Guarda Baixa

2267 Words
O sentimento de algo errado rastejou pela minha pele — um frio no estômago que me enjoava. Ainda que não pudesse captar o motivo de tal incômodo, associei a meu estresse do dia anterior. Dar um diagnóstico razoável ao m*l estar, entretanto, não forneceu um alívio. O farfalhar das árvores estabeleceram uma atmosfera monótona. As folhas pendentes rodopiavam sem rumo e observei, pela primeira vez desde que pus os pés ali, o vazio em meu entorno. Arrumei meu cabelo úmido para escondê-lo sob a touca e fechei o zíper do meu casaco com os primeiros sinais de chuva que se avizinhava. Por morar em uma cidade longe dos grandes epicentros e mais interiorana, o clima poderia variar bastante dependendo do horário. No céu, as nuvens navegavam em um espiral opaco trazendo consigo uma brisa ligeiramente fria que obrigava a todos os desavisados a se agasalhar para passar o dia fora. Decidi que me ocuparia de trazer meus materiais e mantimentos para o quarto, apesar de não precisar reservar alimentos — e por ser uma norma — e pela cantina fornecer nossa comida, se quiséssemos algo fora do cardápio teríamos que arrumar por nossa conta. Christine e eu revezavamos a tarefa e como mês passado fora responsabilidade dela cuidar disso, esse seria o meu e já tinha o dinheiro separado, um orçamento razoável para duas universitárias. Uma rajada súbita percorreu meu corpo, arrepiando minha pele que pinicou com a baixa temperatura. Bufei. Ajustei as mangas do casaco e tomei um pouco de água segurando em uma das mãos um jornal do grupo de jornalismo sobre a descoberta do corpo, nele alegava uma possibilidade de um dos membros do corpo estudantil ser o culpado e que já tinham identificado de quem se tratava — e era um aluno que não conhecia nem de vista. Não li todos os detalhes da matéria, porém achava cedo demais parar tirar conclusões baseadas em teorias que sequer possuíam embasamento. Joguei no lixo próximo do estacionamento e tirei as chaves do bolso, disposta a ir o mais rápido para chegar logo da loja. O pátio estava parcialmente deserto e as poucas pessoas que se aventuravam a trafegar por ali tinham, talvez, um objetivo semelhante ao meu ou apenas passavam pra fumar visto que nos dormitórios era proibido. Dei partida no carro e chequei mentalmente tudo que marquei na lista sem precisar retirá-la do meu bolso e me distrair demasiado. Ao volante tentava ter disciplina em minha condução e cautela com facilitadores de descuido — como celular — para não me acidentar. As primeiras gotas de chuva caíam calmamente no para-brisa o que tornava a viagem uma espécie de momento relaxante somada a música que tocava no carro, quase como um ASMR. Cantarolei baixinho em sintonia com a cantora, diminuindo a velocidade na pista molhada. Avaliando a estrada com atenção, há quilômetros a frente, notei uma pessoa que andava rumo ao veículo como se estivesse prestes a se chocar deliberadamente comigo — não, ele se posicionou para me deter. Aterrorizada, freei torcendo para que parasse a tempo e que não atropelasse o maluco com uma estranha atração pela morte. Já não bastava a sequência de eventos esquisitos que aconteceram, não precisava de mais outro para encher minha cota. O solavanco que me empurrou pra frente, contido pelo cinto de segurança, e o som estridente dos pneus me alertando de que tinha sido uma empreitada bem sucedida. Arfei com a sacolejada abrupta e o repuxe do cinto, tossindo como reflexo. Tonta e embebida com adrenalina, focalizei em onde a figura deveria estar, não achando nada além de um caminho solitário e nebuloso. Não pensei muito, na verdade, meu cérebro processava o ocorrido com lentidão, lutando para sair do torpor. Destranquei a porta do carro e sai, buscando uma explicação lógica para o que parecia uma alucinação. — Mas que merda foi essa? Com o efeito colateral da adrenalina diluindo pelo meu sistema, a dor no peito e o medo substituíram o ímpeto de coragem com uma rapidez enjoativa. Uma gargalhada nervosa vinda do mais profundo do meu âmago irrompeu pela minha garganta, algo que soava miserável e desolado. — Está me procurando? — uma voz maliciosa indagou, rindo graciosamente. Girei em meus calcanhares, recuando com tamanha proximidade. Ele estava atrás de mim e nem quer o tinha sentido perto! — Finalmente pude te conhecer de perto. — comentou com uma satisfação surreal. — Estava tão ansioso por isso que adiantei passos, mas se tivesse conhecimento que