A madrugada chegou sem pedir licença.
Para quem vivia na Vila Kennedy, a escuridão era apenas a continuação da vida — mas, naquela noite, o morro parecia respirar mais pesado. O eco da guerra ainda se espalhava nos becos, como se o ar não tivesse conseguido seguir em frente.
Catarina não dormiu.
Mesmo cansada, mesmo com o corpo pedindo descanso, cada vez que fechava os olhos ela revivia o som dos tiros, o barulho do vidro estilhaçando, o rosto de V.K aparecendo na porta da laje com os olhos cheios de uma fúria que não era contra ela — era por ela.
E isso mexia.
Mexia de um jeito errado, talvez perigoso.
Mas real.
Dona Nilva dormia no quarto ao lado, cansada demais para discutir ou rezar.
Catarina saiu devagar para a varanda da laje, buscando um pouco de ar.
A lua estava forte, iluminando o morro com um brilho prateado que deixava as sombras mais bonitas do que deveriam ser.
Ela respirou fundo.
— Eu preciso entender que diabos tô fazendo aqui… — murmurou para si mesma.
E como se o destino tivesse ouvido, passos pesados subiram a viela.
Catarina virou com pressa.
O coração dela falhou um compasso.
V.K subia a escadaria da laje com a segurança de quem caminha onde manda.
Calça larga, camisa preta colada ao corpo, tatuagens saltando na pele suada, olhar firme — mas não tão duro quanto antes.
Ele não parecia no meio de uma guerra.
Parecia no meio de um questionamento.
E isso assustou Catarina ainda mais.
Ele parou no último degrau, olhando para ela.
Nenhum dos dois falou primeiro.
Era como se ambos esperassem o outro confessar algo.
— Tu devia tá dormindo. — ele disse, por fim.
— Não consigo.
— Por causa dos tiros?
— Por causa de tudo.
Ele aproximou-se, parando a menos de um metro.
— O que é tudo?
— Você sabe.
— Sei não.
— Sabe sim.
Ele respirou fundo, impaciente — não com ela, mas consigo mesmo.
— Posso subir?
— Já tá aqui.
Ele entrou na varanda e encostou na mureta, olhando o morro como se analisasse as sombras.
Catarina o observou de lado.
Ele parecia cansado… mas não derrotado.
Parecia forte… mas carregando peso demais nos pensamentos.
— Eles vão voltar? — ela perguntou.
— Vão.
— Quando?
— Quando quiserem.
— E você vai tá pronto?
— Eu sempre tô.
Catarina viu algo no maxilar dele — tensão guardada, coisa que não se mostra para qualquer um.
— Você não precisa fingir comigo. — ela disse, do nada.
— Fingir o quê?
— Que nada te atinge.
— Não atinge mesmo.
— Atingiu ontem.
Ele virou o rosto.
— O quê? — ele perguntou, baixo.
— Quando você me viu na janela.
— Eu só tava fazendo meu trabalho.
— Não parecia trabalho.
— Parecia o quê?
— Parecia… preocupação.
A palavra fez o ar pesar.
V.K olhou para ela como se avaliasse se valia a pena discutir ou se era melhor fugir do assunto.
Ele não fugiu.
— Não sei preocupar. — ele disse.
— Sabe sim.
— Não sei.
— Você só não gosta de admitir.
— Tu fala demais, Catarina.
— E você aparece demais.
— Eu apareço quando quero.
— E por que você quis aparecer aqui agora?
Ele apertou a mureta com a mão.
Silêncio.
Um silêncio que dizia mais do que qualquer resposta que ele pudesse inventar.
— Vim ver se tu tava viva. — ele admitiu por fim.
O ar sumiu dos pulmões dela.
— Eu tô.
— Eu sei.
— Então por que ainda tá aqui?
V.K tirou o rádio do bolso e apagou o volume.
Um gesto pequeno.
Mas um gesto que dizia: “agora eu tô aqui, só aqui.”
— Porque eu precisava te falar uma coisa. — ele disse.
Ela endireitou o corpo.
— Fala.
— Tu não faz ideia do que tu causou ontem.
Catarina mordeu o lábio.
— Eu atrapalhei?
— Não.
— Então…?
— Tu apareceu na janela.
Ela franziu o cenho.
— E isso é grave?
— Pra mim, é.
— Por quê?
— Porque eu não devia ter olhado pra tu ali.
— E olhou?
— Olhei.
— E daí?
