capítulo 3 Rey

2687 Words
✍️ Narrado por Rey A laje ainda cheirava a pólvora e ferro quente quando o Pinguim caiu. O sangue escorreu pro ralo improvisado e eu deixei escorrer. Laje de patrão não é altar, é aviso. — “Desce e limpa.” — falei pro Cebola. — “Sem mangueira. Pano e sal. Quero a marca, mas não o cheiro.” Braga acendeu outro cigarro e ficou no meu flanco como sempre. Não é amigo. É o único que sobra quando todo mundo corre. Sub. Ombro. Sombra. — “Vai chover recado.” — ele disse. — “É por isso que a antena tá apontada pro inferno.” — respondi, batendo com o dedo no HT. O QG O QG do dono do morro é alto o bastante pra ver quem sobe com sede e quem sobe com medo. Tem duas rotas de fuga, um cofre enterrado na laje, três rádios sempre ligados, e um mapa do Cruzeiro feito à mão na parede: viela por viela, boca por boca, rota de entrega, rota de fuga, rota morta. Quem não tem mapa, morre no escuro. Eu não morro no escuro. — “Escuta os postos.” — falei. Braga girou a chavinha. Vozes chiadas pipocaram. > Posto 1 (Campo): “Movimento normal. Baile marcado sexta.” Posto 2 (Escadão): “Moto subiu, placa coberta. Voltou. Só olhou.” Posto 3 (Funil): “Três elementos do lado de lá fazendo fita. Um é do Cobra.” — “O Funil.” — eu sorri curto. — “Ali a rua afunila. Ali é onde a gente cozinha quem tenta empurrar o peito.” Braga não perguntou mais nada. Sabia que o tabuleiro tinha virado. Se o Cobra botou a cara no Funil, é porque mediu a rua. E se mediu a rua, vai testar a cerca. — “O Rato foi o primeiro recado,” — falei, baixo. — “O Pinguim foi o segundo. O terceiro é com assinatura.” — “Quer seu nome grande.” — Braga concluiu. — “Quero meu nome grudado no dente de quem morde.” Lei do Cruzeiro Antes de guerra, ordem. Desci no miolo da quebrada com o bonde: eu, Braga, Cebola, Caveira, e dois olheiro novo pra aprender olhando. Passei nos comerciantes, bati papo, cobrei o que tinha que cobrar e cortei o que precisava cortar. — “Dona Zefa,” — parei na birosca — “gasosa da escola não paga caixinha. A senhora vende fiado pras professora e pras criança sem pai? Então a senhora tem meu guarda-chuva. Quem encostar aqui pra cobrar, me chama no grito. Eu desço.” Ela travou a boca, sem saber se agradecia ou tinha medo. Tanto faz. O morro entende proteção pelo preço e pelo sangue. Eu cobro dos meus, mas eu protejo os meus. Não por coração. Por regra. Boca que não pisa no morador dura mais. Volta pra laje. Papel e caneta na mão. Regra escrita vira reza de olho. 1. Carga não atrasa. 2. Venda por fora é morte. 3. Morador é neutro. Mexeu, pagou. 4. Criança e igreja, imunes. 5. Quem cair, ninguém filma. Quem filmar, perde o dedo. 6. Nome do patrão não sobe em rede. 7. Traidor não tem velório. Assinei: Rey. — “Braga, cola essa p***a em cada portão de boca e em cada escadão. Quem arrancar, arranca o próprio pescoço junto.” Ele desceu com a tropa pendurando regra como santinho de eleição. Não é democracia. É mandado. O boato certo Pra matar homem de língua venenosa, tu não briga com a língua. Tu bota fome no ouvido. Vazei um papo pro lado de lá por um fio que eu já tinha: Naldo, segurança do Cobra, viciado em pó e em parcelar dívida que não consegue pagar. Eu sustentei a queda dele por três meses e nunca cobrei. Hoje era a fatura. — “Fala pro teu patrão que eu vou descer pro asfalto amanhã de noite, levar duas malas e encontrar fornecedor