teria uma oportunidade de ouro como essa, não teria perdido meu tempo. Esquadrinhei os arredores, ansiando que outro carro surgisse para me salvar ou que tivesse um plano de evasão que funcionasse. As vestes brancas o destoava do cenário cinzento, destacando ainda mais sua silhueta. Havia uma aura de perigo que emanava dele e m*l suportava sustentar meu olhar sobre ele, intimidada até para clamar por socorro. Para lhe conferir ainda mais poder sombrio, usava uma máscara simples, sem expressão, sem espaço para ver seus olhos ou a boca, assumindo que devesse ser feita de alguma coisa que lhe permitisse respirar sem grandes problemas. Em uma circunstâncias diferente, na qual o pânico não se espreitasse pelas minhas entranhas, acharia graça do visual composto por uma cor tão monótona e pela escolha de peças, mas conforme o estudava melhor, pude compreender tal vestiário. — O que foi? O gato comeu sua língua? — desdenhou, diminuindo a distância que nos separava. — O acidente te deixou atordoada? Ou foi o susto? Meu instinto primitivo de auto preservação rugiu para que fugisse, que corresse o máximo que seria possível, mas minhas pernas não obedeciam meus comandos, petrificadas pelo assombro. — Já posso imaginar... Você quer fugir, não é? — andou ao meu redor, me analisando de cima a baixo com diversão sádica. — Posso te dar uma pequena vantagem, o que acha? Cinco minutos? Dez talvez? Ficou em uma pose falsamente reflexiva. — Claro que não vai adiantar muito, só será um bom exercício. — Quem é você? — me escutei inquirir assustada, reunindo forças para não me sujeitar aquele desconhecido. — Eu tenho muitos nomes, minha cara. Mas pode me chamar de Raviel. — estendeu a mão para tocar uma mecha do meu cabelo. — Senti tanta falta do seu perfume... Evelyn. — Você me conhece? — gaguejei trêmula. O deleite mesclado em seu tom malicioso me aterrorizou. — Hm... Talvez. Algumas versões suas, na verdade. Arquejei surpresa com a overdose de informações. — E por que...? — Estou aqui? — completou meu raciocínio. — Bem simples. — subiu a manga do casaco e mirou o relógio de pulso. — Nesse dia, dentro de cinco minutos, você vai morrer. E eu vim me certificar de que isso não seja alterado. Me desvencilhei do maluco e me pus a correr o mais veloz que minhas pernas titubeantes conseguiriam, tropeçando entre saltos desajeitados para dentro da floresta ao lado da estrada. Dentro de cinco minutos você vai morrer. Não queria que essas fossem a última coisa que ouviria. Não tinha como aquilo ser real. Não tinha como eu estar condenada. Não tinha como estar em uma brincadeira enferma com meu algoz para atrasar, por alguns minutos, minha morte. Parte de mim acreditava que só adiantaria o inevitável, pois se ele era capaz de prever... Não! Não fazia sentido! Ele mencionou outras versões minhas. Deve ser um drogado com um senso de humor perturbador que viu em mim um alvo em potencial, é isso! Escorreguei em uma rama molhada, despencando com truculência contra o chão úmido e coberto de folhas. O impacto não me causou ferimentos, contudo, a ideia de que tivesse presenteado aquele louco com uma vantagem na perseguição, gelou meus ossos e entorpeceram meus sentidos. Cambaleante, retomei a corrida e esbarrei com uma estrutura dura que me derrubou. Respirei superficialmente, me separando com meu carrasco ostentando um sorriso diabólico. — Acabou seu tempo de prorrogação. — entoou sacando uma espada — a lâmina reluzia como uma amostra sutil de seu poder de corte. Sem alternativa, fechei os olhos aceitando meu destino. Que não aconteceu. Abri os olhos no instante que Gael, literalmente, chegou no chute — uma voadora bem calculada — que arremessou o tal Raviel para longe, sendo aparado por um pinheiro de tronco grosso, rachando-o no processo. — Eve? — gritou, arrancando-me do transe. — Você está bem? — Sim... Eu acho... — balbuciei. — Consegue andar? Conferi as condições das minhas pernas, sem nada grave que me impedisse de me movimentar. — Sim. — Venha. — estendeu a mão e, sem pensar muito, o segurei firmemente. Disparamos para fora da campina, sem pausas para recuperar o fôlego. Apesar de meus pulmões doerem e queimarem devido ao exercício ininterrupto, agradeci por meus músculos não terem fraquejado na fuga. — Se importa se eu dirigir seu carro? — perguntou e assenti mecanicamente, lhe autorizando a tomar o volante enquanto me acomodava no banco do passageiro. Aquela altura não tinha mais minhas defesas