4. Mariana

1218 Words
A rua já estava quase vazia quando cheguei na porta de casa. As luzes dos postes piscavam, projetando sombras alongadas que me seguiam feito fantasmas. O coração apertava toda vez que eu atravessava aquele portão enferrujado, porque nunca sabia o que ia encontrar do outro lado. Empurrei a porta devagar, e o cheiro me atingiu primeiro. Não era só cigarro ou bebida. Era aquele odor forte, químico, misturado ao suor humano. O estômago revirou antes mesmo de eu ver. Na sala, minha mãe estava caída sobre o sofá rasgado, os olhos semicerrados, a boca entreaberta, perdida em outro mundo. Mas não estava sozinha. Dois homens se revezavam sobre ela, rindo baixo, os movimentos pesados fazendo a mobília ranger. Eles não olhavam pra mim, nem se importavam com a minha presença. Para eles, eu era invisível. Invisível como minha mãe também tinha se tornado, reduzida a um corpo trocado por migalhas de pó. Fiquei parada, sem ar. Quis gritar, correr, arrastar ela dali. Mas minhas pernas travaram. O som abafado dos gemidos forçados dela e as risadas masculinas preenchiam o espaço como uma sentença. O mundo parecia estreito demais, c***l demais, pra qualquer reação. Engoli seco e dei um passo pra trás, tentando não chamar atenção. Meu coração batia descompassado, como se fosse explodir. Cada célula do meu corpo gritava pra fugir, mas também me prendia ali, olhando. Porque era impossível não olhar. Era impossível não sentir a vergonha corroendo minha pele, como se eu fosse cúmplice daquela cena. Fechei a porta do quarto devagar e encostei a testa contra a madeira, tentando controlar a respiração. O barulho continuava lá fora, ecoando pela casa, invadindo meus ouvidos. Coloquei as mãos nos ouvidos, mas não adiantou. Era como se a sujeira daquilo tivesse impregnado em mim. Me deitei na cama, ainda de mochila nas costas, e me encolhi. O choro veio sem permissão, silencioso, quente, molhando o travesseiro fino. O pior não era a cena em si. O pior era a certeza de que aquilo não era a primeira vez. Nem seria a última. Minha mãe estava se afundando de um jeito que já não tinha volta. (…) O sol já entrava forte pela janela quando abri os olhos. O calor grudava na pele, mas não tive forças pra me levantar. O corpo inteiro parecia pesado, como se um ferro tivesse sido colocado sobre mim durante a noite. Pisquei devagar, sentindo os olhos arderem, talvez de tanto chorar, talvez de cansaço. A casa estava em silêncio. Um silêncio enganoso, que escondia a sujeira e a vergonha da noite anterior. Eu não precisava sair do quarto pra saber o estado em que minha mãe estava: largada em algum canto, talvez ainda dopada, talvez só dormindo o sono de quem não sente mais nada. Virei pro lado, puxando o lençol fino até o queixo. O cheiro do travesseiro não me deixava esquecer. A cena da noite passada voltava em flashes, como se fosse um filme que alguém projetava atrás das minhas pálpebras. Minha mãe entregue, os risos abafados, o som do sofá rangendo. Eu fechava os olhos e tudo vinha de novo. Normalmente, nesse horário, eu já estaria na rua com o saco de nylon vazio, pronta pra catar as latinhas do dia. Hoje não. Hoje não havia força dentro de mim. A ideia de colocar os pés fora daquela porta me dava enjoo, como se o mundo inteiro fosse uma ameaça esperando pra me engolir. O estômago roncou alto, pedindo comida. Mas ignorei. Não queria arroz frio, nem ovo frito. Não queria nada. O corpo pedia descanso, mas a mente não deixava. A cada minuto, um pensamento diferente me atravessava: até quando? Até quando eu ia aguentar? Até quando eu ia ser só a filha da viciada? Até quando eu ia pagar pelas escolhas que não eram minhas? Virei de barriga pra cima, olhando pro teto manchado de infiltração. A luz do sol batia num canto, iluminando a poeira suspensa no ar. E pensei que era assim que eu me sentia: um grão de poeira perdido, sem peso, sem direção, rodando dentro de uma casa que nunca foi lar. Não saí da cama. Não catei latinha. Não lavei a casa. Só fiquei ali, imóvel, como se a vida tivesse apertado o botão de pausa. E, no fundo, eu sabia que não era preguiça. Era um cansaço diferente, profundo, que vinha da alma. Um cansaço que gritava que eu estava chegando no meu limite. Fiquei deitada por horas, olhando pro teto como se os olhos pudessem atravessar o reboco e encontrar outro céu, outro tempo. O silêncio da casa era sufocante, quebrado apenas pelo barulho de passos lá fora e o ronco distante de uma moto subindo o morro. Fechei os olhos, tentando apagar as lembranças da noite passada, mas o que veio foi algo diferente. Uma memória que eu guardava escondida, como se fosse um tesouro que a vida me deixou antes de roubar tudo. Lembrei da minha mãe quando ainda não era "a viciada". Ela tinha um sorriso largo, bonito, que iluminava o rosto mesmo sem maquiagem. Eu devia ter uns sete anos, e ela me levava pela mão até a feira do bairro. O cabelo dela estava preso num coque alto, e a blusa florida balançava com o vento. Não havia vergonha nos olhos dela, só uma leveza que hoje parecia impossível. — Mariana, pega a laranja mais bonita pra mim — ela dizia, com aquele jeito doce, enquanto me colocava no colo pra eu alcançar a banca. Eu esticava o braço, orgulhosa, e ela ria, dizendo que eu tinha "bom gosto". Depois a gente voltava pra casa com sacolas cheias e preparava juntas um suco que enchia a cozinha com cheiro de fruta fresca. Outras vezes, lembro dela penteando meu cabelo antes da escola. A escova puxava, doía, mas ela tinha paciência. Cantava baixinho uma música qualquer, e eu fechava os olhos, fingindo que aquele momento nunca ia acabar. Naquele tempo, ela ainda me chamava de "minha princesa". A mudança não foi de um dia pro outro. Primeiro vieram os olhares cansados, as ausências longas. Depois, os copos de bebida que ela escondia atrás do armário. Até que um dia a bebida não bastou mais, e o brilho no olhar dela foi desaparecendo, como se alguém tivesse apagado a mulher que eu conhecia. Agora, deitada na cama, com a lembrança do corpo dela entregue a desconhecidos em troca de pó, eu quase duvidava que aquela mãe sorridente um dia tinha existido. Era como se fossem duas mulheres diferentes: a que me embalava no colo e a que se arrastava no sofá. As lágrimas vieram silenciosas. Não chorei só pelo que ela se tornou, mas pelo que eu perdi junto com ela. Pela infância roubada, pelos abraços que nunca mais recebi, pelo futuro que talvez tivesse sido diferente se ela tivesse continuado a ser aquela mulher da feira, da cozinha, do penteado dolorido mas cheio de carinho. Me virei de lado, abraçando o travesseiro, e desejei com todas as forças que o tempo pudesse voltar. Que eu pudesse agarrar aquela mãe de antes e não deixar que ela escorregasse por entre meus dedos. Mas o tempo não volta. E eu só tinha a versão dela que restou: a que me empurrava cada vez mais fundo num buraco sem saída.
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