Serpente Narrando
Mano, vou te falar, o bagulho tava sinistro. Aqui nunca tem paz, tá ligado? Quando não é os miliciano enchendo o saco, é a pörra dos caveira tentando invadir. Sempre tem um arrombado achando que vai tomar nossa quebrada na marra. E adivinha quem é que segura a bronca? É nóis, pörra. Eu e meu coroa sempre de prontidão.
Acordei no meio da tarde com o rádio estourando:
— Serpente, Serpente, fica na atividade, tem movimento descendo pela principal!
Levantei com o coração disparado. Já corri no armário, peguei o fuzil, colete, botei a bandana e saí sem nem tomar água. Na rua já tinha nëgo correndo, criança sumindo pros barracos, mulher puxando moleque pelo braço. A quebrada sabia o que vinha aí: caveira na covardia, com sangue no olho.
Encontrei com meu coroa em frente ao beco, ele já tava com a ponto 30 no ombro, cigarro aceso no canto da boca, sereno como sempre.
— Hoje eles vêm com tudo, moleque. Tu segura tua linha, que de cima eu faço a limpa.
— Relaxa, coroa, não vou deixar ninguém subir não.
Ele só balançou a cabeça e subiu pra laje. Eu fiquei na linha de frente com mais dois irmão, o suor já descendo mesmo sem sol forte. A rua parecia em câmera lenta, cada barulho de moto, cada passo ecoava. Até que a gente ouviu o primeiro grito:
— Avança, pörra! Mata esses filha da püta.
Era eles. Farda preta, rosto coberto, metendo rajada sem dó. O chão começou a tremer com as primeiras granadas. O ar ficou grosso, cheio de pólvora, cheiro de ferrugem e fumaça. Eu só respirei fundo e meti o dedo:
— Vai tomar no cü, caveira. Aqui não entra não.
O barulho do fuzil engolia tudo. Cada disparo parecia um trovão batendo no meu ouvido. Vi um dos caveira cair de lado, rolando no asfalto, mas eles eram muitos, parecia enxame.
De repente, de cima da laje, o meu pai começou a cantar o instrumento dele. Só dava os cara gritando:
— Ai, Carälho! Tô baleado.
— De onde tá vindo essa pörra, mano?!
E eu rindo no meio da rajada, mesmo com o coração quase explodindo no peito. Porque os cara tavam caindo sem nem saber de onde vinha. Meu coroa é fantasma, parceiro, quando ele tá no alto ninguém passa.
— Boa, pai! Derruba esses filho da püta tudo! — gritei sem nem olhar pra trás.
Os mano do meu lado tavam firmão também. O Neguinho deitou atrás de uma mureta, rajando sem parar, enquanto o Pezão rodava a esquina soltando granada caseira, fazendo os caveira recuar.
Mas os cara não desistiam, vinham em onda, descendo a rua como se fossem dono. A cada corpo deles que caía, mais raiva eles traziam. Um deles gritou:
— Não recua, pörra! É hoje que a gente toma essa favela.
Aí eu fiquei püto. Levantei mesmo sob fogo cruzado, botei o dedo e soltei uma rajada longa, gritando:
— Aqui é Serpente, Carälho! Quer subir, sobe, mas vai sair de saco preto.
Foi nessa hora que vi um caveira tentar pegar o beco lateral. Se ele passasse, ia föder geral. Corri, o coração quase saindo pela boca, escorreguei no chão molhado de sangue e suor, mas consegui pegar ele no canto. Apontei na cara e soltei:
— Tá pensando que é onde, filho da püta?
Antes dele reagir, já tava no chão.
O tiroteio parecia não ter fim. Cada segundo era uma eternidade. Bala zunindo perto da orelha, pedaço de parede voando, cachorro latindo desesperado, moleque chorando de dentro do barraco. Mas a gente não arreda o pé.
Do alto, o meu pai continuava implacável. Só ouvia os estalos da ponto 30 e os gritos de desespero dos caveira.
— Recuuuua! Recuuuua, Carälho! — um deles berrou, a voz embargada de pânico.
Eu ainda corri mais um pouco, meti mais uns tiros pra garantir. Quando vi os cara virando as costas, a adrenalina bateu mais forte que nunca. Tava com a mão tremendo, mas o sorriso rasgava meu rosto.
Olhei pra cima e gritei:
— Aê pai! Nós seguramos essa pörra.
Ele só levantou o braço lá de cima, como quem dizia “fizemos o dever”.
Mas eu sei, mano, isso não acaba nunca. Hoje foi caveira, amanhã pode ser miliciano. Sempre tem um arrombado querendo a tua quebrada na marra. E eu? Eu vou tá aqui, na linha de frente, pronto pra mostrar que o Morro tem dono.
Depois que o barulho parou, a fumaça ainda pairava no ar e o cheiro de pólvora queimava o nariz. Meu coroa desceu da laje sem pressa, mas com aquele olhar sério de sempre. Foi direto pra casa tirar a minha mãe e a Íris do cofre. Elas tavam lá trancadas, quietinhas, morrendo de medo.
— Tá limpo, podem sair — ele disse, e só de ouvir a voz dele a tensão no rosto delas se desfez.
Eu não fiquei pra ver abraço nem choro. Eu e o Tuto já fomos pro corre: levantamento da área. Tuto é sangue bom, mas vou ser sincero: o moleque é um dos meus melhores amigos. Não é à toa, é filho do padrinho Betinho e da madrinha Nina, cresceu nesse meio, respirando guerra desde cedo.
A gente desceu cada viela, olhou cada canto. Só achamos um corpo de caveira estirado no beco, cheio de furo. Ele ainda tava quente, sangue escorrendo pelo chão. so olhei pro Tuto e mandei:
— Ordem é clara: joga o corpo pra fora do morro. Aqui dentro não fica.
Concordou com a cabeça. Não tinha espaço pra piedade. Esse bagulho é simples: se a gente deixa caveira morto aqui dentro, os cara sobem com fúria dobrada, e aí vira inferno. Jogar pra fora é recado, é linha traçada.
Enquanto arrastava o corpo pesado, fiquei pensando: eles podem matar morador, matar inocente, ninguém liga. Pra eles é só mais um corpo sem nome. Agora, se cai um deles, püta que pariu, é apocalipse na certa.
— Serpente — Tuto falou baixo, quase como se fosse conselho — aqui não tem meio termo. Ou eles, ou nóis.
E é isso mesmo. Mato sem peso na consciência. Prefiro que a mãe dele chore do que a minha. Essa é a regra que mantém nós vivo.
Jogamos o corpo na beira do asfalto, subi de volta e respirei fundo. Já sabia: essa noite não ia ter sono. Era só o começo da guerra.