Caio Narrando
Era f**a como tem dia que a cabeça da gente não dá trégua. Hoje mesmo… tô aqui, encostado na varanda do meu quarto, cigarro na boca, olhando pro céu alaranjado desse fim de tarde, e do nada… pá, aquela p***a daquela lembrança vem. E quando vem, não tem jeito, meu irmão. É ela. Sempre ela. A Manu.
A gente se conhece desde que se entende por gente. Nossos pais sempre foram amigos — os deles frequentavam a casa dos meus, churrasco junto, pagode na laje, aniversário de um era festa pro outro. A gente cresceu grudado, tipo irmão… até que parou de ser coisa de irmão, né? Era só olhar pra ela na época da escola… loirinha, sorriso de boneca, cabelo sempre solto, aquela pele lisinha que brilhava no sol do pátio. E os urubu já voavam em cima. Molecada babava nela desde cedo. Eu via, ficava puto, mas ficava na minha. Só que pra mim… ela sempre foi diferente. Não era só beleza, não. Tinha uma luz ali, sei lá.
Eu tinha 15 na época que a gente começou mesmo. Ela? 13. Mas já era mulher demais no jeito, na cabeça, no olhar. Sabia o que queria. E eu já não conseguia olhar pra mais ninguém. O Felipe, irmão dela, sempre foi meu parceiro desde pequeno. Crescemos junto também, dividimos tudo — bola, videogame, as aventuras no morro, até as p***a das frustrações da vida. E foi numa dessas…
Lembro como se fosse ontem. Noite quente da p***a, nossos pais foram pro baile e deixou a gente em casa. Eu e o Lucas metido no videogame, jogando até tarde na sala. Cada partida era um grito. Mano, rimos tanto aquele dia… até que ele capotou no sofá. Fiquei ali sozinho, com aquele controle na mão e o som da TV baixinho de fundo. Foi quando eu ouvi passos na cozinha.
Levantei, curioso. Dei uma espiada e lá estava ela. p***a… que visão. Baby doll curtinho, cabelo todo jogado, pé descalço. Ela foi pegar água, abriu a geladeira, ficou ali, de costas pra mim. Meu coração disparou de um jeito que nunca tinha batido antes. A boca ficou seca. Eu fui chegando devagarinho, calado. Ela virou.
— Ué… você não dormiu, não? — falou baixinho, voz rouca de sono.
— Não… o teu irmão que capotou. — tentei disfarçar, mas já era. Meu olhar já tava grudado nela. Os olhos dela brilharam quando me encarou. E foi aí que eu soube que não era só da minha cabeça. Ela ficou parada um instante. A mão no copo. Eu cheguei mais perto.
— Tá com sede? — ela perguntou.
— Não… sede é o que eu menos tenho agora.
E foi ali mesmo. A distância entre a gente sumiu. Meu corpo agiu por instinto. Encostei nela, de leve primeiro, pra ver se ela queria mesmo aquilo. Mas ela não recuou. Muito pelo contrário. O olhar que ela me deu… p**a que pariu. Beijei. Devagar, com medo de machucar, medo de ela me empurrar. Mas ela não empurrou. Agarrou minha camisa com aquela mãozinha pequena, trouxe meu rosto mais ainda. Foi o beijo mais f**a da minha vida. O primeiro beijo que importou de verdade. Ali, naquela cozinha apertada, com o Felipe roncando na sala, começou a p***a toda. Depois disso… não teve volta. A gente virou um só. Passei a dormir e acordar pensando nela.
Engraçado como a mente da gente escolhe o que fica e o que apaga. Eu já vivi coisa que eu nem lembro direito. Mas aquela noite? Aquela eu lembro como se tivesse acontecido ontem. O dia da nossa primeira vez. A gente já tava junto fazia um tempo. Era namoro firme mesmo, assumido. Não foi fácil chegar até ali, não. O Japona, o pai dela, cê acha que queria me ver de mãos dadas com a filha dele? p***a nenhuma.
O Japona era frente do morro junto com meu pai, o Coroa. Dois dinossauros do Salgueiro, dois homens que a favela respeitava. Eu cresci vendo os dois lado a lado, mandando no fluxo, no movimento, na p***a toda. Mas filha de frente… é filha de frente. Não é pra qualquer um, não. Quando começaram a rolar os papos que eu e a Manu távamos trocando ideia, o clima pesou. Japona me chamou na responsa.