erguidas para enxergá-lo como um inimigo. De fato, ele era um desconhecido cheio de segredos, no entanto, ele me salvou da morte, então decidi que, por hora, seríamos aliados. Gael ligou o carro e manobrou para uma rota alternativa. — Eu vou te levar a loja e de volta para faculdade para garantir sua segurança. — disse como se esperasse uma aprovação minha. — Por mim tudo bem. Recostei a cabeça no vidro da janela com um bolo na garganta que ameaçava se dissolver em um choro de angústia. — Está machucada? — a apreensão marcava seu timbre. — Não, só com medo... Não sei definir bem... Foi horrível... — um pensamento me ocorreu repentinamente. — Como me achou? E como sabia onde eu estava? Gael ficou em silêncio pelo que pareceu uma eternidade. — Christine me disse que tinha ido a loja de conveniência e que estava demorando. — ele parou, olhando-me de soslaio. — Ela me pediu para verificar se estava bem... Para ser honesto, também vim porque senti algo se aproximando. — Sentiu? — Aura. Captei sua aura e outra que oscilava. — esclareceu, atento ao percurso. — Aura? Como assim? — Digamos que tenho uma sensibilidade apurada. Graças a ela posso enxergar a aura de qualquer pessoa. A explicação dele me convenceu, não somente isso, também mudou minha perspectiva sobre o tal Raviel e as coisas que me contou, lançando uma luz sobre o oculto. — Faremos o seguinte: quando voltarmos, lhe contarei mais a respeito, combinado? Assenti. — Obrigada por me salvar. — Não precisa agradecer. Gael me auxiliou com as compras, aproveitando para pegar alguns itens que ele precisava. Dentre eles uma caixinha de chá de camomila que, em uma perspectiva superficial, não combinava com seu porte atlético, entretanto, com seu jeito sereno e composto — como se nada no mundo fosse o atingir — fazia até sentido ter gostos mais refinados. Com menos carga negativa, o enxergava com um olhar mais gentil: seus traços suaves atraía atenção indesejada de alguns clientes. O perfume dele parecia uma mistura de lavanda com baunilha fluiu até mim e, imediatamente, recordei do sonho. Chacoalhei a cabeça para afugentar a lembrança, constrangida. — Pena que não tem outros sabores de chá. — comentou para puxar assunto, dava para ver que ele fazia o que podia para me fazer ficar a vontade. — Você tinha algum sabor em mente que não tem aqui? — Talvez chá de frutas vermelhas. — sorriu como se estivesse lembrando de uma ocasião graciosa. — Prometo que vou arranjar um pacote pra você como agradecimento. — sorri, pagando minhas aquisições e Gael as dele. — Tem minha gratidão. — brincou. Desbloqueei meu celular somente para uma explosão de mensagens e chamadas perdidas. Suspirei. — Christine exagera as vezes. — mostrei a quantidade de chamadas para Gael. — Vou ter que ligar de volta. Disquei o número dela e fui recepcionada com um alto e claro “Onde você estava?”. — Também é muito bom te ouvir. — replique sarcasticamente. — Sabe o quanto te esperei? Onde está? — Estou com... — pigarreei. — Com o Gael. Meu carro deu problema no meio do caminho e ele me ajudou a consertar. — Oh, então está com ele? — a risadinha dela comprovou uma teoria que me ocorreu naquele momento. — Como está sendo? — Normal. Ele só me ajudou, não saímos para um encontro. — revirei os olhos. — Mas poderia. — com a convivência quase conseguia visualizá-la sorrindo com sua vitória. — Enfim, venha logo pra me contar como foi tudo, ok? Respirei fundo antes de responder um ok desanimado. — Algum problema? — Não. Pra ser sincera, ela meio que virou fã da ideia de sermos um casal. — ri constrangida. — Ela deixou isso bem evidente nas conversas que tivemos. — fitou o céu. — Ela não costuma fazer isso, exceto em raras vezes. — escovei o cabelo para trás, despertando um medo irracional em meu interior. — E nessas raras ocasiões ela consegue drenar o pouco de paciência que ainda habita em mim. Christine nos aguarda, se prepare para ser bombardeado com as besteiras dela. Gael franziu o cenho, inerte em pensamentos. — Gael? Ele piscou. — Podemos voltar? Ele retomou a direção e eu o passageiro, mexendo no celular. De repente, revisando cada mensagem enviada por Christine, me peguei imaginando o que seria de mim se Gael não tivesse me resgatado e os cenários prováveis para o meu desfecho. Demoraria para me sentir genuinamente bem para viajar sozinha, mesmo sendo trajetos curtos. Temia encontrar com Raviel novamente.
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