Uma pequena pista

2037 Words
O olhar afiado e inquisitivo de Christine alternando entre mim e Gael e o sorriso tranquilo e sugestivo desenhado nos lábios rosados embrulhou meu estômago. Me apressei para armazenar as compras em seus respectivos lugares, confiando que ela não iniciasse um interrogatório com o pobre rapaz e o espantasse com suas pretensões de organizar minha vida amorosa — sem a intervenção dela já era desastrosa, com sua vontade de se intrometer terminaria de me afundar. Suspirei. Ignorei a interação dos dois, repassando o ataque em flashes vívidos — com o episódio ainda fresco em minha mente. Meus braços tremeram e as lágrimas de horror e desgosto transbordaram em meus olhos, tudo que segurei durante as horas que Gael me acompanhavam agora se liberaram com força e me impossibilitaram de reagir com naturalidade. Agradeci mentalmente que Christine se ocupasse de dialogar com meu salvador e estivesse concentrada demais em toda sua manobra de aconselhamento sobre relacionamentos e como seria bom para nós nos aproximássemos e desenvolvêssemos um laço saudável e duradouro, assim teria uma paz momentânea para expressar-me. Em contrapartida, a sensação de vigília e preocupação que tinha uma vaga noção ser originária de Gael, por alguma razão, me confortou. Ele era o único, e se dependesse da minha discrição continuaria dessa forma, que compreenderia meu estado e não criticaria ou exporia minha vulnerabilidade. Enxuguei as lágrimas, me recompus, dando um breve retoque na minha cara para não aparentar uma zumbi com marcas de choro e afligir minha companheira exultante. — Você vai acabar deixando ele assustado, sabia? — zombei, com as mãos repousadas no quadril em uma postura leve. — Gael é um rapaz duro na queda, tenho certeza que não será algo que eu disse que irá afugentar ele. — replicou, sorridente. — Está sendo uma conversa bem... Interessante. — Gael emendou com um semblante plácido. Gael soube lidar bem com a jogada de Christine sempre cortando sutilmente o assunto para declarar indiretamente que nenhum dos dois nutria sentimentos tampouco estávamos em acordo com um futuro como casal. — Temos que ir, Gael. — sinalizei para que ele agilizasse. — Vejo você mais tarde, casamenteira. Christine riu e acenou. — Tem algum lugar que seja melhor para falarmos? — Gael indagou com suavidade, caminhando alinhado comigo. — Talvez. — ponderei sobre minha escolha e abri margem para outras opções, embora nenhuma se adequasse ao papel. — Quer tentar a biblioteca? Ele aceitou com um meneio de cabeça. Administrada pela Sra. Hopkins, a biblioteca abriga um acervo gigante de obras, não somente as de incumbência universitária, como também de diversos gêneros e estilos. Ali se acharia qualquer livro em um catálogo amplo e bem ordenado. O zelo que a Sra. Hopkins nutria pela propriedade se traduzia nas regras severas que não deveriam ser menosprezadas, exceto se desejasse um lista de resultados negativos em matérias essenciais e uma proibição vitalícia. A boa conduta deveria ser aplicada em todo terreno da faculdade. As mesas de estudo ficavam a poucos metros do balcão, o que seria arriscado, então ziguezagueamos pelas prateleiras abarrotadas, com cheiro de ambiente descontaminado — um desinfetante que provavelmente não agrediria os livros. — Eu vi você chegando na faculdade. — comecei, murmurando baixo para que só ele escutasse. — E o brilho anormal... Quando vi você tinha absoluta certeza que tinha algo muito errado. — Você não está totalmente equivocada. Arregalei os olhos com sua confirmação. — Não posso entrar em pormenores, para sua própria segurança, mas... — a resistência o prendeu, sua boca abriu e fechou, porém nenhum som fora emitido. — Sei que não nos conhecemos e não se sinta totalmente confortável em dizer... — o consolei, estendendo a mão para tocar-lhe os ombros. — É muito mais complexo que isso... Envolve muitos... — ele deu alguns passos adiante. — Não tenho muita escolha, no entanto. Me resignei a ir em seu encalço. — Prometo guardar