Capítulo 1

2974 Words
Um barulho irritante zuniu nos meus ouvidos e me acordou. Minha cabeça latejou quando tentei abrir os olhos e a luz do sol estava me cegando. Resolvi ignorar o barulho e voltar a dormir, mas estava me irritando demais. Resmunguei e rolei na cama, tateando o criado à procura do celular. Quando finalmente o achei, a ligação já tinha caído. Mas ele voltou a tocar logo em seguida, fazendo meu cérebro zunir de dor. Aceitei a chamada e botei o celular no ouvido, sem nenhuma vontade de falar com ninguém. - Hey, maninha!!! – era meu irmão – Feliz aniversário de dezoito anos!!! – ele gritou e minha cabeça deu uma pontada. Resmunguei. - Será que dá para parar de gritar? – eu disse, rabugenta – Que horas são? Seis da madrugada? - Pela sua voz, aposto que seis da madrugada foi o horário que você chegou em casa. Agora são quase meio dia e eu estou chegando aí daqui dez minutos, portanto levante já! Resmunguei novamente e abri os olhos, conferindo o relógio ao lado da minha cama. Eram onze e quarenta e cinco da manhã. - Vai lavar a cara e botar um sorriso nesse rosto porque hoje é o dia da sua liberdade. Uhuuuuu!!! – minha cabeça latejou com o grito, mas eu não pude deixar de rir – Te vejo daqui a pouco. Beijo. Ele desligou. Me espreguicei e respirei fundo. Tentei sentar, mas minha cabeça rodou e eu tive que deitar de novo. Droga! Lembrei da noite passada enquanto pegava um remédio na gaveta para ressaca. Alguns amigos haviam passado aqui em casa de surpresa, dizendo que iriam me levar para uma pizzaria para comemorar meu aniversário. Meu pai deixou, é claro, afinal era só uma pizzaria. Pelo menos era isso que ele pensava... Na verdade, eles tinham me levado para uma boate que havia acabado de ser aberta no centro da cidade. Era só para maiores de dezoito e, como eu era a única que ainda tinha dezessete, esperamos até meia-noite para podermos entrar. Eu não lembrava de muita coisa, mas sabia que eu tinha bebido muito. Quer dizer, muito era eufemismo. Eu tinha bebido como nunca antes. Não era como se eu nunca tivesse saído escondido do meu pai e bebido até passar m*l, mas ontem eu tinha ultrapassado um limite que eu nem sabia que existia. Nem ao menos me lembrava de como eu tinha chegado em casa. Levantei da cama querendo voltar para ela e entrei debaixo do chuveiro. Nada que um banho frio não resolvesse. Fiquei dez minutos lá e saí, já me sentindo bem melhor. A dor de cabeça já havia diminuído bastante. Agora eu até podia olhar para a luz do dia sem sentir que meus olhos estavam queimando. Coloquei um pijama e abri a janela. Olhei para o jardim e para a entrada da casa, procurando pelo carro do meu irmão para ver se ele já tinha chegado. Não tinha. Só havia um conversível vermelho com um grande laço e uma placa enorme em que se lia: “Parabéns!!!”. Bocejei e virei de costas. Ele tinha me apressado tanto para nada, pensei. A não ser que aquele conversível fosse dele, então... Parei por um momento, arregalei os olhos e voltei correndo para a janela. Olhei o conversível lá embaixo novamente e o laço, como se estivesse embrulhado para presente. - p**a que pariu – eu disse. Era meu!!! Dei o grito mais alto que eu já tinha dado na minha vida e saí correndo do quarto. Desci as escadas pulando de dois em dois degraus, sem acreditar no que eu estava vendo. Eu tinha acabado de ganhar um conversível de aniversário!!! Abri a porta da frente e saí correndo em direção ao carro. Parei em frente a ele, maravilhada. Era um Jaguar. Dei outro grito. Ele era... perfeito!             - Ah, meu Deus!!! – botei a mão na boca e rodeei o carro, passando a mão pela sua superfície lisa. Ouvi uma risada atrás de mim. Era meu pai. Virei e observei ele se aproximar com as mãos nos bolsos da calça. Ele parecia um anjo com a luz do sol batendo em seus cabelos grisalhos e iluminando seu rosto bonito. - Você gostou do presente? – ele perguntou, sorrindo. - Pai!!! – saí correndo e me atirei em seus braços – Eu não acredito!!! – dei vários beijos em seu rosto – Eu. Te. Amo!!! Ele riu e me abraçou forte. - Parabéns, meu amor – ele beijou o topo da minha cabeça. Afundei meu rosto em seu peito. Eu adorava abraçar meu pai. Era uma das únicas pessoas que me fazia sentir pequena e eu adorava ser embalada em seu abraço. - Uau!!! Que máquina, hein?! – olhei para trás. Meu irmão tinha acabado de chegar e analisava meu carro de perto. Ele sorria, olhando para o Jaguar. As covinhas fundas em sua bochecha apareceram, as mesmas que eu tinha. Eu e Marcus éramos muito parecidos. Não tínhamos só covinhas idênticas. A cor da pele e a cor do cabelo, assim como os olhos azuis claro eram outras características que compartilhávamos. A diferença era que ele era um pouco mais alto que eu e, bem... ele era um homem. - Será que você vai dar conta de dirigir isso aqui? – ele perguntou. Cruzei os braços e estreitei os olhos para ele. - Melhor do que você – respondi. Ele me olhou e riu. - Disso eu duvido – ele abriu os braços e eu saí em disparada em sua direção. Pulei em cima dele e ele me pegou no ar, me girando e gritando. - Uhuuuuu!!! Dezoito anos!!! – ele me botou no chão e me deu um abraço apertado – Parabéns, mana!!! - Ah!!! – eu gritei – Você está esmagando meus ossos. Ele riu e me soltou. - Então agora você também tem uma máquina? – ele bateu no carro. - Também? – curvei uma sobrancelha – Desde quando sua lata velha é uma máquina? Ele fez cara de ofendido. - Por favor, não chame meu bebê de lata velha. Como um Impala importado pode ser uma lata velha?! – ele cruzou os braços – Não dê opinião se não sabe apreciar um carro. - Eu sei apreciar um carro – passei a mão no capô do Jaguar – Olha o meu, como é maravilhoso - Pena que você ainda não tem carteira, não é? Haha! – ele me deu língua. - Quem disse que não? – meu pai se aproximou e estendeu algo para mim. Peguei e olhei minha foto e meu nome na carteira de motorista. - Pai... – meu irmão abriu os braços – Isso é jogo sujo. Não vale comprar carteira. - Eu comprei para você também, por que não para ela? - Há! – eu ri. - Mas eu sabia dirigir – ele tentou argumentar. - Eu também sei, querido – beijei a carteira de motorista – Papai me ensinou a ser piloto de fórmula um. - Ah, aposto que sim – ele riu – Eu quero ver. Curvei uma sobrancelha. - Isso é um desafio? – perguntei. Ele estreitou os olhos para mim. - Exatamente. - Ótimo – abri a porta do passageiro – Entra no carro e eu vou te mostrar. Ele sorriu, desafiador, e entrou. Dei a volta no carro, arrancando o laço vermelho e tirando a placa de feliz aniversário de cima dele. Entrei no lado do motorista e o liguei. Senti o motor vibrar violentamente e dei uma gargalhada. - Ah, como a vida é boa!!! Engatei a ré e saí do pátio da mansão. Meu pai ficou ao longe, nos olhando enquanto ria. - Não demorem muito! – ele gritou para a gente quando estávamos atravessando o portão. A casa do meu pai tinha dois andares e era imensa, por isso a chamava de mansão. Sete quartos, dez banheiros, biblioteca, dois escritórios, sala de pintura – apesar de ninguém pintar –, sala de jantar, uma sala de estar enorme onde fazíamos as festas quando precisávamos, uma sala de TV, cozinha, dispensa, área de serviço, porão e sótão, como se não tivéssemos o suficiente. Também havia o jardim imenso na frente da casa, e a garagem coberta. A casa era rodeada por um grande e grosso muro de pedras que brilhavam quando o sol batia. Marcus levantou o polegar para o meu pai ao meu lado e depois botou o cinto de segurança. - Desde quando você usa o cinto? – perguntei. - Desde quando você está dirigindo de ressaca – eu ri e bufei. - Eu já dirigi de ressaca antes – eu disse – Lembra da Jennifer e do gol azul dela? Ele me olhou e abriu a boca, como se estivesse chocado. - Foi você?! – eu ri e balancei a cabeça na positiva – Você disse para o papai que tinha sido ela! - Lógico que eu disse para o papai que tinha sido ela – ajustei o retrovisor e olhei para trás – Ela era maior de idade e eu não. Meu pai iria me matar se soubesse que tinha sido eu. Ele riu. - Coitada da Jennifer, ela recebeu uma bronca daquelas por sua culpa. - É para isso que servem os bons amigos – eu disse. - Você não vale nada – ele disse. - Hei! Eu paguei o conserto, está