Capítulo 2

1433 Words
Joana fotografava tudo que podia como se fosse uma turista japonesa. Bastava interessá-la e, imediatamente, focalizava o alvo e fotografava-o na câmera digital. Após o passeio no parque cujo nome Jô tivera dificuldade em pronunciar, Jardin Du Vert Galant, cruzara uma das trinta e sete pontes de Paris, le pont Neuf ou a ponte Nova que, na verdade, segundo o folheto turístico que segurava, era a ponte mais antiga da cidade, construída em 1578, à época do rei Henrique III e inaugurada por Henrique IV. No rio Sena, era possível ver alguns barcos passando por debaixo da ponte que sugeria uma muralha medieval que dava passagem a um castelo.  Uma ponte larga com trânsito fluído nas vias duplas de asfalto. Aproximou-se da amurada e observou o Sena e o reflexo dos raios solares sobre a superfície da água. Era triste e bonito. Paris era triste e bonita. Antiga e moderna. Pensou na cidade como uma mulher dividida por seus complementos contraditórios e essa mulher – virou a cabeça em direção à sua progenitora que conversava com alguém do escritório de São Paulo no celular – podia ser sua mãe, a bela morena de cabelos longos e escuros, puxados para trás num r**o de cavalo alto. Não se pareciam em nada, fisicamente ou em relação à personalidade. Entretanto, reconhecia na sua mãe a amizade profunda e o amor incondicional que as unia em todos os momentos. Até mesmo quando ela, Jô, decidira que chegara a hora de conhecer os outros 50% dos seus genes. Para isso tiveram de cruzar o Atlântico. O pouco que sabia sobre seu pai era que escrevia livros, um escritor. Ela achava chique isso, ele ser escritor. Desde a adolescência ele e a mãe eram amigos. A mãe explicara-lhe com bastante naturalidade que ela e o seu pai haviam feito s**o uma vez só e, quando descobrira que estava grávida, decidira criá-la sozinha para não a dividir com ninguém. Por isso Jô sentia-se especial, amada e muito ligada à mãe. O que não mudava a curiosidade que nutria em relação ao pai e ao fato de ela ser loira e a mãe morena. Era óbvio que seu pai era loiro e, segundo sua mãe, francês. Ele e um amigo estudaram no Brasil por um tempo. O resto da história nunca conseguiu saber, pois sua mãe não gostava de tocar no assunto. Era-lhe dolorido. Jô odiava vê-la triste e assim evitava conversar sobre o seu passado. Pelo menos o passado anterior ao seu nascimento. Apontou a máquina para ela e fotografou-a várias vezes. Usava um vestido longo, de malha, colorido, decote em V, amarrado atrás do pescoço e com as costas completamente nuas e sandálias abertas, de salto baixo. Roupa de férias, pensou Jô, admirando a beleza do corpo mignon. Ouviu-a falar com impaciência enquanto caminhava até ela: – Certo, Michel, pedi apenas um mês de férias e isso em três anos. Reservo-me o direito de não trabalhar e curtir a minha filha, já que a coitada me vê apenas algumas horas por dia. Diga a Raquel que a Carcassone está sendo roubada pelo seu próprio auditor. Enviei-lhe o relatório por e-mail, lá do aeroporto, antes de pegar o avião para Paris. Abra o e-mail e leia-o, por favor! E esqueçam que eu existo por pelo menos trinta dias! Desligou com raiva. Trabalhava como arquiteta de segurança da informação, numa empresa que oferecia consultoria em inteligência da informação para grandes corporações. Estudara Direito e durante dez anos fora policial federal. Desistira da estabilidade e dos riscos da profissão para ter mais tempo para a filha. No entanto, desde que começara a trabalhar na Consultoria Laçador, tornara-se escrava de prazos. Ansiosa e obcecada pela perfeição, como se menos lhe custasse a cabeça na guilhotina, dedicava mais horas do que devia num campo profissional cada vez mais vasto e vital. Ela era responsável pelo levantamento de informações a respeito de fornecedores e prestadores de serviço nas transações empresariais, diminuindo, assim, a margem de risco do cliente, também pessoa jurídica. Além de rastrear informações sobre candidatos à vaga no alto escalão, tudo, inclusive e principalmente a vida particular. Seu trabalho era uma mistura de investigadora particular com hacker. Sempre de acordo com lei e agindo em função