novo. Eu saio pelo Escadão, volto pelo Campo. Sem bonde. Só eu e Braga. Tô achando que o morro tá manso e quero ver se tá mesmo.” Naldo respirou pesado no radinho clandestino. Eu sabia que a mensagem ia chegar seca. Cobra é bicho que fareja oportunidade. Ia vir pelo Funil. Todo mundo vem pelo Funil quando acha que achou atalho. — “E se ele desconfiar?” — Braga perguntou. — “Eu não dou pista. Eu dou isca. E o peixe vem porque tá com fome de trono.” Preparando o Funil O Funil é uma viela que afoga moto, pessoa e esperança. Pavimento r**m, buraco, um portão em obra, um poste torto e três sacadas que de noite viram sombra. Medi a rua com o olho, depois com a fita. — “Caveira, prega prego de cabeça pra cima nesses dois pontos, espalha na terra e cobre com pó. Moto passa, pneu canta e fura.” — “Cebola, fio de nylon de poste a poste, altura do pescoço de quem vem de moto acelerando. Nível do farol. Quando o farol bater, já é tarde.” — “Braga, dois meninos com roupa da empresa de água segurando ‘mangueira’. Na hora H, isso vira lança. Água com detergente no chão vira sabão. Quero Cobra patinando.” Deixei dois galões de óleo queimado esperando. Óleo no cimento, chuva de fim de tarde. Piso vira gelo. Nas lajes, botei três morcego (atirador de janela) com munição seca. Sem conversar, sem gritar. Um silenciador improvisado com garrafa e fita. Quem sabe, sabe. Na ponta de cima, dois fogos de artifício travestidos de festa de aniversário. Sinal de início: rojão subiu, começou o batismo. Sinal de fim: dois tiros lá de cima. Quem sobrar do lado de lá, corre. Quem sobrar do lado de cá, deita. — “E se a polícia ouvir?” — Cebola falou. — “Polícia ouve o que pagam pra ela ouvir.” — respondi, curto. — “Hoje, vai ouvir fogos.” Larguei um bolo de dinheiro na mão certa no asfalto. Viatura não sobe quando a quebrada tem “celebração”. A noite da fome Céu baixo, garoa fina, cheiro de lixo úmido no beco. Eu desci com Braga, capuz, pistola na cintura. Sem fuzil pra não gritar guerra antes da hora. — “HT no volume 2. Sem histeria.” — eu disse. Posto 2 chiou: “Moto subindo em trio. Placa coberta. Segunda moto com dois. Terceira com três. Um deles é o Cobra. Confirmado.” Braga me olhou. Não sorri. Patrão não comemora antes do corpo esfriar. — “Sinal.” O primeiro rojão subiu. Estourou alto. A criançada gritou “eeeê” e isso me deu a cobertura da vida. No Funil, Cebola virou o galão de óleo. Caveira espalhou prego. Os “funcionário da água” abriram a mangueira. O chão virou sabão. E o fio de nylon, invisível, sorriu. A primeira moto entrou. Pneu cantou, piloto abriu a boca e o fio pegou no queixo do garupa. Eles foram pro chão como sardinha escorregando do prato. A segunda tentou frear, patinou, deitou, arrastou três metros, deixou rastro. A terceira tentou voltar, mas o portão de obra caiu com o chute do Caveira e trancou a rua. Jogo feito. — “Agora.” — eu falei, e o morcego da laje deu o primeiro beijo. O cara do fundo tombou com o olho apagado. Cobra entendeu tarde, mas entendeu. Gritou pro bonde: “COBRE AS LATERAIS!” Lateral não existe no Funil. Só frente e buraco. Desci pelo lado esquerdo, usei a sombra do poste. Braga foi pelo direito, reto, pistola baixa, dois tiros, dois corpos. Ele é aritmético. Dois. Zero. Segue. Cobra levantou do chão, escorregou, bateu a mão na parede, sacou o ferro. Eu atirei no joelho. Não por piedade. Por