O saco de nylon batia contra a minha perna, pesado de latinhas amassadas, mas ainda cabia mais. O suor escorria pela minha testa, grudando os fios de cabelo na pele, e eu precisava de ar. O coração acelerava toda vez que eu passava daquela linha invisível que dividia o morro em dois mundos: o de quem só sobrevive e o de quem manda.
As casas eram diferentes ali, mais bem cuidadas, pintadas de novo, com portões reforçados. O chão de cimento parecia até mais limpo. E eu sabia o motivo: era a área do Caveira, o dono do morro. Todo mundo respeitava, todo mundo temia. Eu não tinha coragem de levantar os olhos, só caminhava com passos curtos, como se quisesse desaparecer.
Foi então que vi. Bem na frente de uma das casas maiores, perto da calçada sombreada, havia um monte de latinhas espalhadas. Garrafas também, caixas de cerveja vazias, restos de uma noite de festa. Um banquete de alumínio que faria meu saco render muito mais do que os cantos pobres lá de baixo. Só que tinha um detalhe: aquela não era uma casa qualquer. Era dele e eu tinha certeza.
Parei a alguns passos de distância, hesitando. O coração batia descompassado, minhas mãos começaram a suar. Podia ser um erro mexer ali. Podia ser visto como desrespeito. Mas também... eram só latinhas. Jogadas no chão, abandonadas. A tentação queimava dentro de mim.
Dois rapazes estavam encostados perto do portão, observando a movimentação da rua. Vapores. A gente sabia reconhecer de longe. Eles me olharam de cima a baixo, não com desejo, mas com aquele tipo de desconfiança que pesa mais que qualquer palavra.
— Posso pegar? — a minha voz saiu baixa, quase um sussurro, mas clara o suficiente pra que eles escutassem. Segurei o saco com as duas mãos, como se fosse um escudo, e tentei parecer firme. — As latinhas... só isso.
Os dois se entreolharam e riram de leve. Não riso de zombaria, mas também não de simpatia. Um deles deu de ombros e falou:
— Se quiser, pega. Tá jogado aí.
A permissão me fez soltar o ar preso nos pulmões. Abaixei-me rápido, recolhendo cada lata como se fossem moedas de ouro. O metal gelado estava úmido, sujo, mas pra mim era dinheiro, era sobrevivência. O saco foi ficando cheio, e cada barulho metálico lá dentro me dava uma estranha sensação de alívio.
Enquanto enchia, minha mente viajava. Pensava em como era irônico catar o lixo do homem mais rico daquela favela. Ele tinha carros, armas, mulheres, respeito. Eu tinha um saco de nylon e mãos sujas de alumínio. Mas, naquele instante, eu não me importava. Eu só queria juntar o suficiente pra não dormir com fome.
Quando terminei, amarrei a boca do saco com força e passei a ponta da blusa no rosto, secando o suor. Olhei de canto pro portão fechado, o coração disparando só de imaginar a sombra dele aparecendo ali, me pegando no flagra. Mas não aconteceu nada. Só silêncio. Só a sensação de que, naquele lugar, até o ar era pesado demais pra quem não pertencia.
Segui meu caminho com o saco cheio, os ombros doloridos e a mente cansada. Enquanto descia o morro, só conseguia pensar em como minha vida se resumia a isso: catar restos. Restos de comida, de dignidade, de sonhos. Restos de alguém que nunca foi capaz de me proteger.
E, por mais que eu tentasse afastar essa ideia, a verdade era simples e c***l: talvez eu tivesse nascido apenas pra isso. Viver dos restos dos outros.
Desci o morro devagar, o saco pesado nas costas, rangendo contra o tecido fino da minha blusa. O barulho metálico das latinhas batendo umas nas outras denunciava minha presença em cada esquina, como se fosse uma trilha sonora da minha miséria. Alguns meninos brincavam de bola na viela, desviando pra não me atrapalhar. Um senhor, sentado numa cadeira de plástico, observava em silêncio. Ninguém precisava comentar. Todo mundo já sabia: eu era a filha da viciada.
Cheguei ao ferro-velho quase sem fôlego. O calor era sufocante, o cheiro de ferrugem e óleo queimado se misturava ao do suor que escorria pelo meu corpo. O homem atrás do balcão m*l levantou os olhos quando pesei o saco. Jogou as latinhas na balança, rabiscou um número numa folha velha e estendeu a mão com as notas amassadas.
Peguei o dinheiro e agradeci, a voz embargada. Não era muito, nunca era. Mas já dava pra alguma coisa. E eu sabia exatamente o que precisava.
Atravessei a rua até a mercearia, um lugar pequeno, com prateleiras estreitas e cheiro de café moído. As pessoas passavam rápido, algumas me reconheciam e desviavam o olhar, outras fingiam não ver. Entrei, sentindo a pele queimar de vergonha, como se todo mundo pudesse ler minha vida estampada no rosto.
Olhei os preços antes de escolher. Cada centavo precisava ser medido como se fosse sangue. Peguei uma lata de óleo, um pacote pequeno de arroz e meia dúzia de ovos. Nada além disso. Queria levar açúcar, queria levar feijão, mas não podia.
O dono do armazém registrou os itens, e eu entreguei as notas com cuidado, escolhendo as mais inteiras. O troco caiu na minha mão, leve demais pra dar tranquilidade. Guardei dentro do bolso da calça, como se fosse tesouro, já planejando não gastar em nada além do necessário.
Na volta, o saco agora vazio pendia mole no ombro, mas as sacolas de plástico pesavam de outra forma. Cada passo ecoava o mesmo pensamento: hoje a gente não vai dormir de barriga vazia.
Entrei em casa em silêncio, como sempre. Minha mãe ainda estava jogada no sofá, os olhos fundos, a respiração pesada. Não acordou quando passei. Fui direto pra cozinha, arrumei os poucos itens na prateleira e escondi o troco dentro de uma caixa velha, debaixo da cama. Emergência. Sempre precisava ter alguma coisa guardada, porque nunca dava pra saber quando a fome ou a cobrança iam bater mais forte.
Sentei na beira da cama, exausta, e fiquei olhando pras paredes descascadas do quarto. Tudo parecia se encolher ao meu redor, como se a vida fosse uma prisão de onde eu nunca ia sair.
Passei a mão sobre o bolso vazio, onde antes tinha o peso das latinhas, e fechei os olhos. O silêncio me envolveu, e uma certeza amarga latejou dentro de mim: por mais que eu corresse, por mais que eu me esforçasse, o mundo sempre ia me lembrar do meu lugar.
E o meu lugar, até agora, era sobreviver. Só sobreviver.