2° Conto — COMENDO A FUNCIONÁRIA NO NATAL - O Presente Era Eu

1674 Words
Filipe Narrando Me chamo Felipe, tenho trinta e cinco anos e sou dono da Nexus Comunicação, uma agência de marketing digital que fatura o suficiente para eu ter um apartamento com vista para o parque, um carro que bebe mais do que devia e um vazio no peito que nem o uísque mais caro consegue preencher. É véspera de Natal. Dezessete horas e trinta do dia 24 de dezembro. O escritório, que normalmente vibra com o caos criativo de trinta pessoas, está em silêncio sepulcral. O ar condicionado sussurra. A luz do fim da tarde, dourada e preguiçosa, entra pelas amplas janelas de vidro, iluminando partículas de poeira que dançam no vácuo que a agitação deixou para trás. Eu estou atrás da minha mesa de vidro e aço, observando o último grupo de funcionários se despedir. Há risadas abafadas, votos de “Feliz Natal”, o tilintar de garrafas da ceia que improvisamos mais cedo. Liberei todo mundo às quatro. Bônus generosos, cestas de Natal obscenamente caras, um discurso breve sobre merecimento e renovação para o ano novo. O chefe padrão. O chefe que eles esperam. Eu finjo bem. O homem de negócios bem-sucedido, o solteiro convicto, o chefe que é firme mas justo. Uso terno sob medida para esconder a inquietação, um sorriso profissional para disfarçar o cinismo. Construí isso tudo com minhas próprias mãos, e às vezes sinto que estou preso dentro da própria estátua que esculpi. Meu olhar, quase involuntariamente, é atraído para ela. Jaqueline. Ela está junto com a turma do design, rindo de algo que a Carla disse. Veste um vestido de festa simples, vermelho — claro, é Natal — que deveria ser discreto, mas no corpo dela é qualquer coisa menos isso. O tecido cai sobre suas curvas de um jeito que é um estudo de caso em tentação: justo nos quadris, decotado o suficiente para sugerir, não mostrar. Seus cabelos castanhos, sempre presos num coque impecável durante o expediente, agora soltos, caem em ondas macias sobre seus ombros. Ela tem vinte e oito anos, é minha gerente de projetos há três, e é a profissional mais competente e madura que já passou por essas portas. Também é, sem que ela faça o menor esforço, a mulher mais desejável deste andar. E isso é um problema. Um problema que eu insisto em ignorar, enterrando em reuniões, e-mails e uma política rígida de não pegar funcionária. Até hoje. O grupo se mexe em direção à porta. Jaqueline pega sua bolsa e um embrulho, virando-se para seguir os outros. É agora ou nunca. — Jaqueline — minha voz ecoa no espaço vazio, mais firme do que eu pretendia. Ela para, vira-se. Os outros também param, olham. — Você pode ficar um minuto? Preciso conversar com você sobre… o fechamento do projeto Ventura. É uma mentira descarada. O projeto Ventura foi aprovado pelo cliente há duas semanas. Mas é a única desculpa plausível que me vem à mente. Vejo um leve franzir entre suas sobrancelhas perfeitamente desenhadas, mas ela acena com a cabeça. — Claro, Felipe. Os outros dão tchau, com um olhar rápido e curioso entre eles antes de desaparecerem pelo corredor. A porta de vidro do escritório se fecha com um click suave. O silêncio desce sobre nós como um cobertor pesado. De repente, estamos sozinhos. A Jaqueline profissional, eficiente, está ali, a alguns metros de distância, mas a mulher do vestido vermelho, sob a luz do entardecer, parece uma criatura completamente diferente. — O projeto Ventura? — ela pergunta, caminhando em direção à minha mesa, seus saltos altos ecoando no piso polido. — Aconteceu algo? O cliente não aprovou o último relatório? — Não, não, tudo aprovado — digo, levantando-me e saindo de trás da mesa, um gesto inconsciente para diminuir a barreira hierárquica. Fico de pé perto da janela. — É só… uma coisa que esqueci de alinhar. Para Janeiro. Ela para a alguns passos de distância, cruzando os braços. Não parece convencida. — Certo — diz, sua voz suave carregando um fio de cautela. — Mas, Felipe, se for demorar muito… o metrô vai estar um inferno. Véspera de Natal, você sabe como fica. Ela tem razão. A cidade lá embaixo já está entupida, uma corrente de luzes vermelhas e brancas se arrastando. O ar de festa lá fora contrasta brutalmente com a tensão súbita e carregada aqui dentro. É o momento. O precipício. Posso dar um passo atrás, inventar algo rápido e mandá-la ir embora. Manter o mundo ordenado, seguro, previsível. Em vez disso, as palavras saem antes que eu possa filtrá-las. — Eu te levo para casa. Ela pisca, surpresa. Os braços caem ao lado do corpo. — Você… o que? — Eu te levo — repito, a voz mais suave agora. Encontro seus olhos, castanho-escuros e inteligentes, que agora examinam meu rosto em busca de um significado. — É o mínimo. Se vou te fazer ficar depois do horário, no dia 24, te levo. É… logística. É a explicação