bem? - Você quis dizer que meu pai pagou o conserto do carro, não é? - Tecnicamente sim, mas ele não sabe. Ele riu de novo. Entrei na avenida principal e acelerei. Era domingo e não havia muito movimento por ali. Isso era bom. Eu gostava de apreciar Brasília. Era uma bela cidade. - O que você disse sobre ontem para ele? – ele perguntou. Olhei de lado para ele. - O que teve ontem? – me fiz de inocente. - Ah, fala sério... Você chegou em casa que horas? - Nem me lembro como cheguei em casa. Ele riu de novo. - Meu pai não perguntou sobre nada? - Não, eu disse que iria à pizzaria e só voltaria depois de meia-noite. Ele deve ter caído no sono antes disso. - Hm... – ele olhou para os lados e para trás – Achei que você mostrar como sabe dirigir – ele me lançou um olhar desafiador – Eu te desafio a atingir 150 – ele meneou a cabeça na direção do painel que marcava 90 km/h. Sorri em resposta e pisei no acelerador. Se tinha uma forma de conseguir me convencer a fazer algo, era só pronunciar a palavra desafio. Já me ferrei por conta disso muitas vezes, mas nunca recusei um. Não seria ali a primeira vez. Marcus abriu as janelas e ligou o som. AC/DC preencheu meus ouvidos com Highway to Hell e ele colocou no volume no máximo. Parecia adequada para o momento. Acelerei mais ainda, atingindo 130 quilômetros por hora. Ele começou a rir enquanto o vento batia com força nos nossos rostos e a batida da música fazia nossos corações vibrarem. Quando cheguei a 150 e a música chegou no refrão, começamos a cantar juntos, gritando loucamente e balançando as cabeças. - Uhuuu!!! – ele gritou e botou a cabeça para o lado de fora da janela. Ri enquanto ele batia na lataria do carro ao ritmo da música. Estava tudo indo bem até que ouvi o barulho das sirenes atrás de mim e as luzes vermelhas e azuis piscando. - Droga! – eu disse. Marcus botou a cabeça para o lado de dentro e olhou para trás, abaixando o volume da música. - É, maninha – ele fez uma careta – Acho que a gente se ferrou. Eu deveria ficar nervosa e desesperada, mas em vez disso apenas ri enquanto diminuía a velocidade e encostava o carro. Ri porque agora eu tinha dezoito e podia dirigir. Ri porque agora eu era responsável por mim mesma e ninguém iria ligar para o meu pai para avisar que eu estava com problemas. Agora seria eu quem resolveria meus próprios problemas. Agora eu era livre. ...             - Vocês demoraram – meu pai disse quando entramos na cozinha – Algum problema? - Nenhum, pai – eu sorri para ele e sentei ao seu lado na mesa – Só estávamos dando uma volta na cidade. A mesa com lugar para dezesseis pessoas estava repleta de todos os tipos de comida. A cozinheira sempre caprichava e eu sempre achava um exagero. Éramos só eu e meu pai, e nem com os empregados ajudando conseguíamos comer tudo aquilo. - E então, Marcus? – meu pai se virou para meu irmão, enquanto ele se sentava na mesa – Eu ensinei bem? - Muito bem, pai – ele piscou para mim e eu ri. Ele tinha ficado responsável pelo pagamento da multa que recebemos por dirigir acima do limite. Disse para aceitar aquilo como o presente de aniversário que ele havia esquecido de comprar para mim. Como sempre... - E você, Giovana? – meu pai me fitou – Não me disse como foi ontem na pizzaria. Foi bom? Botei macarrão e frango no prato para mim enquanto pensava no que responder. - Ah... foi – eu disse – Foi ótimo. - Você chegou que horas? – ele perguntou – Peguei no sono e não te vi chegar. - É, eu sei – sorri – Cheguei meia-noite e meia. Elizabeth, a cozinheira, entrou para colocar a jarra de suco na mesa. Ela era baixinha e rechonchuda, mas tinha um rosto amigável. No passado poderia ter sido muito bonita, mas a idade e a vida estavam cobrando dela agora. - Boa tarde, dona Giovana – ela disse e sorriu para mim. Revirei os olhos. - Elizabeth, a única dona que tem aqui é você – disse – Por favor, não faça eu me sentir velha. Ela riu e abriu os braços. - Parabéns, querida. Me levantei e recebi seu abraço. - Obrigada. Ela botou a boca perto do meu ouvido. - Vou te contar um segredo – ela sussurrou – Seu pai está aprontando, então acho bom você