O SILÊNCIO QUE GRITA

1016 Words
O relógio da sala marcava quase meia-noite quando os primeiros gritos ecoaram pela casa. Malu, encolhida em baixo do lençol fino, apertou contra o peito a boneca de pano já ruída que a mãe costurara anos atrás. A cada palavra cortante que vinha da sala, o coração da menina batia mais rápido, como se fosse pular para fora do peito. — Você não entende nada! — a voz de Eduardo soava arrastada, pesada, misturada ao cheiro forte de álcool que tomava conta da casa. — Tudo culpa sua, Laura! Laura, firme apesar das lágrimas que se acumulavam nos seus olhos, tentava manter a calma. — Eduardo, por favor, a Malu está dormindo… — disse em tom baixo, como quem suplica. Mas Eduardo não queria silêncio. Queria guerra. Bateu a garrafa de cachaça contra a mesa com tanta força que Malu ouviu o vidro vibrar. No quarto, a menina tapou os ouvidos. Já sabia que o barulho que seguiria poderia ser ainda pior. Para ela, o silêncio da madrugada nunca era paz — era apenas o prenúncio do próximo grito, do próximo estalo, da próxima lágrima da mãe. Laura, tentando proteger a filha, aproximou-se do marido, erguendo as mãos como quem apazigua uma fera. — Eduardo, pense na sua filha… ela não merece passar por isso. — E quem você pensa que é para me dar lição? — rugiu ele, os olhos avermelhados pela bebida e pela raiva. Deu um passo à frente, e Laura recuou instintivamente. Naquele instante, Malu escutou o som de um objeto caindo no chão, talvez uma cadeira virada, talvez algo arremessado contra a parede. O coração da menina gelou. Ela queria correr até a mãe, mas o medo a prendia à cama. As lágrimas escorriam silenciosas pelo seu rosto. Era um choro contido, um choro que só uma criança que aprendeu cedo demais a se calar poderia carregar. Na sala, Laura ergueu a voz pela primeira vez: — Basta, Eduardo! Eu não vou mais aceitar isso. O silêncio que se seguiu foi mais ensurdecedor do que qualquer grito. Eduardo respirava pesado, o punho fechado. Por um momento, parecia que ele avançaria. Mas, vencido pelo álcool, cambaleou até o sofá e desabou, adormecendo entre garrafas e insultos murmurados. Laura ficou ali, parada, os olhos fixos no homem que um dia amou, mas que agora era apenas uma sombra c***l. Sentia o corpo tremer, mas não podia se permitir fraquejar. Respirou fundo, enxugou as lágrimas e foi até o quarto da filha. Malu, ainda encolhida, ergueu os olhos marejados para a mãe. — Mamãe… a gente vai ficar bem? — perguntou num fio de voz. Laura sentou-se ao lado da menina, acariciou-lhe os cabelos e forçou um sorriso que escondia a própria dor. — Vai, sim, meu amor. Eu prometo. Mas, no fundo, Laura sabia: aquela promessa só poderia ser cumprida se tomasse a decisão mais difícil da sua vida. Naquela noite, enquanto Malu adormecia de cansaço, Laura ficou acordada, ouvindo a respiração pesada de Eduardo misturada ao ranger das telhas com o vento. O silêncio gritava dentro dela, anunciando que algo precisava mudar. O sol ainda nem havia nascido quando Laura se levantou. Passara a madrugada em claro, sentada na beira da cama, olhando para a filha que dormia inquieta, agarrada à boneca de pano. Cada respiração curta de Malu soava como um pedido de socorro. Na sala, o corpo de Eduardo ainda jazia estendido no sofá, com uma garrafa caída ao lado. O cheiro da bebida misturado ao suor e à raiva impregnava o ar. Laura o observou por alguns segundos. O homem que um dia a fizera sonhar com uma vida feliz agora era apenas o cárcere que aprisionava a si e à filha. Um pensamento latejava na sua mente: “Se eu não sair daqui, ele vai destruir a Malu. Vai destruir a mim também.” De volta ao quarto, ajoelhou-se ao lado da cama e segurou a mão da filha. — Malu… — sussurrou, mas a menina não despertou. Estava exausta demais da noite anterior. Laura deixou as lágrimas caírem silenciosamente. O peso da sua decisão parecia esmagar os seus ombros. Fugir não seria fácil. Fugir significava deixar para trás a casa, os vizinhos, a vida inteira. Fugir significava enfrentar o desconhecido. Mas ficar… ficar era condenar Malu a crescer entre gritos, insultos e medo. O coração de Laura batia forte quando se lembrou de Rosa, a amiga de infância que tantas vezes estendera a mão. Rosa morava a poucas ruas dali, e sempre dizia: — Laura, você não merece isso. Quando quiser sair, me procure. As palavras ecoaram como uma corda jogada para alguém prestes a se afogar. Laura caminhou até a pequena mesa da cozinha e puxou um caderno velho. Pegou uma caneta e, com a mão trêmula, escreveu algumas linhas. Era uma carta curta, destinada a Eduardo. Não havia ódio nas palavras, apenas um adeus firme e necessário: "Eduardo, não posso mais viver assim. Preciso proteger a nossa filha. Espero que um dia entenda. Adeus." Dobrou o papel e o deixou sobre a mesa, próximo à garrafa vazia. De repente, um barulho seco a fez estremecer. Eduardo mexera-se no sofá, resmungando algo incompreensível. Laura congelou, o coração disparado, esperando que ele acordasse. Mas logo o silêncio voltou, e ela respirou fundo. Naquele instante, tomou a decisão que mudaria para sempre as suas vidas. Levantou-se, foi até o guarda-roupa e pegou uma sacola velha. Guardou algumas roupas, documentos, e a boneca de pano de Malu. Cada peça dobrada parecia pesar toneladas. Voltando-se para a filha, Laura acariciou os seus cabelos e sussurrou com a voz embargada: — O meu amor, a mamãe vai-te tirar daqui. Eu prometo que você nunca mais vai dormir com medo. A madrugada esvaiu-se lentamente, e quando os primeiros raios de sol tocaram a janela, Laura já estava pronta. O destino ainda era incerto, mas a decisão estava tomada: ela fugiria naquela noite, custasse o que custasse. E assim, com o coração em chamas e a mente tomada por medo e coragem, Laura se preparava para o passo mais arriscado da sua vida.
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