartamento — ela disse. — É simples, mas perto do hospital. As crianças ganharam bolsa numa boa escola… e eu aceitei. O sangue subiu na hora. Senti o calor bater no pescoço. — Tá de s*******m, né? — falei. — Vai meter o pé do morro agora? Vai me deixar assim? Ela me olhou firme. — É pelo bem deles, Cauã. Pela minha mãe, pelas crianças, não estou deixando nada , e você Pode ir também! Ri, sem achar graça. — É, né. Bonito isso. Cês sobem comigo no corre, mas na hora de subir na vida é sozinha, né? Mayara respirou fundo. — Cauã… — Não, mãe, não fala nada não. — cortei. — Ela quer sair, que saia. Mas hoje mesmo eu compro um apê lá. No mesmo prédio. Quero ver se aguenta me ver todo dia. Saí antes que alguém tentasse me segurar. Empurrei a cadeira, o barulho ecoou na casa inteira. O peito queimando, o sangue fervendo. Lá fora, o beco seguia normal — mas dentro de mim, o morro tava em guerra. “Ela pode tentar sair da favela… mas o morro corre no sangue dela. E eu também.”
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD