Capítulo 1: Olhares de Desconfiança
A estrada que levava ao Morro do g**o era estreita e cheia de curvas. Isabel dirigia devagar, observando as casas simples empilhadas uma sobre as outras, formando um labirinto de cores e histórias. Assim que chegou à contenção — a entrada da comunidade — percebeu os olhares fixos dos rapazes de boné e bermuda larga. Eles seguravam rádios, alguns sentados, outros em pé, atentos a tudo.
Isabel sentiu o peso daqueles olhos, que pareciam julgá-la antes mesmo que dissesse uma palavra. Com a pasta em uma das mãos e a bolsa na outra, caminhou em direção ao grupo.
— Quem é você? — perguntou um dos rapazes, o mais jovem, franzindo o cenho.
— Meu nome é Isabel. Sou a nova médica do posto. Estou aqui para ajudar.
Um silêncio pesado se seguiu. Um dos vapores — os "olheiros" do tráfico — pegou o rádio, apertando o botão de transmissão.
— Muralha, tem uma doutora aqui na contenção. Parece que é do posto.
O rádio chiou, mas nenhuma resposta veio. Os rapazes se entreolharam, desconfiados.
— Espera aí. Vou chamar o Gaspar — disse o vapor, já ligando para o subchefe do morro.
Gaspar não demorou. Desceu rapidamente a escadaria com passos firmes, encarando Isabel de cima a baixo. Ele era um homem corpulento, com uma cicatriz na sobrancelha esquerda e um tom de voz que não deixava espaço para discussão.
— Então você é a doutora nova? Escuta bem, aqui não tem espaço pra erro. Cuidado com o que você faz e fala. O Morro do g**o tem suas regras, entendeu?
Isabel engoliu em seco, mas não desviou o olhar.
— Estou aqui para cuidar das pessoas, só isso.
Gaspar estreitou os olhos, mas assentiu com um gesto seco.
— Tá bom. Pode subir.
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O Posto de Saúde
No posto, Isabel encontrou Beatriz, uma enfermeira veterana, que a recebeu com um sorriso caloroso, contrastando com o clima tenso da contenção.
— Você deve ser a Isabel! Seja bem-vinda. — Beatriz estendeu a mão e logo a puxou para um abraço. — Olha, vou ser honesta: o trabalho aqui não é fácil, mas é gratificante.
Isabel sorriu, aliviada por finalmente encontrar alguém receptivo.
— Obrigada. Pode me contar um pouco mais sobre como as coisas funcionam por aqui?
— Claro. — Beatriz apontou para as prateleiras com medicamentos e as macas improvisadas. — Temos o básico, mas sempre falta alguma coisa. Os casos variam: febre, infecções, e, claro, ferimentos de bala. Você vai ver muito disso.
Antes que pudesse terminar a frase, a porta do posto se abriu com força. Dois homens entraram carregando outro, com o braço ensanguentado.
— Doutora! Ajuda aqui, rápido! — gritou um deles.
Isabel respirou fundo, já pegando as luvas. Beatriz correu para ajudá-la.
— O que aconteceu? — perguntou Isabel enquanto avaliava o ferimento.
— Tiro. Troca de tiro com os caras lá de baixo.
Isabel assentiu, mantendo o foco no ferido. Apesar do nervosismo, suas mãos não tremiam. Com a ajuda de Beatriz, limpou e suturou o ferimento. m*l terminou, e outro homem chegou com um corte profundo no ombro.
O posto de saúde virou um caos em questão de minutos. Isabel já estava coberta de suor, mas continuou firme. A tensão era palpável, mas ela sentia que estava exatamente onde deveria estar.
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Ao final do dia, Isabel estava exausta, mas sabia que o Morro do g**o seria mais do que apenas um desafio médico. A desconfiança inicial dos vapores, a recepção calorosa de Beatriz e a realidade crua das pessoas feridas lhe davam um vislumbre do que a aguardava: um lugar cheio de vida, sofrimento e histórias por trás de cada olhar.
Ela olhou para o morro iluminado pelas luzes fracas das casas e pensou consigo mesma:
"Será que estou pronta para o que me espera aqui?"