Conversas na Varanda

1438 Words
A madrugada chegou sem pedir licença. Para quem vivia na Vila Kennedy, a escuridão era apenas a continuação da vida — mas, naquela noite, o morro parecia respirar mais pesado. O eco da guerra ainda se espalhava nos becos, como se o ar não tivesse conseguido seguir em frente. Catarina não dormiu. Mesmo cansada, mesmo com o corpo pedindo descanso, cada vez que fechava os olhos ela revivia o som dos tiros, o barulho do vidro estilhaçando, o rosto de V.K aparecendo na porta da laje com os olhos cheios de uma fúria que não era contra ela — era por ela. E isso mexia. Mexia de um jeito errado, talvez perigoso. Mas real. Dona Nilva dormia no quarto ao lado, cansada demais para discutir ou rezar. Catarina saiu devagar para a varanda da laje, buscando um pouco de ar. A lua estava forte, iluminando o morro com um brilho prateado que deixava as sombras mais bonitas do que deveriam ser. Ela respirou fundo. — Eu preciso entender que diabos tô fazendo aqui… — murmurou para si mesma. E como se o destino tivesse ouvido, passos pesados subiram a viela. Catarina virou com pressa. O coração dela falhou um compasso. V.K subia a escadaria da laje com a segurança de quem caminha onde manda. Calça larga, camisa preta colada ao corpo, tatuagens saltando na pele suada, olhar firme — mas não tão duro quanto antes. Ele não parecia no meio de uma guerra. Parecia no meio de um questionamento. E isso assustou Catarina ainda mais. Ele parou no último degrau, olhando para ela. Nenhum dos dois falou primeiro. Era como se ambos esperassem o outro confessar algo. — Tu devia tá dormindo. — ele disse, por fim. — Não consigo. — Por causa dos tiros? — Por causa de tudo. Ele aproximou-se, parando a menos de um metro. — O que é tudo? — Você sabe. — Sei não. — Sabe sim. Ele respirou fundo, impaciente — não com ela, mas consigo mesmo. — Posso subir? — Já tá aqui. Ele entrou na varanda e encostou na mureta, olhando o morro como se analisasse as sombras. Catarina o observou de lado. Ele parecia cansado… mas não derrotado. Parecia forte… mas carregando peso demais nos pensamentos. — Eles vão voltar? — ela perguntou. — Vão. — Quando? — Quando quiserem. — E você vai tá pronto? — Eu sempre tô. Catarina viu algo no maxilar dele — tensão guardada, coisa que não se mostra para qualquer um. — Você não precisa fingir comigo. — ela disse, do nada. — Fingir o quê? — Que nada te atinge. — Não atinge mesmo. — Atingiu ontem. Ele virou o rosto. — O quê? — ele perguntou, baixo. — Quando você me viu na janela. — Eu só tava fazendo meu trabalho. — Não parecia trabalho. — Parecia o quê? — Parecia… preocupação. A palavra fez o ar pesar. V.K olhou para ela como se avaliasse se valia a pena discutir ou se era melhor fugir do assunto. Ele não fugiu. — Não sei preocupar. — ele disse. — Sabe sim. — Não sei. — Você só não gosta de admitir. — Tu fala demais, Catarina. — E você aparece demais. — Eu apareço quando quero. — E por que você quis aparecer aqui agora? Ele apertou a mureta com a mão. Silêncio. Um silêncio que dizia mais do que qualquer resposta que ele pudesse inventar. — Vim ver se tu tava viva. — ele admitiu por fim. O ar sumiu dos pulmões dela. — Eu tô. — Eu sei. — Então por que ainda tá aqui? V.K tirou o rádio do bolso e apagou o volume. Um gesto pequeno. Mas um gesto que dizia: “agora eu tô aqui, só aqui.” — Porque eu precisava te falar uma coisa. — ele disse. Ela endireitou o corpo. — Fala. — Tu não faz ideia do que tu causou ontem. Catarina mordeu o lábio. — Eu atrapalhei? — Não. — Então…? — Tu apareceu na janela. Ela franziu o cenho. — E isso é grave? — Pra mim, é. — Por quê? — Porque eu não devia ter olhado pra tu ali. — E