segredo. — Gael me olhou por cima do ombro. — Não pertenço a esse lugar... Pelo menos não ainda. — ele estagnou antes de tomar fôlego. — Nasci com habilidades sobrehumanas que me elevam a um patamar diferente de um ser humano comum. — esfregou a nuca como se visse uma complexidade em sua escolha de frases. — O que significa? Que é um X-Men? — minha intenção não fora parecer sarcástica e incrédula, mas aquilo soou tão absurdo. Gael sorriu. — Significa que sou um ser não-humano. Talvez o mais perto de um X-Men. — ele fixou seus olhos em mim, refletindo meu humor. O fulgor azul tão determinado que faz meu coração saltar. — Tenho uma missão que ainda está muito longe de finalizar e preciso consertar as coisas antes que mais gente inocente se machuque. A angústia esculpida em sua face me comoveu — havia tanta transparência nele que seria incômodo para meu bom senso lhe dar as costas. — Por que todo mundo te “conhece” — faço aspas com os dedos. — Menos eu? — Você é imune a magia desse estilo aparentemente. — respondeu. — Quando cheguei, as memórias de todos se modificaram conforme a necessidade de minha missão. Precisava me infiltrar para ter acesso a tudo nessa faculdade. — Magia? — de tudo que ele comentou, meu cérebro havia filtrado unicamente o termo, especulando sobre isso ter algum sentido. — Veja. — ele mexeu os dedos em um gesto displicente, emergindo do centro de sua mão uma luz tímida de tonalidade laranja que cresceu em uma fagulha, apagando em um estalar de dedos. — Os humanos perderam a capacidade de produzir, diretamente ou indiretamente, magia. Entretanto, outros seres não só a manipulam como são fonte dela. — Isso é incrível! — sussurrei empolgada com a demonstração. — Quanto o homem que te atacou... Ele que me enviou pra cá. — seu timbre delicado ficou mais endurecido e sisudo. — Realmente gostaria de contar tudo, mas por hora, lhe contarei apenas isso. — Quando o... — engoli em seco. — Raviel me atacou, ele soltou um comentário sobre minhas versões... Gael franziu o cenho. — Ele te disse mais alguma coisa? Neguei com a cabeça. — É muito difícil ter alguma ideia do que ele deseja e a motivação dele para te atacar. — Talvez uma feroz onda de má sorte? — dei de ombros. — Você tem um senso de humor muito estranho. — alfinetou com uma risada discreta. — Agora que estamos meio que no mesmo barco — ele arqueou a sobrancelha. — Queria te ajudar na sua missão ou seja lá o que for, assim você não precisa se responsabilizar sozinho. O sorriso de Gael se esvaneceu. Restando um semblante sombrio e melancólico que o envolveu. — É perigoso. Muito perigoso. — Tenho consciência disso. — assegurei confiante. — Te devo uma por ter salvado minha vida. — Não me deve nada. Não se sinta obrigada a me seguir por tê-la ajudado. — Não é obrigação. — cruzo os braços. Sem muito o que compartilhar, andamos até a fileira de contos mitológicos. — Você acredita em demônios? — indagou, sacando um livro de demonologia de sua posição original. — Não sei... Acredito no que posso ver. — respondi, arrancando uma risada reprimida dele. — E se eu te falar que foram demônios que mataram o rapaz da matéria? Arqueei uma das sobrancelhas em descrença. — Diria que está louco. Que perdeu por completo o juízo. O ar de seriedade que manou de Gael me mortificou, m*l poderia conceber tal revelação. — Está falando sério? Ele assentiu. — É impossível... — balancei a cabeça, a ficha caindo. — Por que duvidar? A essa não é e nem será a única sandice que estou ligada. — respirei fundo, até menos ansiosa por ainda estar ao lado dele. — E se foram mesmo demônios, como você descobriu? — Reconheço a energia de um. Gael me entregou o livro de demonologia. No mesmo instante, reparei que usava uma espécie de bracelete no pulso direito, um acessório bastante exótico com o que se assemelhava a uma bússola no centro. A primeira vista, deduzi que deveria ter um mecanismo encarregado de abrir o diminuto compartimento para o interior. Imediatamente ele cobriu o artefato com a manga do casaco