dar um jeito nesse cabelo para hoje à noite. Olhei para ela e abri a boca, como se estivesse chocada. - O que você quer dizer com dar um jeito no meu cabelo, dona? – cruzei os braços – O que meu cabelo tem de errado? Ela riu e virou de costas. - Nadinha. Estreitei os olhos para ela e voltei a me sentar no meu lugar. Marcus estava rindo de mim. - Está tão r**m assim? – perguntei. - Está péssimo – ele riu. Fiz uma careta. Meu pai riu. - Seu cabelo está ótimo, querida – meu pai disse – Só um pouco bagunçado. - Meu Deus, ele só pegou um pouco de vento – cruzei os braços e fiz cara feia enquanto Marcus continuava rindo – Por que eu não herdei pelo menos o seu cabelo, pai? Que injusto! Eles riram ainda mais. - Seu cabelo é lindo, meu amor. Não se preocupe com isso. Marcus continuou rindo, então joguei um guardanapo nele. Não que isso fizesse alguma coisa. Provavelmente ele nem sabia que eu estava tentando atacá-lo. - Vou aproveitar que estou precisando de um emprego e vou me candidatar a uma vaga de cabelereira para ver se aprendo a lidar com o meu cabelo – eu disse, zombando. - Como assim, precisando de um emprego? – meu pai perguntou. Olhei para ele, que tinha deixado o garfo no meio do caminho para a boca e agora me encarava. - Agora eu tenho dezoito, pai. Tenho que fazer meu próprio dinheiro. - Quem foi que te disse isso, meu amor? Olhei dele para Marcus, que agora tinha parado de rir e olhava fixamente para o prato dele. - Ninguém me disse, pai. É assim que as coisas acontecem – eu disse – Você faz dezoito, vai para a faculdade, acha um emprego e saí de casa... - Você não tem que sair de casa – ele disse, bruscamente. Olhei para ele sem entender. - É lógico que tenho. Uma hora todo mundo tem. - Mas não precisa ser agora – ele disse. - Qual é o problema de ser agora? Eu não posso querer ter meu próprio apartamento e um trabalho? - Não estou dizendo que não pode, só estou dizendo que não precisa – ele falou – Você tem tudo aqui, meu amor. Para que trabalho? Para que sair de casa? Por que não faz faculdade em vez disso? - Talvez porque eu não queira ir para a faculdade – eu disse – Talvez porque eu queira ter meu próprio dinheiro e minha própria casa. - Hei, vocês já ouviram a história do pintinho verde? – meu irmão perguntou, com um grande sorriso no rosto. Eu e meu pai o encaramos de cara feia, claramente irritados com a tentativa frustrada dele de evitar uma discussão. O sorriso em seu rosto se desmanchou e ele voltou a olhar fixamente para seu prato. - Eu tentei – ele resmungou, baixinho. Voltei a olhar para o meu pai e ele para mim. Eu estava pronta para continuar a conversa, mas estava claro que ele pararia por ali. Ele era muito pacifista e nunca levava uma discussão muito longe, ainda mais quando se tratava de mim. - Eu estou cheio – ele arrastou a cadeira para trás – Vou descansar um pouco. Ele se levantou e se virou, mas voltou novamente e tirou sua carteira do bolso, depois colocou uma nota de cem em cima da mesa, ao meu lado. - Para você arrumar seu cabelo para mais tarde, já que Elizabeth estragou a surpresa. Cruzei os braços e ignorei o dinheiro enquanto ele saía da sala de jantar. Olhei fixamente meu prato, mas tinha perdido o apetite. Fitei Marcus, que me encarava de volta. - Você tem cem reais para me emprestar? – perguntei. - Para que você quer cem reais? – ele perguntou. - Para arrumar meu cabelo – eu disse. Ele olhou para a nota de cem em cima da mesa e depois para mim. Olhou para a nota de cem novamente e para mim de novo.  - Ah... – ele começou. - Não vou usar o dinheiro dele! – eu disse. - Então vai ter que arrumar o cabelo sozinha porque o dinheiro que eu tinha usei para pagar a multa. Suspirei e levantei da mesa. - Ótimo – disse – Tanto faz... Virei de costas e saí pisando forte, de braços cruzados e cara fechada. - Gi, espera... – Marcus chamou, mas eu o ignorei e continuei andando. Bela liberdade. Eu podia andar de carro e ser responsável pelos meus atos, mas não podia trabalhar e morar sozinha. Quem tinha sido o i****a que havia inventado essa palavra?
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