Intuição e Instinto

2452 Words
Gael lavou o rosto, repassando minuciosamente cada uma de suas ações do dia anterior — seu cérebro doía, uma pressão que se espalhava pelo crânio feito uma ressaca moral. Seu reflexo, uma versão insatisfeita e indócil de si mesmo, o encarava com frustração. Fragmentos de pesadelos se anexaram em um quebra cabeça enfadonho e incompleto, revivendo circunstâncias que se recusava e relembrar. Desde que chegara, seus sonhos, compostos por uma desagradável emoção de desalento e um cenário abstrato, se repetiam noite após noite. Se fechasse os olhos, se transportaria para o caos cujo propósito era se fundir com ele, designando-o a batalhas impiedosas e turvas. Até... Uma luz neutralizar a escuridão. Ser salvo no último segundo por uma luminosidade cálida que o embalava suavemente, amenizava uma parcela de seu tormento. Contemplou sua auto consciência espelhada, seus lábios ligeiramente abertos e os olhos expressivos o julgando — não com advertência e repreensão, mas com uma faísca de compreensão empática. Espirrou mais água pelo rosto e escovou o cabelo claro com os dedos, desembaraçando-o. Molhou as mechas para que o deslize fosse mais fluído, aproveitando que a umidade facilitava o processo. Terminado o ritual, vestiu uma camiseta branca e colocou o casaco escuro sem grandes pompas, não muito voluntario com seus cuidados estéticos — e graças ao seu genes nem carecia. Repousou a mão sobre seu bracelete que lhe fora dado como um presente e que simbolizava uma ligação que transcendia o tempo e as limitações mundanas. Tracejou gentilmente os contornos do acessório, não muito disposto a utilizá-lo. Evelyn, o objeto de sua proteção, eventualmente o questionaria sobre ele. Pelo pouco que pôde dissecar da personalidade da garota era sua constante vontade de conhecer a verdade — mesmo que fosse através de um perigo em potencial. Eve se negava em ouvi-lo, ainda que não tivesse planejando nada para explicar sua imunidade para determinadas magia — que serviam como coação indireta. Não gostava de influenciar as pessoas e manipular suas memórias, pois dentre todas as formas mais baixas que acreditava existir para se incluir na vida de alguém, esse feria sua dignidade. Levou as mãos a cabeça para pentear os cabelos para trás e assim desanuviar seus pensamentos. Notou que o porta retrato se encontrava caído na cômoda, estendeu a mão para alcançar o objeto e o arrumou. Não sabia ao certo de quando a foto fora tirada, mas originalmente pertencia ao seu pai. Era uma fotografia de sua mãe ainda jovem muito antes dele nascer. Uma lembrança lhe ocorreu e imediatamente a empurrou de volta ao limbo de sua mente, para não ter que lidar com aquele assunto tão cedo. Sem pensar muitos, invocou sua espada e a apontou para o canto vazio do quarto, não recuando em sua postura hostil. — Não sei quem você acha que sou para não ter notado e ainda por estar zanzando no meu quarto, mas se não sair serei obrigado a usar a força. — escutou um ganido exasperado com o alerta. — Você não é nada divertido, Gael. A silhueta feminina adquiriu cor e consistência a medida que a magia de disfarce, uma habilidade de infiltração que permitia ao usuário ocultar sua presença com uma condição: não se mexer, desaparece. — Por que está aqui? A mulher se encaminhou até o espelho e avaliou, indolente, sua figura. Seus longos e ondulados cabelos pretos caíam graciosamente sobre seus ombros e suas feições bem desenhadas lhe conferiam um aspecto sedutor e, ao mesmo tempo, malicioso. As roupas que usava se limitavam em duas cores: preto e púrpura. Seu casaco preto era uma peça cara e as calças abraçavam as suas curvas. — Deveria aprender a ser mais gentil. — argumentou provocativa. — Não creio que deva ser hospitaleiro com uma invasora. — retrucou, destrancando. — Não seja tão c***l, somos amigos. — ela revirou os olhos. — Morgana, não dá pra considerar uma amizade se... — Não quer minha ajuda? — o interrompeu, encarando o reflexo do rapaz com uma sagacidade exultante. — Não seja tão orgulhoso, garoto. — E o que quer em troca? — Nada. — sorriu. — Pelo que vi Raviel também está aqui. O que pretende fazer? — Continuar minha missão. — É muita coisa para uma pessoa só fazer. — Morgana mordeu a ponta da unha do polegar, pensativa. — Temos que trabalhar juntos, afinal há muito mais coisas em jogo que um assunto familiar. Gael não discordou da conclusão da feiticeira demoníaca. Morgana seria o que as pessoas definiriam como uma mulher que emanava perigo — e de fato era — que trairia para obter mais poder. Se um pecado lhe correspondesse, seria a gula, nunca se satisfazia com pouco, porém tinha consciência de que nem tudo poderia mexer sem ter sérias consequências. — A propósito, quem é a garota que você tanto conversava? Uma nova namorada? — debochou venenosa. — Ninguém que