de couro preto que vestia, visivelmente atormentado e apreensivo com minha mirada curiosa e nada discreta. Meus lábios não reproduziram o que ensaiei mentalmente para me desculpar, m*l encontrei minha voz. Estava temendo que tivesse arruinado o que começamos a construir por ter ultrapassado algum limite sem querer. — Tenho que ir, nos vemos depois. — acenou, refazendo o trajeto até a saída. Soltei o ar que nem percebi ter segurado. Meu coração galopava alucinantemente e minha mente trabalhava em inúmeras teorias que justificassem a saída apressada de Gael. O tema era delicado e abordar de um jeito leviano não provou ser uma tática apreciada? Ou desencadeei uma lembrança r**m? Recolhi mais livros na prateleira para uma busca pessoal sobre demônios para dispersas as inseguranças que brotaram, fervilhando ferozmente. Arrumei uma pilha do meu lado direito e outra bem diante de mim. Folhear as centenas de páginas, ler sobre as diferentes mitologias e o misticismo que rondava essa figura das trevas me interessaram mais do que previ, parando justamente no capítulo que descrevia sobre Cambions, fruto de um relacionamento com humanos e demônios. Uma criatura que possuía uma formidável beleza, charme e carisma que encantava qualquer um que tinha contato e, o principal, se caracterizam com capacidades únicas: força, intelecto fora do normal, controle de magia e feitiços no geral. Com o leque de opções de entidades que Gael poderia ser, assinalei a ínfima chance dele ser um ou, quem sabe, um anjo. Ainda era cedo para afirmar com certeza — e encaixá-lo em um deles precipitadamente geraria uma distração —, porém deixaria as alternativas abertas para questioná-lo futuramente. Bati em minha testa por não ter pedido o número dele para facilitar caso necessitasse sua orientação, uma palavra dele. Não tinha como encontrá-lo em um ambiente lotado de pessoas, o que reduzia drasticamente o sucesso na procura. Contava exclusivamente com minha sorte, embora flertasse mais com o azar — com o conceito mais que certo de azar no jogo, azar no amor e sorte no azar — como uma colega de rotina, para que nossos caminhos se cruzassem novamente. Anotei algumas observações no bloco de notas do celular para estudar mais tarde. Tudo que cavei em meio as buscas me intrigou mais. Respirei fundo e fitei o teto. A imagem bracelete de Gael povoava meus pensamentos — nunca vi nada tão steampunk na vida, na verdade, pelo pouco que pude analisar, era quase uma tecnologia fora do que nossa Era oferecia. E certamente carregava algum valor sentimental, uma importância bastante notória. Sobretudo, a tristeza oculta que vislumbrei em seu olhar e sua recusa em se mostrar mais me agitou por dentro com uma intensidade impotente a me dominar. — O que você esconde, Gael? — murmurei para mim mesma. — Ei, Eve! — Matthew, ou como preferia ser chamado Matt, era um dos meus companheiros de classe me tirou do meu monólogo mental. — Não esperava te ver aqui. Em realidade, achava que tinha saído com o Gael. — Bem, em parte, sim. Estava conversando com Gael. Estamos trabalhando em um projeto em dupla que... Que impressão estranha. — O que foi? — Acabei de recordar que deixei relatórios pendentes com o Gael! — às pressas, peguei os livros e os coloquei de volta, o cuidado e a responsabilidade me preveniam de problemas com a Sra Hopkins. Fiz um gesto de despedida que ele retribuiu sem graça. Ante a entrada da biblioteca, um desconforto revirou meu estômago — um frio nauseante se alojou e se assentou ali. Havia algo r**m longe do meu campo de visão, contudo, seu olhar incisivo podia sentir por toda parte. Chacoalhei a cabeça. Estava paranoica. Tensa. Retornei ao meu dormitório e engajei um discurso mental de não dar corda para os comentários de Christine. Fui direto ao balcão onde guardei uma barra de chocolate e o mordisquei, divagando sobre pular uma aula para me presentear com uma breve pausa e convidar Gael para comer fora e me vincular com ele.
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