de desmascarar farsantes, mentirosos e fraudadores. Mas a Laçador não julgava, não punia e tampouco punha alguém na cadeia. Simplesmente levantava as informações, completas e detalhadas sobre o indivíduo ou a empresa em questão. No táxi que seguia em direção a um dos bairros elegantes de Paris, Jô fez um carinho na cicatriz fina no pulso da mãe e recebeu um beijo na ponta do nariz e um olhar que inspirava confiança. – Amorzinho, não estamos no Brasil, e aqui as regras são outras. Os franceses não são abertos e espontâneos como nós, brasileiros, ok? Então, contenha-se um pouco. Seja, digamos, menos natural. – pediu com um sorriso. Sabia que a filha dificilmente lhe obedeceria. Era moleca demais e adorava aprontar. – Devo ser, digamos... fingida? – debochou, devolvendo um sorriso teatral de menininha inocente. – Educada, Jô. Quero que seu pai perceba que fiz um bom trabalho, apesar desses dreads... – provocou-a. – Ah, no Marais é assim, gente cool como eu. – riu dando de ombros. A mãe riu do “cool”. – Onde leu sobre isso? – Naquele guia de Paris que compramos no Natal do ano passado, lembra? – Ah, o Marais... – pensou alto; em seguida, baixou o tom de voz e fitou com seriedade a menina: – E por falar em lembrar... Não se esqueça do nosso plano. Posso contar com você? – Acha que isso resolverá os seus problemas de insônia, mãe? Jô era muito perspicaz para a idade. – Não é uma vingança, filha, é só uma brincadeira. Se ele brincou comigo um dia, quando eu era uma menina pouco mais velha que você, por que não posso brincar agora? – disse, ainda sorrindo calmamente. Jô estourou uma bola da sua goma de mascar e afirmou olhando a paisagem que passava rápido na rua: – Somos parceiras, conte comigo. – Eu sei, querida. Não era à-toa que trabalhava com tecnologia da informação. Desde que fora abandonada por ele, só pensava no dia em que o encontraria em qualquer parte do mundo que fosse. Sim, iria encontrá-lo, o tempo que levasse. Apenas pelo prazer de torturá-lo para se divertir. O táxi deslizou pela entrada de cascalhos ladeada por um denso bosque. Os portões estavam abertos e não havia seguranças no lugar. Ela pensou nos motivos que faziam com que Pierre vivesse numa mansão caríssima sem se preocupar com assalto e sequestro. Talvez Adam fosse o responsável pela ausência de um esquema de segurança. Obtivera informações de que ele viajava muito, principalmente, aos Estados Unidos e talvez isso justificasse o lapso. Pierre ficava mais em Paris, parecia fazer mais o tipo doméstico, escrevendo seus livros e participando de leituras em livrarias da cidade. O outro não. O outro devorava o mundo com a ferocidade que um dia amara o seu corpo. Cinco minutos de intenso pânico diante da mansão onde abrigava alguém que lhe dera o céu e depois lhe enviara direto para o inferno, em menos de um ano. Mentira. Fraude. Roubo. Nos negócios e no amor era sempre a mesma coisa. Ele declarara-lhe o seu amor. Ele fora chamado de volta à França. Ele a abandonara num estalar de dedos. A porta da mansão abriu-se e um loiro vestido numa blusa surrada e uma bermuda, de pés descalços, bronzeado do sol, com um cavanhaque aloirado e um corpo alto e atlético surgiu. E ela, por dois ou três minutos, não o considerou como o rapaz de 19 anos, magrinho, tímido e leitor dos clássicos da literatura mundial, quase um nerd. Ali, estava um galã de Hollywood, mais americano impossível. O francesinho sofisticado havia desaparecido naquele corpo magnífico e naquele rosto másculo de olhos azuis claros e boca carnuda. Desceu do automóvel e virou-se para pagar ao motorista. Ao fazer tal gesto, o celular caiu da bolsa e rolou para debaixo do banco da frente. Praguejou baixinho e agachou-se a fim de, tateando no piso do automóvel, achá-lo. Quando se voltou sorrindo, com o aparelho na mão, ouviu horrorizada Jô exclamar feliz da vida: –... Jô, Joana, sua filha, votre fille! Michelle jogou os euros quase na cara do árabe e correu em direção à garota, os olhos arregalados e a garganta seca. Puxou-a com força pelo braço e gritou furiosa: – Pelo amor de Deus, Joana, não é esse o teu maldito pai!
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