— Vem cá, Caio. Vamo trocar uma ideia de homem pra homem.
Subi no barraco deles tremendo por dentro, mas meti a marra, como sempre. Ele me olhou firme.
— Tu sabe que eu e teu pai somos amigo desde pivete, né? Eu te vi nascer. Te carreguei no colo. E vi tua mãe barriguda, carregando você. Agora… cê tá mexendo com a minha filha.
— Eu sei, Tio Fernando. Eu gosto dela. Não é s*******m, não.
Ele respirou fundo.
— Ela não é essas menininha que fica se pendurando nos moleque da boca, não. É a minha filha. É sangue do meu sangue. Se for pra brincar, cê me fala agora que eu mesmo te dou um p*u e corto isso no talo.
— Não, senhor. É sério. Eu tô apaixonado por ela. É com respeito.
Ele ficou me olhando um tempo, pesado.
— Pois então trate como merece. E lembre-se: filho meu não se humilha. Nem pra namorado, nem pra ninguém. Tu quer ela? Assume como homem. Porque se fizer ela chorar, Caio… eu mesmo acabo contigo.
— Pode confiar. Eu sou homem.
Meu pai, o Coroa, não se meteu na frente de ninguém. Mas depois, em casa, me chamou no canto.
— Caio, não esquece de uma coisa. Essa menina é ouro. Tu conhece ela desde que ela nasceu, p***a. Não é uma qualquer. Se é isso que tu quer mesmo, então honra. E se um dia não quiser mais, tenha peito de dizer, não seja moleque.
— Sei, pai. Eu sei disso tudo. Mas eu amo ela.
Era a verdade. Amava mesmo. Mais do que qualquer coisa. Mais do que o morro, do que o respeito, do que a p***a toda. E naquela noite… foi quando tudo aconteceu. Tinha sido um rolo da p***a pra convencer o Japona e a Flávia a deixar ela dormir aqui em casa. Viviane, minha mãe, ajudou, como sempre. De mulher pra mulher, convenceu a Flávia que era melhor deixar do que ver a filha fugindo pra ficar comigo. A casa era simples, mas aquela noite tava diferente. Eu limpei tudo, ajeitei meu quarto. Troquei a roupa de cama. Deixei cheirando. Queria que fosse perfeito.
Ela chegou de noite, toda linda, de vestidinho, cabelo solto. Meu coração batia na garganta. Não era só t***o, não. Era nervoso. Era amor. Era querer fazer certo. A gente ficou vendo filme na sala, com a família ali. Conversa vai, conversa vem. Mas os olhos dela me diziam tudo. Quando deu meia-noite, minha mãe subiu. A Flávia tinha deixado a Manu dormir num colchão no meu quarto, mas separada. Mas quem disse que a gente se aguentou?
Assim que a casa ficou em silêncio, ela deitou do meu lado. O cheiro dela me enlouquecia.
— Cê tá nervoso? — ela perguntou, com aquele sorrisinho que só ela tinha.
— Pra c*****o. Quero que seja tudo perfeito pra você.
Ela sorriu mais ainda, mordeu o lábio.
— Com você, já é.
E foi. A primeira vez dela. A primeira vez nossa. Eu fui com calma, com carinho. Cada beijo no corpo dela era como se eu estivesse gravando na pele que ela era minha. Cada toque, cada olhar. Nunca quis machucar, nunca quis apressar nada. Só queria que ela se sentisse amada. Ela tremia. Mas não de medo. De emoção. De entrega.
Quando aconteceu, foi lindo. Perfeito. A gente deitado ali, depois, ela no meu peito, dizendo baixinho:
— Agora eu sou tua. Pra sempre.
E hoje… cá tô eu. Pensando nela de novo. f**a… vida dá cada volta que cê nem imagina. Puxo mais um trago do cigarro e solto o ar com raiva de mim mesmo. Tu deixou a melhor coisa que a vida te deu escapar, MT. Parabéns, seu merda.
Mas a verdade é que… ninguém nunca conseguiu tomar o lugar dela. Nunca. E por mais que eu tente seguir, fingir que tô bem, cada canto desse morro me lembra ela. Cada som de risada na laje me traz aquele primeiro beijo naquela madrugada.
E tem coisa que nem o tempo apaga. Emanuelle… Sempre vai ser você.