mensagem. — “Ajoelha, p***a. Rei não corre atrás de cobra, cobra rasteja até o rei.” — falei, chegando perto. Ele rosnou. Tentou levantar com a outra perna. Dei um chute no ombro. O ferro voou pro prego. Fica. — “Tu quer meu trono?” — encostei a testa da arma no lado da cara dele. — “Meu trono pesa. E pesa mais quando eu sento.” Ele cuspiu sangue, tentou rir: — “Tu não dura seis mês.” — “Eu duro o tempo que tua boca dura pra falar baboseira.” — respondi, seco. — “E tua boca acabou agora.” Antes de apertar o gatilho, eu girei o corpo dele pro beco, pra todo mundo ver. Morcego tirou a cara. Cebola desligou a mangueira. A garoa parou só pra assistir. — “Olha pra cima.” — eu disse. — “É o Cruzeiro que tá te vendo morrer.” Atirei. Só uma. A cabeça voltou pro cimento com um som oco, do tipo que a viela guarda na memória. — “Fim.” — falei no HT. Duas batidas. O sinal da laje respondeu com dois tiros secos pro alto. Rojão de encerramento. Festa acabou. Braga fez a ronda. Contou os que respiravam. Dois rendidos, quatro mortos, um se arrastando. O que se arrastava achou que tinha encontrado misericórdia. Achou errado. — “Leva esses dois rendidos pro Escadão. Vão dar aula: nome, função, rota, tudo. Depois somem.” — mandei. — “Deixa o Cobra aqui. No Funil. Sem lençol, sem nada. Quem passar vai lembrar que aqui não passa ninguém sem pedir licença.” Caveira limpou o fio de nylon, botou num saco. Cebola puxou o óleo em volta do corpo pra esticar o recado. Moto não entra amanhã. Morador vai desviar. E todo mundo vai ver. O dia seguinte A manhã nasceu com urubu dando volta por cima do beco. A notícia desceu mais rápido que água de chuva. — “Mataram o Cobra no Cruzeiro.” — “O patrão novo que fez.” — “Dizem que ele fez o cara olhar o morro antes de morrer.” Eu sentei na laje com o café amargo de sempre. Olhei lá de cima o corpo preto no asfalto cinza. Não é sadismo. É contabilidade. Cada corpo vale um mês a mais de sossego. Às vezes vale dois. Braga trouxe os nomes dos rendidos. — “Dois dos dele já tão batendo na nossa porta querendo trampo.” — disse, entregando um papel suado. — “Trampo não. Período de teste.” — corrigi. — “Quem veio de cobra tem dente solto. Antes de morder por nós, tem que cuspir o veneno.” Pedi pra Dona Inês subir com uma sacola. Ela trouxe marmita. Eu comi em silêncio. Ela me olhou do jeito de quem sabe e não aprova, mas entende que a rua não perdoa mole. — “Isso vai ter volta?” — ela perguntou, simples. — “Tudo tem volta. Eu só corro mais rápido que a curva.” Assentamento de poder Almoço na laje, regra na rua. Mandei fechar às três bocas menores e juntar em uma com controle duplo. Menos ponto, mais vigilância. Ninguém rouba o que ninguém conta errado. — “Fundo de caixinha do morador aumenta dez por cento.” — falei. — “Em troca, nada de baile furado de madrugada sem meu aval. Criança dorme. Quem tocar som alto fora de hora vai acordar com o aparelho quebrado.” — “Vão reclamar.” — Braga disse. — “Podem.” — respondi. — “Mas ao mesmo tempo vão dormir melhor. Quem dorme melhor fala menos meu nome. Quem fala menos meu nome, vive mais.” À tarde, reuni os donos de barraco que têm van. Dei a benção de rota e cobrei o preço. Em troca, botei olheiro nas paradas de ônibus pra segurar assalto pequeno. Eu não sou polícia. Eu só faço o asfalto não vir aqui porque eu já dei jeito. Isso fecha a via. Posto 3 chamou: > “Patrão… morro vizinho mandou recado. Querem reunião na divisa. Sem ferro.” — “Sem ferro só quem não tem ferro.” — falei, curto. — “Manda dizer que eu encontro se for na igreja, de porta aberta. E que eu levo a Bíblia: a minha tem treze versículos no carregador.” Braga riu pelo nariz. É o riso mais longo que ele dá. O velório que não teve O corpo do Cobra não teve velório. Teve visita. A turma dele veio buscar de tarde, sem levantar a cabeça. Ninguém chorava em voz alta. Luto de bandido é boca fechada e olho seco. O que chora muito entrega a rota. — “Deixa levar.” — eu disse, olhando de cima. — “Mas leva a fama junto. E não esquece de deixar o medo.” Quando desceram com o saco preto, eu mandei morcego soltar um rojão, desses de barulho seco. Não era festa. Era batida de martelo. Enterra-se o assunto. “Braga é sub, não é amigo” No fim do dia, eu e Braga ficamos na laje, cada um com sua latinha. Ele com o cigarro, eu com a lembrança. — “Cê podia ter feito mais bonito.” — ele disse. — “Podia ter levado o cara pra parte baixa e feito o morro inteiro ver.” — “Bonito é pra quem quer aplauso.” — respondi. — “Eu quero silêncio.” Ele assentiu. É por isso que ele é o sub. Porque entende quando eu falo meio. E executa inteiro. — “Se eu cair, tu segura a cadeira?” — perguntei, sem olhar. — “Se o senhor cair, é porque acertaram muito tiro.” — ele respondeu, seco. — “Aí cadeira não segura ninguém.” Eu ri curto. Verdade. No morro, trono não tem cinto de segurança. — “Cê sabe que eu não tenho amigo.” — falei. — “Mas se a bala pegar em mim, tu atira no ar duas vezes. Que é pra quebrada saber que o reinado não acabou. Depois escolhe um frio e põe aqui em cima. E se não tiver frio, sobe tu. Só não deixa a cadeira vazia.” — “Entendido.” — ele disse. E isso bastou. Não tem abraço. Não tem “tamo junto”. Tem ordem e eco. O recado final Quando a noite fechou, mandei cortar a luz de três ruas com um canivete no gato. Fiquei ouvindo o morro respirar no escuro. A quebrada aprende no breu o que a claridade distrai: quem manda, manda mesmo quando apaga a lâmpada. Peguei o HT e falei pro Cruzeiro inteiro ouvir, de posto em posto, de boca em boca, de barraco em barraco: — “Aqui é o Rey. A partir de hoje, ninguém escreve meu nome em parede. Quem tiver raiva, que engula. Quem tiver dúvida, que suba. Quem tiver saudade do antigo dono, visita o beco e conversa com o chão. Lei dada é lei cobrada. E amanhã eu desço pra olhar no olho de cada um. Dorme cedo. Amanhã tem trampo.” Soltei o botão. O chiado voltou. O morro ficou quieto. A laje ficou mais alta. A chuva fina lavou o Funil. A marca ficou. Não era pra sair. Marca de poder não sai com água. Sai com outro poder. E eu não vi nenhum poder maior do que o meu olhando de volta naquela noite. Deitei na cadeira de praia, pistola debaixo da camisa, rádio no peito, o mapa na cabeça e a promessa antiga na garganta: — “Eu mandei hoje e vou mandar amanhã. Até o dia em que eu encontrar o Ronaldo. E quando eu encontrar, o Cruzeiro inteiro vai saber por que eu virei rei.” Fechei os olhos sem dormir. Dono do morro não dorme. Descansa de ouvido aberto. E quando o primeiro g**o cantou de longe, eu já tava de pé, com o mesmo pensamento simples que me trouxe até aqui: > Quem quiser esse trono vai ter que ser mais frio, mais ligeiro e mais sujo que eu.
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