Capítulo- II. Acorrentados
" Eu sinto que o amor é super sombrio e ninguém fala sobre isso, nos becos escuros da saudade, onde o silêncio tem feitiço.
Escondido nas sombras, em abraços que o tempo esqueceu, em promessas partidas que o vento levou e não devolveu..."
( O pensador)
Tiana
Ele me virou as costas e se afastou sob a chuva. Observei suas costas enquanto lágrimas escorriam silenciosamente por meu rosto. Levei a ponta dos meus dedos trêmulos aos lábios, e o sangue manchou minhas digitais, misturando-se com a água da chuva e sujando meu vestido. Gotas tingidas de um vermelho fraco escorriam do meu queixo, mas ao tocar o branco, tornavam-se intensas.
Comecei a caminhar sozinha, sentindo frio. Minha mão soltou o buquê de orquídeas, que ficou para trás, sendo atingido pela chuva que caía como uma cascata. Alef me deixou sob a chuva e seguiu em frente, assim como está fazendo agora. Estamos no aeroporto; ele avança à minha frente, seu sobretudo balançando levemente com o vento que passa pelo tecido. Eu o sigo com o coração dilacerado e a alma partida; a despedida não foi fácil e acredito que nunca será.
Meus pais, o coronel e minha amiga ficaram no saguão acenando até que não pudéssemos mais nos ver. Chorei sozinha, na solidão, sem um abraço para me confortar ou uma voz suave que dissesse que tudo ficaria bem.
Observo Alef conversando com alguém perto da porta do jato. Minha mente me transporta novamente para momentos que aconteceram horas atrás. Assim que pisei na varanda da casa, Emiliana, funcionária do coronel Gumercindo, veio ao meu encontro.
— Você está encharcada e... machucou a boca! Como aconteceu isso? — indagou, preocupada.
Olhei rapidamente para o responsável, que estava parado de costas em uma das extremidades da varanda.
— Não foi nada...
— Como não? Ainda está sangrando! Venha, criança, vamos trocar essa roupa e cuidar desse ferimento, ou pode inflamar.
— Onde estão todos?
— Nos fundos da casa, onde era a estufa de vidro da falecida esposa do senhor Gumercindo. A decoração da sua festa está linda, tudo com flores brancas, como sua mãe pediu. O coronel não economizou, mas a chuva caiu forte demais e trouxe alguns transtornos.
Emiliana falava enquanto entrávamos no quarto de Joaquinha. A doce senhora me ajudou a tirar o vestido pesado e depois me entregou uma toalha.
— Seu penteado foi destruído. Tome um banho e cuide dos fios; depois farei algo neles ainda úmidos.
Fui me arrastando e me joguei debaixo da água quente do chuveiro no banheiro da Joaquina. E lá chorei, vestida de arrependimento. Eu, uma menina pobre que achou ter encontrado o amor, descobri tardiamente que havia caído em um lago de dor. Essa constatação chegou tarde demais. A ferida em meu lábio ardia, tornando-se um lembrete de que eu não sabia com quem havia me casado.
Depois do banho, troquei de roupa e vesti um vestido estilo sereia branco, cheio de mini pérolas em seus bordados. Emiliana arrumou meus cabelos em um coque médio e, por último, colocou um pente todo trabalhado com pérolas.
— Você está linda. Vou aplicar um antisséptico para esterilizar a ferida; depois, quando fizer a maquiagem, passe um batom vermelho que ajudará a disfarçar.
Quando Emiliana saiu e me deixou sozinha, tive vontade de fugir, de desaparecer pelo mundo. Me senti fraca, impotente...
Não poderia. É meu dever como filha não trazer mais dor e humilhação para os meus pais.
Eles ficariam afamados como os pais da moça que se perdeu antes do casamento e no dia do casamento com o homem que lhe tocou, fugiu demonstrando a disvirtuosa que sempre foi.
É isso que nós mortais somos: julgadores.
Com o rosto mais apresentável deixei o quarto, caminhei na direção da porta da sala, foi quando Alef surgiu com suas roupas escuras e úmidas.
Fitei-o com mágoa. Se estar comigo parece ser um fardo para ele, por que se aproximou?
Dei um passo para trás.
Ele estreitou os olhos avaliando a minha reação e, então, soltou um suspiro. Abruptamente, virou-se e me arrastou na direção da estufa. Ele me colocou na curva do seu braço.
Então, eu estava muito perto dele, envolvida pelo calor morno do seu corpo. Podia sentir seu perfume.
De longe vi que as portas da estufa estavam abertas, deixando o cheiro de terra molhada entrar.