olhou? — Olhei. — E daí? — Daí que eu erro quando olho no lugar errado. Catarina sentiu um frio subir pela coluna. — Eu te distraí? — Tu distrai qualquer um. — Não faço por m*l. — Eu sei. — Então por que isso te incomoda? Ele inclinou a cabeça. — Porque ninguém devia tirar minha atenção. — E eu tirei? — Tirou. — Você queria me ver? — Eu queria saber se tu tava viva. Catarina respirou fundo. — Você ficou com medo? — Não. — Ficou sim. — Já falei que não. — Então por que veio correndo aqui? Ele passou a mão no rosto, nervoso. — Porque tu é problema. — ele disse. — Como assim? — Problema pra mim. — Como posso ser problema? — Porque tu fala comigo como se eu fosse gente. Aquilo bateu fundo nela. — Você é gente. — Não sou. — É sim. — Eu não posso ser fraco aqui. — E por que falar comigo te deixa fraco? — Porque tu me olha diferente. O silêncio queimou. Catarina deu um passo na direção dele. — E como eu te olho? — Como se eu não fosse monstro. — V.K… — Cala. Ela não calou. — Eu te vejo. — ela disse. Ele cerrou os olhos. Aquele tipo de frase era perigosa demais para o mundo em que ele vivia. — Catarina… — O quê? — Não olha pra mim assim. — Assim como? — Assim… desse jeito que tu tá olhando. — Por quê? — Porque homem que vive do jeito que eu vivo não merece esse olhar. — Quem decide isso? — A vida. — Então eu discordo. Ele virou o rosto, irritado — não com ela, mas com o fato de que queria acreditar no que ela dizia. Ela tocou de leve o braço dele. Ele endureceu. — Tu é louca? — ele perguntou. — Só tô tentando te entender. — Não tenta. — Eu quero tentar. — Não tenta. Ela aproximou mais um pouco. — Por que não? — Porque eu não sei o que eu faço se tu continuar. — E o que você faria? Os olhos dele escureceram. Havia desejo ali. E havia perigo. Muito perigo. — Eu faço besteira. — ele confessou. Ela sorriu de canto. — Você não me intimida. — Eu devia. — Devia… mas não consegue. Ele deu um passo para trás. — Eu não vim aqui pra isso. — Pra quê então? — Pra te falar… Ele hesitou. — …que teu pai vai voltar. Catarina congelou. — O quê? — Ele vai subir o morro de novo. — Por quê? — Porque ele quer guerra. — Ele quer você? — Ele quer poder. — E eu no meio disso? — Tu é só munição pra ele. As mãos dela tremiam. — E você? — O que tem eu? — O que eu sou pra você? Ele apertou o maxilar. — Um problema. — disse de novo. — Só isso? — Só isso. — Então por que veio aqui? — Porque problema vivo é melhor que problema morto. Ela riu sem humor. — Você é impossível. — Tu também. Ele virou para ir embora. Mas ela segurou o braço dele — e ele congelou como se aquele toque fosse proibido. — V.K… — Fala. — Você tem certeza que eu sou só problema? Ele olhou para ela de cima a baixo, devagar, respirando como se prendesse algo que queria escapar. — Eu tenho certeza… Ele deu meio sorriso, cansado, perigoso. — …que tu vai f***r minha cabeça. Catarina sentiu o corpo inteiro estremecer. Ele se aproximou mais uma vez — não tanto quanto antes, mas perto o suficiente para a respiração dos dois se tocar. — Tu não tem ideia do que eu sou capaz. — ele disse. — Então me mostra. Os olhos dele arderam. Um segundo. Dois. Ele virou bruscamente, como se estivesse se salvando de si mesmo. — Boa noite. — ele disse, sem olhar para trás. — Boa noite, V.K. Ele desceu a escada, cada passo pesado como se carregasse o peso do mundo — ou o peso dela. Catarina ficou na varanda, o coração acelerado, o corpo quente, o pensamento confuso. Entendeu uma coisa: Ele era perigoso. Ele era errado. Ele era proibido. Mas quando ele disse que ela foderia a cabeça dele… …ela teve certeza de que também estava fodida. De verdade.
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