seja do seu interesse. Morgana deu de ombros, ciente que não arrancaria nada do rapaz. Gael seguiu seu caminho pelos corredores para fora do dormitório com Morgana em seu encalço. Não fora surpresa a reação das pessoas que os viam: um misto de surpresa e fascínio. Morgana conseguia atrair atenção como uma lâmpada atraía uma borboleta e ela adorava aquilo. Morgana se agarrou a ele como se quisesse demarcar território, embora os dois não fossem nem o mais próximo de amigos próximos. Ele não se desvencilhou dela por achar tudo exaustivo e pouco relevante. — Olha quem está ali. — indicou Evelyn com diversão. — Não vai nos apresentar? Gael suspirou. — Oh, olá Gael. — não deixou de notar a confusão nela ao cumprimentá-lo. — Olá! — Morgana cumprimentou. — Você deve ser Evelyn, não é? Sou Morgana, mas pode me chamar de Morgan. Digamos que sou uma amiga bem próxima do Gael. — enfatizou a última frase como um teste. — Prazer em conhecer, Morgan. — Eve sorriu um pouco aturdida com a interação súbita. — Espero que não se incomode. — Gael comentou com um tom menos animado comparado ao de Morgana que esbanjava vitalidade. — Não, não me incomoda. — O que gosta de fazer? — Morgana questionou, direcionando seu foco em Eve. — Eu gosto de ler e pintar. — respondeu mecanicamente. — Um dia posso ver um quadro seu? Eve corou. — Sim, mas não espere nada muito promissor. É só um hobby. Morgana engatou uma conversa que desprendeu a atenção de Gael em seu entorno. Congelou no lugar com a sutil energia que se projetou até ele. Era tão familiar e tão frágil que, por um instante, sentiu que seria capaz de rompê-lo com um pensamento. As duas garotas repararam em seu comportamento mais distante, mas foi Morgana que compreendeu realmente o motivo daquilo. A vibrante aura pulsava pelo ambiente convidando-os a ir atrás de sua origem. Gael marchou — guiado pela vitalidade que se elevava acima dos demais — para o estacionamento. Morgan pegou a mão de Eve e a puxou para acompanhá-la, sem explicar nada. E estava ali. O tempo todo, bem perto e não reparou. A mulher resmungou enquanto retirava alguns materiais do carro, alguns itens caíram pelo chão para sua frustração. A sorte não sorria encorajadoramente para ela e ansiava que uma boa alma lhe auxiliasse ou teria que atrasar seu trabalho por ser desajeitada o bastante para derrubar seus pertences. Praguejou baixinho, recolhendo arquivos jogados pelo chão. Uma mão ofereceu-lhe as pastas que outrora se esparramaram. — Obrigada pela ajuda. — agradeceu com um sorriso iluminado. Ao erguer a cabeça, Gael reprimiu o assombro — mortificado e empalidecido. Os olhos castanhos, os cabelos longos e o sorriso... Era uma cópia exata. Não tinha como duas pessoas idênticas existirem. Após confrontar todo tipo de criatura como um exímio caçador, ele se convenceu que nada no mundo o abalaria, que seria o oposto de alguém comandado pelo remorso. Entretanto, nada lhe preparou para aquele momento. Incapaz de não prestar assistência a mulher que estava muito feliz com seu amparo, Gael manteve a compostura, lutando contra a maré turbulenta que atingia seu peito, um peso tão sufocante que se converteu em uma dor excruciante — seus sentidos apurados alcançaram um novo patamar, seu olfato aspirou o perfume doce que soprava do cabelo de Anastasia e as mandíbulas se cerraram. A tentadora voz do instinto que floresceu a margem da sua racionalidade, saboreou os efeitos colaterais de seus sentimentos opressivos em seu corpo. O sangue bombeava ardente em suas veias e um furor selvagem gradativamente entorpecia sua consciência. — Ei, está tudo bem? — Anastasia indagou, tocando-lhe o ombro. Mesmo o timbre, os mesmos trejeitos e a piedade tão resplandecente nas duas orbes chocolate lhe remetiam a memórias dolorosas. — Seus olhos... Mudaram de cor... Gael desviou o rosto, usando toda força de vontade para refrear os impulsos divergentes da sua natureza sombria. — Estou sim, não se preocupe. Foi um m*l estar. — esclareceu recuperando-se do tsunami que o engoliu momentaneamente. — Talvez uma queda de pressão. — Se quiser te acompanho a enfermaria... — Não. — cortou retraindo o tom rouco e gélido de sua voz. — Agradeço, mas estou bem. Foi um desconforto passageiro. — Gael, melhor irmos, não acha? — Morgana se interpos na conversa e empurrou o rapaz para longe da jovem fotógrafa que assistia tudo com uma confusão atordoante. — Desculpe o inconveniente. — meneou a cabeça educadamente para a mulher. Gael deixou que Morgana o conduzisse de volta, sendo recepcionado por uma Eve preocupada. — Você está bem? Gael a fitou, sem, no entanto, vê-la. — Não se preocupe, ele ficará bem. — Morgana deu de ombros, sorrindo simpática para a jovem. — Gael é muito auto consciente, isso as vezes toma a cabeça dele. — Isso parece r**m. — Não é algo que mereça que esquente sua cabeça