Alef parou sob um pé de flamboyant, uma árvore em plena floração, cujas folhas verdes haviam se transformado em um vibrante vermelho. As pétalas soltas de suas flores caíam sobre nós, e nossos pés pisavam em um tapete escarlate formado por elas, criando um círculo perfeito ao redor do grosso tronco. Era como se estivéssemos pisando em um espelho que refletia apenas a copa da árvore.
Por longos momentos, ele me encarou com seus olhos vazios, e me perguntei o que eu havia feito para ofendê-lo tanto. Seu maxilar estava rígido, mostrando o quanto ele se esforçava para se controlar.
Alef colocou dois dedos em meu braço e, em seguida, agarrou-me com a mão, seu olhar se tornando sombrio, como o de uma águia. Recebi um puxão e continuamos a andar em direção às portas. Eu levantava a barra do vestido para não sujá-lo, enquanto Alef apertava minha carne como se quisesse cravar seus dedos em mim.
_ Este é o seu último dia no Brasil. - ele declarou.
Olhei para seu rosto, meu coração batendo acelerado, enquanto entrava na estufa. Ele deu meia-volta e seguiu pelo caminho de onde viemos. Os olhares de todos pareciam avalanches que me cobriam, e meus pulmões estavam cansados devido à respiração superficial. Fiquei parada por alguns instantes, meu peito se inflamou ao dar um passo, e meu estômago se revirou quando os braços da minha mãe me envolveram, apertando-me com força.
Meu coração tropeçou várias vezes. Por um momento, desejei sair de mim mesma e esquecer quem sou, apenas respirar livremente, sem peso.
_ Com licença, posso abraçar a noiva?- ouvimos uma voz feminina que reconheci imediatamente, era Dona Dinah, tia de Alef.
Minha mãe e eu nos afastamos, e a gentil senhora trazia consigo um sorriso triste. Ela me abraçou.
_ Quero conversar com você, mas sozinha, longe de todos. Fique aqui um tempo e depois me encontre na sala. Converta sua dor, faça isso por sua família, dê a eles uma última boa lembrança, não os faça ter uma última imagem sua triste. - sussurrou, antes de se afastar e sair pela porta.
Tentei forçar um sorriso, embora meus olhos entregassem toda a minha angústia.
_ Vamos à festa!- disse, aproximando-me de Tomazio.
_ Se for para sofrer, prefiro que você fique aqui desonrada. -ele respondeu, segurando meu braço. Os olhos do meu irmão estavam cheios de raiva.
_ Serei feliz, pode ficar tranquilo. - menti, sabendo que algo que começa m*l tem poucas chances de terminar bem.
_ Dança com a sua irmã? - perguntei, controlando-me para não chorar e mantendo o sorriso falso - Relembrar velhos momentos. - completei.
Tomazio me puxou para seu abraço, e fomos o primeiro casal a rodopiar pelo espaço. Eu estava mergulhada em meus pensamentos, enquanto meu irmão me guiava com maestria na dança.
Alguns minutos depois, todos estavam rindo, conversando, comendo e brindando. Eu era uma noiva que celebrava sozinha um casamento, enquanto o noivo fez a grosseria de me abandonar na recepção, cercada por convidados, demonstrando que não significo nada para ele, igualmente pensa desse enlace.
Enquanto todos estavam imersos em sua alegria, eu saí rapidamente da estufa, fui em direção à porta da cozinha e entrei na casa. Caminhei até a sala e lá estava Dinah me esperando. Ao me ver, ela se levantou e veio em minha direção.
Ela fungou, como se tivesse chorado, e o brilho de seus olhos reluzia sob a luz do antigo lustre.
— Obrigada, Tiana, por ter vindo e... — seu sussurro foi interrompido pelo barulho da chuva que começava a cair intensamente, outra vez.
Meu coração disparou no peito, respirei fundo e olhei para seu rosto, sem saber o que esperar.
— Partiremos hoje. - falei com a voz fraca.
— Eu sei, por isso adiantei nossa conversa. — sua mão acariciou meu rosto — Você é tão jovem, como pode se iludir tanto? Alef é um homem extremamente difícil, muitas vezes sem coração e alma. E você, uma adolescente, cometeu o erro de se apaixonar por quem não deveria.
— P-por favor... — gaguejei, apertando com força o tecido do meu vestido entre as mãos.
— Você acha que eu não sei o que te espera? Eu sei e lamento não poder fazer nada. Alef pertence a outra esfera dos Wolfgang, uma que aparentemente é blindada. Klaus isolou parcialmente a família dele dos demais. — Dinah retirou um pedaço de papel da bolsa que carregava e me entregou — Esconda esse número. Se estiver em apuros, ligue para essa pessoa. Ela sabe tudo o que aconteceu aqui, falei de você e ela vai te ajudar. Não importa onde ou a hora, essa pessoa irá ao seu encontro.