— Daí que eu erro quando olho no lugar errado.
Catarina sentiu um frio subir pela coluna.
— Eu te distraí?
— Tu distrai qualquer um.
— Não faço por m*l.
— Eu sei.
— Então por que isso te incomoda?
Ele inclinou a cabeça.
— Porque ninguém devia tirar minha atenção.
— E eu tirei?
— Tirou.
— Você queria me ver?
— Eu queria saber se tu tava viva.
Catarina respirou fundo.
— Você ficou com medo?
— Não.
— Ficou sim.
— Já falei que não.
— Então por que veio correndo aqui?
Ele passou a mão no rosto, nervoso.
— Porque tu é problema. — ele disse.
— Como assim?
— Problema pra mim.
— Como posso ser problema?
— Porque tu fala comigo como se eu fosse gente.
Aquilo bateu fundo nela.
— Você é gente.
— Não sou.
— É sim.
— Eu não posso ser fraco aqui.
— E por que falar comigo te deixa fraco?
— Porque tu me olha diferente.
O silêncio queimou.
Catarina deu um passo na direção dele.
— E como eu te olho?
— Como se eu não fosse monstro.
— V.K…
— Cala.
Ela não calou.
— Eu te vejo. — ela disse.
Ele cerrou os olhos.
Aquele tipo de frase era perigosa demais para o mundo em que ele vivia.
— Catarina…
— O quê?
— Não olha pra mim assim.
— Assim como?
— Assim… desse jeito que tu tá olhando.
— Por quê?
— Porque homem que vive do jeito que eu vivo não merece esse olhar.
— Quem decide isso?
— A vida.
— Então eu discordo.
Ele virou o rosto, irritado — não com ela, mas com o fato de que queria acreditar no que ela dizia.
Ela tocou de leve o braço dele.
Ele endureceu.
— Tu é louca? — ele perguntou.
— Só tô tentando te entender.
— Não tenta.
— Eu quero tentar.
— Não tenta.
Ela aproximou mais um pouco.
— Por que não?
— Porque eu não sei o que eu faço se tu continuar.
— E o que você faria?
Os olhos dele escureceram.
Havia desejo ali.
E havia perigo.
Muito perigo.
— Eu faço besteira. — ele confessou.
Ela sorriu de canto.
— Você não me intimida.
— Eu devia.
— Devia… mas não consegue.
Ele deu um passo para trás.
— Eu não vim aqui pra isso.
— Pra quê então?
— Pra te falar…
Ele hesitou.
— …que teu pai vai voltar.
Catarina congelou.
— O quê?
— Ele vai subir o morro de novo.
— Por quê?
— Porque ele quer guerra.
— Ele quer você?
— Ele quer poder.
— E eu no meio disso?
— Tu é só munição pra ele.
As mãos dela tremiam.
— E você?
— O que tem eu?
— O que eu sou pra você?
Ele apertou o maxilar.
— Um problema. — disse de novo.
— Só isso?
— Só isso.
— Então por que veio aqui?
— Porque problema vivo é melhor que problema morto.
Ela riu sem humor.
— Você é impossível.
— Tu também.
Ele virou para ir embora.
Mas ela segurou o braço dele — e ele congelou como se aquele toque fosse proibido.
— V.K…
— Fala.
— Você tem certeza que eu sou só problema?
Ele olhou para ela de cima a baixo, devagar, respirando como se prendesse algo que queria escapar.
— Eu tenho certeza…
Ele deu meio sorriso, cansado, perigoso.
— …que tu vai f***r minha cabeça.
Catarina sentiu o corpo inteiro estremecer.
Ele se aproximou mais uma vez — não tanto quanto antes, mas perto o suficiente para a respiração dos dois se tocar.
— Tu não tem ideia do que eu sou capaz. — ele disse.
— Então me mostra.
Os olhos dele arderam.
Um segundo.
Dois.
Ele virou bruscamente, como se estivesse se salvando de si mesmo.
— Boa noite. — ele disse, sem olhar para trás.
— Boa noite, V.K.
Ele desceu a escada, cada passo pesado como se carregasse o peso do mundo — ou o peso dela.
Catarina ficou na varanda, o coração acelerado, o corpo quente, o pensamento confuso.
Entendeu uma coisa:
Ele era perigoso.
Ele era errado.
Ele era proibido.
Mas quando ele disse que ela foderia a cabeça dele…
…ela teve certeza de que também estava fodida.
De verdade.