mais fraca da história. Nenhum dos meus outros trinta funcionários ganhou carona particular. Ela sabe disso. Eu sei que ela sabe. Um silêncio carregado se instala. Ela parece estar calculando, pesando o risco, a inconveniência do metrô, a estranheza do convite. E talvez, apenas talvez, algo mais. Eu a observei por três anos. Vi a maneira como ela às vezes segura meu olhar um segundo a mais do que o necessário. Como uma cor súbita sobe em seu pescoço quando elogio seu trabalho em particular. São sinais mínimos, quase imperceptíveis, que um homem menos atento — ou mais sensato — ignoraria. Mas eu não sou sensato. Só sou bom em fingir que sou. Por fim, ela solta um suspiro quase imperceptível e um pequeno sorriso profissional pousa em seus lábios. — Está bem. Se não for um incômodo. Mora no Jardins, né? — No caminho — mento descaradamente. Ela mora na Vila Madalena. É na direção oposta. — Pega suas coisas. Vou só fechar o sistema. Ela acena e volta para a mesa dela, alguns metros adiante no espaço aberto. Eu finjo me ocupar no computador, mas meu olhar, refletido no vidro escuro do monitor, segue cada um de seus movimentos. Ela pega um casaco fino, se vira. A luz do pôr-do-sol a atinge de lado, envolvendo-a em um contorno dourado, destacando a curva de seu pescoço, a linha de seu ombro. Dez anos, Felipe, um pensamento racional tenta se intrometer. Três anos de profissionalismo exemplar. Você vai jogar isso fora por um impulso num dia 24? Mas o pensamento é abafado por outro, mais forte, mais primitivo: É véspera de Natal. Todo mundo tem alguém. Eu só tenho esta empresa vazia e um apartado silencioso. E ela está aqui. Vestida de vermelho. — Pronta — ela diz, parando perto da porta, a bolsa no ombro, o casaco não vestido, apenas segurado. Parece jovem, vulnerável, e infinitamente desejável. — Vamos — digo, apagando a tela do computador e pegando minha chave e o casaco do cabide. O elevador desce em silêncio. O ar dentro dele está carregado. Ficamos lado a lado, olhando para as portas fechadas. Sinto o calor dela, o perfume discreto que ela usa — notas de jasmim e algo amadeirado. É um perfume de trabalho. Hoje, parece diferente. Parece… convite. No saguão, o segurança nos cumprimenta. — Boas festas, senhor Felipe! Até ano que vem, dona Jaqueline! — Para você também, Jorge — respondo, com um aceno. E então estamos do lado de fora. O ar da noite de dezembro é quente e úmido, carregado do cheiro de chuva que ameaça cair. A cidade iluminada para as festas parece um conto de fadas perverso. Aponto o chaveiro para minha BMW preta estacionada na vaga reservada. Abro a porta do passageiro para ela. Ela hesita por uma fração de segundo — um ato tão íntimo, abrir a porta para ela — antes de entrar murmurando um “obrigada”. Feicho a porta, o som sólido me isolando junto com ela neste espaço privado, à prova de som. Entro no lado do motorista, ligo o carro. O motor ronca suavemente. O ar-condicionado começa a soprar, trazendo o cheiro do couro novo e, agora, misturado ao perfume dela. É intoxicante. Saio do estacionamento e mergulho no trânsito lento da avenida. O silêncio dentro do carro é espesso, palpável. Nem a rádio suave que liguei consegue preenchê-lo. — O projeto Ventura… — ela começa, tentando recuperar a fachada profissional. — Esquece o projeto Ventura, Jaqueline — interrompo, minhas mãos firmes no volante, meus olhos fixos na estrada, mas cada fibra do meu ser consciente dela a meio metro de distância. Ela vira a cabeça para me olhar. Sinto o peso do seu olhar no meu perfil. — Então… sobre o que era para conversarmos? — pergunta, e há um tremor minúsculo, quase imperceptível, em sua voz. Paro em um semáforo vermelho. Lentamente, viro a cabeça para encará-la. A luz vermelha do semáforo banha seu rosto, seus lábios, o vale discreto de seu decote. Ela não desvia o olhar. Há uma pergunta ali, e um desafio. E, Deus me ajude, há um desejo reflexo no fundo desses olhos castanhos que eu conheço tão bem em reuniões de brainstorm. O carro atrás de nós buzina. O sinal ficou verde. Volto meus olhos para a estrada, meu coração batendo forte contra as costelas. — Acho — digo, minha voz soando estranha para meus próprios ouvidos — que a conversa é sobre o que vai acontecer quando chegarmos ao seu apartamento, Jaqueline. O silêncio que se segue é eletrizante. Ela não diz nada. Não se move. Mas, pelo canto do olho, vejo seus dedos se apertando no colo, as pontas brancas contra o vermelho do vestido. E eu sei, com uma certeza súbita e avassaladora, que o Natal deste ano não será passado sozinho. E que talvez, apenas talvez, eu tenha encontrado algo que meu apartamento de vista para o parque e minha conta bancária nunca puderam me dar. Agora, só preciso ter coragem de tomar. Continua...
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