De repente, Alef apareceu na porta, e eu estremeci, apertando o pedaço de papel em minha palma. O homem se aproximou com passos firmes e uma expressão severa.
Alef fez um leve movimento com a cabeça, controlando sua fisionomia com cuidado.
— Estou interrompendo a conversa de vocês? — indagou com a voz fria.
— Não, meu querido, apenas estava orientando Tiana sobre as temperaturas da Alemanha e que ela precisa aprender rapidamente a língua local. — Dinah mentiu.
— Agradeço, mas eu cuidarei da minha esposa.
Havia algo na voz dele que me deixou em alerta. Seus olhos autoritários desviaram de Dinah para o meu rosto.
— Se despeço da sua família, quero descansar antes da viagem. Você tem cinco minutos.
Ele ficou parado, olhando para o relógio, e logo se voltou para mim.
— Um minuto já foi.
Movi-me apressada, saindo da presença de ambos. Parei na cozinha, encostando-me na bancada, puxei o ar com força; estava tremendo muito...
Deixo a alameda das recordações quando avisto o primeiro degrau da escada do Jato.
— Boa noite, senhora. — o homem que esteve o tempo todo perto da escada, fala em um português com sotaque.
— Boa noite, — respondo, olhando para ele. Quando desvio o olhar, vejo Alef me observando perto da porta do avião.
Engulo em seco, subo a escada e, assim que entro na aeronave, sou surpreendida pelo homem que me pressiona contra a parede do jato, com uma das mãos em minha garganta.
Uma agonia cresce em mim quando ele faz pressão em meu pescoço. Tento segurar suas mãos na tentativa de me livrar dele. Meus olhos transbordam pavor.
— Uma mulher casada não olha no rosto de outro homem. Isso não vai acontecer uma segunda vez, Tiana. Eu não costumo aceitar desculpas.
O ar passa a faltar, entro em pânico. Quando penso que ele vai dar cabo da minha existência, sua mão de aço se afasta.
_ Sente-se, vamos decolar.
Ele vira-se de costas e eu me apoio na parede sentindo o coração bater nos meus pés.
Tento me recuperar, estou com as pernas fraquejando.
_ Não me faça ir te buscar, Tiana, você não vai gostar. - fala, olho para a direção de onde vem o som da sua voz. Caminho sem firmeza nas pernas, olho para uma poltrona distante dele, dou um passo naquela direção.
_ Seu lugar é aqui - ele aponta para uma poltrona à sua frente - Seu lugar é ao lado do seu marido, perto de mim.
_ Alef, por favor, eu...
_ Você está começando a me irritar, Tiana! - diz ele, com a mandíbula tão tensa que parece prestes a quebrar. Seus olhos transbordam ameaças veladas.
Aperto os lábios, e Alef se levanta, puxa-me pelos ombros e me coloca sentada na poltrona, prendendo os cintos antes de voltar ao seu assento.
Seus olhos permanecem fixos em mim, e isso me causa desconforto, uma sensação r**m.
A voz do piloto ecoa, falando em alemão, mas não entendo nada; olho ao redor, para o espaço.
_ Impressionada com o luxo? Obviamente você nunca teve nada parecido. Mas para ocupar o lugar onde você está, há um preço, e eu vou estipular quanto. Não foi assim que você fez ao se abrir para mim? Não colocou um preço. E eu paguei caro, primeiro com minha prisão por sua falsa acusação de e*tupro, e depois tendo que carregar um peso morto comigo para o meu país.
Suas palavras me ferem. Balanço a cabeça em negação.
_ Não fiz nenhuma denúncia, foi tudo um...
_ Poupe-me das suas desculpas; jamais eu me casaria com você por vontade própria. Nunca!
Sinto raiva, mágoa e arrependimento.
_ Por que você me impediu de dizer não? Por que sou um peso na sua vida?
_ Porque quem faz comigo paga nas minhas mãos. E você vai pagar.
_ Alef, por favor, eu não fiz nada.
_ Medo, querida? Não tenha, não agora; guarde-o para o futuro.
_ O que você pretende fazer comigo?
Ele se cala, e o avião começa a decolar, me levando para longe da minha terra, para longe dos meus.
Dentro de mim, meu coração vai morrendo, e o neu mundo, que estava com o céu fechado, agora se torna uma estrada solitária que não sei aonde vai dar, mas sei que estará repleta de espinhos.