para tal. No refeitório, os três se acomodaram e Morgana se voluntariou para ir atrás da comida, mirando o casal de longe e desejando que eles não ficassem só compartilhando o espaço e interagissem. Gael parecia distante e Eve, reunindo coragem, encostou a mão na dele disposta sobre a mesa para lhe fazer recobrar a lucidez. O gesto o resgatou do limbo mental, mas não soube afirmar com certeza do porque, de tantas alternativas, escolhera o gesto mais simbólico para reavê-lo. Só sentiu que devia algum conforto a ele. Os olhos do rapaz emitiam uma tonalidade escarlate que a aprisionou pela intensidade: Belo e letal. Os dois adjetivos condiziam com a persona dele e a aura misteriosa que o cercava. Seu olhar vagou perdido até onde suas mãos se uniam em apoio mútuo e respirou fundo. — Lamento. Minhas emoções me levaram a um ponto culminante que nem me contive. — Está tudo bem, é bom que tenha voltado a si. O aperto de cumplicidade afugentou uma ínfima parte de si que ameaçou escapar. Por mais que as circunstâncias deles terem se conhecido não tenham sido das mais convencionais tampouco amigável, as coisas agora estavam se encaminhando para um lugar certo. Com a proximidade de Morgana, ambos se afastaram, olhando a mulher carregar uma bandeja e dividir o pequeno lanche que adquiriu. — Disponha. — brincou. — Vocês poderiam ser menos tagarelas, consegui escutá-los do outro lado do refeitório. — acrescentou irônica. — As vezes o silêncio pode ser o que o momento pede. — Gael elucidou com suavidade. Eve assentiu. — Eu... — Eve enrolou uma mecha de cabelo com os dedos. — Estou um pouco curiosa com o que aconteceu exatamente com a Anastasia... — Você não vai arrancar uma resposta satisfatória dele tão cedo. — Morgana pontuou. — Mas vou te dizer duas coisas e lembre bem disso, Eve. Eve estreitou os olhos com a adrenalina que se descargou em seu metabolismo; a ansiedade fez sua mão suar e os pensamentos se agitarem em um frenesi. — Emoções fortes desencadeiam gatilhos. — Morgana apoiou a cabeça sobre os braços. — Você entende como isso como uma reação de combustão. — inclinou ligeiramente a cabeça. — Ou até quando uma chama entra em contato com um produto inflamável. E te garanto, você não quer estar perto quando isso ocorre. Gael franziu o cenho com a elaborada aula lecionada pela feiticeira, embora não gostasse tanto da disposição dela em se aprofundar demasiado em certos temas, agradeceu a sua extroversão. Sua capacidade de comunicação eloquente e a facilidade para se enturmar em um grupo, a ponto de ganhar confiança mais imediata, fora um atestado para Gael comprovar que tê-la como aliado seria um benefício. — Isso você se acostuma com o tempo, então relaxe quanto a isso. — É bastante revelador. — Eve ponderou absorta. — Para dar crédito a ele, diferente da família paterna, seu controle sobre sua natureza é muito superior. Gael bebericou o suco, reparando uma piscada astuta da feiticeira em sua direção. — Talvez por ele ter uma contenção natural que impossibilita que dispare como se supõe que um ser como ele deveria ser. Com a curiosidade atiçada, Eve se viu mais instigada a explorar mais do assunto, de conhecer mais sobre que ser o rapaz seria. — Bem, eu também nunca vi o limite da autodisciplina dele para averiguar com exatidão. Gael alternou o olhar entre as duas mulheres. Seu lado racional ordenou que contesse o rumo da conversa, que não permitisse que Morgana prosseguisse. Contudo, um lado totalmente novo que borbulhou em seu interior, que competia com a razão, sugeriu que não interrompesse — que facilitaria seu trabalho se Eve soubesse disso, seja através dele ou de uma companheira. Seja qual for a necessidade para a ocasião. — Vocês se conhecem há quanto tempo? Morgana não costumava contabilizar anos, mas uma estimativa para essa pergunta era mais fácil. — Talvez vinte três ou vinte quatro anos. Basicamente a idade que ele tem. — riu divertida. — Conheci os pais dele muito antes do garoto nascer. — Você parece jovem... — Nada que um elixir de imortalidade não resolva. — deu de ombros, ganhando um olhar perplexo. — Gosto das oportunidades que a imortalidade me oferece, com meu tempo paralisado posso conhecer os segredos mais sórdidos de uma sociedade extinta, posso desvendar enigmas, descobrir poderes e rituais há muito esquecidos. O mundo é como um parque de diversão que poucos podem desfrutar plenamente. — Morgana viu uma série de sentimentos atravessarem as feições da garota de uma vez, porém nenhuma semelhante ao medo. — Sabe, gostei de você, parece a única humana que vale a pena ser amiga. — Obrigada, eu acho. — Vou aproveitar que você já sabe bastante para lhe oferecer uma chance única... Gostaria de aprender alguns truques? O sorriso maquiavélico se desenhou na face de Morgana.
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